Continuam a não estar disponíveis nas livrarias do seu país (ou a serem de muito difícil acesso), mas os romances de Leonardo Padura, sobretudo os da série Mario Conde, são um dos mais poderosos retratos da sociedade cubana, da sua história e das suas contradições. No 10.º volume com o seu detetive, a visita de Barack Obama à ilha, em 2016, e as mudanças então esperadas (logo frustradas pela eleição de Donald Trump) são o pretexto para uma viagem de um século. Para falar daquele presente de 2016, Pessoas Decentes, uma edição da Porto Editora, recua ao final do processo de independência, que culminou com a intervenção dos EUA em 1912, e passa por um dos mais negros episódios de Cuba, a repressão a intelectuais e artistas na década de 70. Com um policial com muitas mortes violentas para investigar, Leonardo Padura dá-nos o outro lado da história oficial, aquela que só se alcança mergulhando na vida quotidiana das pessoas comuns.
Nascido em Havana, em 1955, Leonardo Padura é um dos mais destacados escritores de língua espanhola das últimas décadas. Licenciado em Filologia, foi jornalista, crítico e guionista. Publicou o seu primeiro romance, Fiebre de Caballos, em 1988, dando início a um percurso literário que tem vindo a ser premiado com os principais galardões da língua espanhola (e não só). Além de 15 romances, publicou ainda volumes de contos e ensaios.
De passagem por Portugal, Leonardo Padura participará no Folio (é entrevistado por Carlos Vaz Marques dia 21, às 21, na Tenda Vila Literária). Pessoas Decentes será depois lançado em Lisboa, a 23, às 18, na sala de âmbito cultural do El Corte Inglês, com apresentação de Pilar del Río. Nos dias seguintes, 24, 25 e 26, às 18 e 30, Leonardo Padura ministra o curso de escrita “Como, porquê e para que é se escreve um romance ou como chegar à alma das coisas” (gratuito, mas de inscrição prévia), que termina com a exibição do documentário Havana de Padura, apresentado por Teresa Paixão (diretora da RTP2) e Raquel Varela (coautora e historiadora) e Leonardo Padura (autor).
Jornal de Letras: Um novo livro, um novo regresso do seu detetive. Mario Conde é insaciável?
Leonardo Padura: Mario Conde, na verdade, nunca se vai embora. Está sempre na esquina do bairro a observar a realidade cubana. E sempre que preciso, saio de casa, vou até à sua esquina, falo com ele e convido-o a mergulhar em mais uma história. É uma personagem que me ajuda a continuar esta espécie de crónica da vida cubana contemporânea que tenho vindo a fazer nos meus romances. Mario Conde mantém a sua enorme curiosidade, não só sobre o que acontece no presente, mas também sobre o que ocorreu no passado, sobretudo o que foi esquecido. Recordar ou recuperar as memórias perdidas é muito importante para ele.
Nessa atenção à vida cubana, seria inevitável abordar, num romance, a histórica visita de Obama a Cuba?
Talvez, sim. O romance anterior, A Transparência do Tempo, termina a 17 de dezembro de 2014, quando os governos de Cuba e dos EUA anunciaram o início das conversações para o reestabelecimento de relações diplomáticas. Para muitos, dentro e fora de Cuba, foi a notícia mais importante daquele ano, pois não se tratava apenas de um problema entre dois países. Converteu-se num conflito que representava a Guerra Fria, a oposição entre norte e sul, as relações entre países poderosos e pequenos. Foi também por isso que segui de perto, como todos os cubanos, a visita de Obama, em 2016.
Era a história a acontecer?
Sem dúvida. E o início de um processo que poderia ter-se desenvolvido em várias direções, mas que acabou por ser interrompido muito rapidamente com a chegada de Donald Trump à presidência dos EUA, em 2017. Com isso, a relação entre os dois países voltou ao que tem sido nas últimas décadas.
Mas, em 2016, a esperança depositada nessa nova relação com os EUA foi suficiente para conquistar um pessimista militante como Mario Conde…
Para ele e para inúmeros cubanos, mais ou menos pessimistas, houve a esperança, de facto, que algumas coisas pudessem mudar. E naquela altura algumas coisas estavam efetivamente diferentes. Não era só o simbolismo de uma visita do presidente norte-americano e da sua presença física na ilha, surgiram igualmente novos negócios e muitos encontros (culturais, desportivos, académicos, religiosos, de todo o tipo) que desencadearam muita mobilidade. Falava-se até na hipótese de o embargo dos EUA a Cuba ser levantado. Mas, num ápice, tudo desapareceu. Apesar do seu otimismo momentâneo, Mario Conde antecipava que aquela visita não seria mais do que um parênteses numa história cheia de contradições como é a das relações entre Cuba e os EUA.
O romance, no entanto, alonga-se por um século. O que liga os vários momentos históricos?
Sim, o romance passa-se em dois momentos muito afastados no tempo. Em torno do ano de 1910, aborda-se a luta pela independência de Cuba (iniciada no final do século XIX) e a instituição da República (de 1902). O ano de 2016 é o presente do livro, mas também se fala muito da repressão e marginalização de muitos intelectuais nos anos 70 do século XX. Os vários episódios têm sobretudo uma ligação conceptual. São momentos obscuros e estranhos da história de Cuba, marcados quer pela esperança (1910 e 2016), quer pelo lado negro da construção do homem novo de que tanto se falou na década de 70. Em França, a minha editora achou que o título Pessoa Decentes em francês não teria o sentido usado no romance. Optou por “Furacões Tropicais”, que cheguei a ter como hipótese. Estes momentos históricos são furacões que causam a sua devastação e que depois se vão embora.
A repressão cultural dos anos 70 é, de facto, central neste romance. Considera importante voltar a falar deste assunto?
Muito. O assunto não foi apagado, mas tem sido posto de lado, ao ponto de ser possível alguém dizer, hoje, que em Cuba nunca se perseguiu ninguém pelas suas crenças religiosas, como li há pouco num site oficial. Se não se fala do assunto enquanto há quem tenha memória desse tempo, essa é a afirmação que fica. A literatura e o jornalismo são muito importantes por causa da sua capacidade de recordar a história, evitando as suas manipulações.
É o reverso da história oficial.
Que todos os governos têm e promovem. Essa história oficial é construída por interesses políticos e ideológicos. Por vezes, esses interesses são conjunturais, o que leva a que se regaste um ou outro episódio para legitimar o presente. Mas depois há outras histórias que são muito significativas para a construção e identidade de um país. A análise da vida quotidiana dos diferentes períodos históricos é fundamental e interessantíssima, pois as vidas pessoais e domésticas revelam muito do que se passou. Aproximar-se dessa dimensão mais humana é, em parte, a função de um escritor. Completar e por vezes contradizer, através do seu retrato de pessoas comuns, a grande História.
Para estes temas de que temos vindo a falar acabou por escrever o mais policial de todos os seus policiais. Porquê?
Confesso que, de início, muito antes de saber que abordaria tudo o que acabei por abordar, tive vontade de escrever uma história policial mais clássica. Os meus últimos romances, com ou sem o Mario Conde, iam muito ao social, ao histórico e aos conflitos humanos. Quis isso tudo também estivesse presente neste novo livro, mas inserido numa investigação policial com mais mortes. Interessou-me trabalhar a violência extrema que pode haver em determinados tipos de crime.
Foi um novo desafio para um escritor com tanta experiência?
Um novo romance tem de ser sempre um novo desafio. Se te conformas, se escreves como sempre escreveste, perdes a ambição que nunca pode faltar a um escritor. Sem novos desafios, um escritor estará apenas a confiar no que a experiência lhe ensinou.
E o que é, afinal, uma pessoa decente?
A que cumpre, de forma natural, os compromissos sociais que nos permitem viver em sociedade. Se as pessoas cumprissem um código tão velho como o que Moisés recebeu no Monte Sinai, os 10 Mandamentos, seria suficiente para termos um mundo melhor. Para mim, uma pessoa decente é a que cumpre esse e outros mandamentos que cada sociedade vai impondo para que haja uma convivência melhor. Uma pessoa decente é uma boa pessoa.