Abdulai Sila (n. em 1958, em Catió, Guiné-Bissau) é autor, entre outros livros, de romances como A última tragédia (1995) e Mistida (1997) e de peças de teatro como As orações de Mansata (2007). Está traduzido, por exemplo, para francês, inglês, italiano e alemão. Após publicar nova peça de teatro, Deih (2022), em crioulo, sai agora a Trilogia de Padjigada, na costumeira e implacável linha de uma ética individual, política e social que o tem caracterizado, assim como a toda a linha da frente da intelectualidade guineense, desde Carlos Lopes a Teresa Montenegro, Odete Semedo e Tony Tcheka, ou Julião Soares de Sousa.
A sua é uma obra importantíssima para o país e para a língua e culturas que nela se expressam, mas não recebeu ainda os louros que já merecia: por exemplo, o Prémio Camões. Peças suas foram encenadas fora do país, incluindo cidades portuguesas. Uma das melhores performances que vi em teatro foi com As orações de Mansata, numa encenação apresentada na Cena Lusófona (Coimbra).
Na trilogia que agora nos dá a ler, em linguagem normativamente standard, com algum, pouco, vocabulário de discurso étnico (local, nacional), o que se pode destacar, à primeira, é o dissecar de ambientes e situações em que as personagens encarnam referentes da vida social e histórica da Guiné-Bissau: antigo guerrilheiro, ex-agente da polícia, ex-emigrante, governador provincial, ex-chefe de comité de tabanca (aldeamento), um político, várias mulheres (Nmah, Alamuta, Kidama, Tina), comandante da polícia, alfaiate/ex-locutor de rádio, empresária, enfermeira, ou seja, personagens representativas da sociedade analisada com o bisturi de um sociólogo da ficção.
Porém, sabemos como o teatro, sendo simbólico, além de metafórico, tende a investir na ação, no diálogo e na própria indicação “direta”, com efeitos de real. As suas peças dirigem-se, em primeiro lugar, ao público guineense, num exercício pedagógico, de explicação das causas políticas e económicas que sustentam o quotidiano quase-irreal. O texto tem de ser o mais imediatamente percetível em palco. Assim, as três peças Abota, Um dia memorável e A quinta coluna, cada uma com extensão em torno das 100 págs., buscam acertar as contas com o passado histórico do país e, mais específica e eficazmente, colocar em equação comportamentos parecidos com casos da realidade extratextual.
Corrupção, iliteracia radical ou funcional nas altas esferas do poder, crenças antigamente ditas “animistas” (em espíritos incontroláveis e outras “forças suprapessoais”), crítica a “assuntos só de homens”, mulheres sujeitando as filhas ao fanado (ablação clitoridiana), mulheres vítimas de violência marital, casamentos impostos pelos pais e sogros, esboço de manifestações pró-femininas, jogo de bastidores para influenciar um marido com cargo proeminente, influência também sobre juízes, uso de chantagem, em suma, abordagem de temas/problemas quotidianos, não só da Guiné-Bissau. O estado do sistema ou o sistema do Estado posto em questão – e não só o judicial ou político, mas também dos comportamentos e das mentalidades e crenças inadequadas.
As peças têm as suas tiradas humorísticas e críticas, que podem aplicar-se a outros países: “a juizinha sem juízo”; “olha que isto aqui não é teatro”; “ele tem toda a gente na mão: políticos, governantes, deputados, empresários, juízes, militares, polícias… até alguns intelectuais, desses que andam sempre de fato e gravata”; “Lei da amnistia. Passavam vários anos, décadas até, a perder tempo com isso (…) Puseram a lei no papel, mas até hoje não há nem perdão, nem reconciliação, nem sequer culpado ou infrator”.
Os exemplos são inúmeros de como o autor busca dar a compreender, não necessariamente usando uma espécie de espelhismo de um real que seria dado como petrificado, mas tendo sempre na mira que o espectador/leitor do seu teatro reconheça – e possa aprofundar pela fruição textual – as grandes questões sociais, políticas e económicas do país.
Por isso, dois aspetos centrais a ressaltar, que ajudam a clarificar a possibilidade de intervenção do seu teatro: as mulheres, em Um dia memorável, procuram (alguma) união e confluência de esforços para que as suas aspirações não fracassem, sem que, no entanto, como acontece em relação aos homens, a desconfiança nos outros e as ambições pessoais não ponham em perigo o seu empenho na luta pelo igualitarismo; na terceira peça, A quinta coluna, o autor escolhe para epígrafe um provérbio africano para mostrar como é difícil a mudança de mentalidades e, a certo passo, uma personagem refere a terra, Catió, para mostrar como as prioridades da industrialização se podem dirigir mais ao consumo de vestuário do que à alimentação, sendo isso associado à intrusão dos brancos para desinquietar as mulheres, retirando-as dos seus papéis conservadores de inteira submissão aos homens, segundo a observação dessas personagens masculinas. A epígrafe: “Podes distanciar-te de quem está correndo atrás de ti, não do que está correndo dentro de ti”.
E, finalmente, na boca de personagens, um trecho vital para auscultar o sentido da discussão que este teatro de Abdulai Sila traz da e para a realidade guineense: “Quem é que trouxe essas ideias loucas de que qualquer mulher pode ser chefe como qualquer homem? Foram os brancos! (…) Quem está a dar dinheiro para as mulheres construírem fábricas de roupa aqui? (…) São os mesmos brancos! (…) Fábrica de roupa em Catió? Se não há nem uma fábrica de descasque de arroz ou de sumo de caju”. O quadro não ficaria completo sem uma tirada de Mambuyandin, alfaiate e ex-radialista: “Tudo o que a mulher tem ou pode, o homem tem que ter mais e poder mais (…) Essa é que é a nossa cultura, a nossa sagrada tradição…”.
Mais palavras para quê? Ou de outro modo: qual será a Quinta Coluna – expressão política -, a das mulheres que avançam para lugares ainda desconhecidos ou a dos homens que se mantêm à sombra dos poderes e podem perder o último barco para Ítaca (ou Tombuctu)? J