A muito vasta e multímoda obra de Mário de Carvalho (MC) começou a ser publicada em 1981 – há 40 anos, portanto. O autor é um polígrafo: escreve sobretudo ficção (romance, novela, conto), mas também crónica, memorialismo, textos para teatro ou argumentos para televisão, e ainda fez incursões na literatura infanto-juvenil.
A lista de obras e o ritmo regular da sua publicação é impressionante. Desde os dois livros de contos de 1981 (Contos da sétima esfera, Casos do Beco das Sardinheiras – Onde importa sobremaneira não confundir género humano com Manuel Germano) até ao mês passado (De maneira que é claro), contam-se 30 volumes; e se pensarmos nas crónicas publicadas na imprensa nos anos 80 e 90, antologiadas em O que eu ouvi na barrica das maçãs, 2019, a presença de MC é ainda mais numerosa.
Em quase todos estes livros se encontram reflexões metaliterárias, dando a ver a oficina e os métodos de escrita, mas desiluda-se o leitor que procure em Quem disser o contrário é porque tem razão – Letras sem tretas – Guia prático de escrita de ficção (2014) aquelas receitas que os ditos cursos de escrita criativa julgam fornecer: este Guia prático vai contra fórmulas, e mostra na prática, com muitas referências e imensa ironia, que a escrita, como o autor a pratica, advém de leituras, leituras e leituras. De Homero à Bíblia, dos moralistas e historiadores da Antiguidade Clássica a Camilo Castelo Branco, de Moby Dick a Thomas Mann ou Gorki, Tchekov, Tolstoi, mas também de A ilha do tesouro a Sandokan e a heróis vários dos quadradinhos – j’en passe et des meilleurs – citados em epígrafes ou formando o caderno de trabalhos continuados deste leitor atentíssimo, torna-se sempre claro que escrever é um processo, a crescente aprendizagem de um ofício, um trabalho constante e alargado.
Só assim pode entender-se que a qualidade e o rigor dominem tanto nos textos que ficcionam o passado (Quatrocentos mil sestércios seguido de O Conde Jano,1991; A paixão do Conde de Fróis,1986; Um deus passeando pela brisa da tarde, 1994) como naqueles em que um quotidiano contemporâneo é tematizado (como em Casos do Beco das Sardinheiras , 1981, ou o do excecional Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto, 1995).
A ironia, incluindo a autoironia, forma uma das faces do prisma composto também pela informação factual e histórica, pelo domínio das fontes e da linguagem adequada a cada tipologia de texto, construindo uma figura de autor que vale a pena sublinhar. Vejamos breves ilustrações disso. A primeira vem do “Epílogo” de Casos do Beco das Sardinheiras, vendo-se como o narrador entra nas casas e nas vidas da gente que protagoniza aqueles “casos” de um bairro popular:
“Uma ocasião, estava eu sozinho em casa (…) tocaram-me à porta. Era uma embaixada. A meio do patamar, o Zeca da Carris e o Chico Estivador seguravam a carreta de madeira do Zé Metade (…). Eu, para ser franco, não estava muito disposto a recebê-los. (…) isto de um autor conversar com as suas personagens vai estando um bocado visto. Nos tempos que correm um autor deve manter um olímpico desprezo pelas personagens, sem sequer as cumprimentar encontrando-as na rua.(…). Eu cá gostava era de escrever assim coisas grandiosas como o Gilgamesh, a Moby Dick, e não os pequenos casos do Beco das Sardinheiras e da sua arraia miúda, não desfazendo. (…) – Então temos muita pena, mas vamos procurar um outro escritor. (…) Quer-me cá parecer que este gajo está a fazer uma confusão do caneco entre género humano e Manuel Germano…”. O escritor ri-se de si, pensa o que seja o realismo e a própria arte da literatura.
A segunda ilustração vem de “Há males que vêm por bem”, de Os alferes (1989, três contos ficcionando episódios da Guerra Colonial), em cuja nota de abertura se lê: “São histórias inventadas de ponta a ponta, com um mínimo de referências que as façam parecer verosímeis.” O conto escolhido trata a história, no tempo da Guerra Colonial, de um alferes despachado, em comissão, para Timor – ferido com uma granada de treino, vai ser evacuado de avião para Lisboa (sublinhe-se: Mário de Carvalho nunca esteve em Timor nem nos cenários de guerra dos dois outros contos).
Ao jeito de um Camilo Castelo Branco, o texto é a páginas tantas marginado por uma nota que fornece elementos técnicos e observações sobre a linguagem usada, e desenha a figura do autor e do seu duplo – qual deles será ficcional? São-no os dois? Vejamos se é possível deslindar este ponto, lendo um excerto: “O autor aproveita a interrupção para dar algumas explicações ao leitor paciente (…). Um texto que se preza deve explicar-se a si próprio e há de escusar os cuidados do autor inquieto. (…) Ora eu concedo, com prazer, a agudeza do leitor, mas já não me fiaria tanto no cristalino do texto, dando de barato a inépcia do autor, que é pessoa que eu conheço em demasia e de que desconfio um bom bocado.”
Lembre-se ainda uma crónica de O que Eu Ouvi na Barrica das Maçãs. Trata-se de “Espelho de escritores” (1987), título muito barroco, tipificando “35 espécies”, de entre elas “O escritor universitário”:
“Vive num mundo cheio de pequeninas trapalhadas e enredozinhos corporativos que envolvem colegas de profissão, carreiras, conselhos científicos, muita má-língua. (…) Olha com desprezo os escritores que são médicos, advogados, despachantes de alfândega ou farnientes, alheios ao útero universitário. (…)”. Corrosiva caricatura, que se estende a todas as outras categorias tipificadas, não faltando a autoironia (“Do mesmíssimo bairro sou. Ou pior.”).
Convoquemos a fechar a calma clássica, em clave bucólica, da abertura de Um deus passeando pela brisa da tarde: “Brilha o céu, tarda a noite, o tempo é lerdo, a vida baça, o gesto flácido. Debaixo de sombras irisadas, leio e releio os meus livros, passeio, rememoro, devaneio, pasmo, bocejo, dormito, deixo-me envelhecer. (…) Propus-me um livro? Há que lê-lo.” Leiamos, sim, esta ou qualquer das obras deste escritor sábio, grave e risonho – um dos maiores entre os que o são. J
Escrever é um processo, a crescente aprendizagem de um ofício, um trabalho constante e alargado. Só assim pode entender-se que a qualidade e o rigor dominem tanto nos textos que ficcionam o passado, como naqueles em que um quotidiano contemporâneo é tematizado