Marés, diz o escritor, mas para falar de O osso da borboleta também poderíamos utilizar a palavra ruína. Ao quarto romance, Rui Cardoso Martins deixa de lado a ideia de viagem, tão presente em E se eu gostasse muito de morrer, Deixem passar o homem invisível e Se fosse fácil era para os outros. Este é um romance estático, o que equivale a dizer que é um romance sem movimento. Paulo e Purificação, ou Paulinho e Borboleta como também são conhecidos, andam às voltas no seu pequeno mundo, violentamente reduzido pelos embaraços da vida. Ele está fechado num sótão, escondido onde nem todos os polícias juntos o conseguem encontrar. Ela, que vive no mesmo prédio, está presa a uma glória passada. A miséria marca o quotidiano dos dois personagens principais (e dos secundários também) e com isso o romance, seguramente um dos mais estimulantes de 2014, abre-se para a atualidade que todos os dias nos entra pelos olhos dentro.
Não é direta, porém, esta relação, nem é de denúncia este romance. Sente-se apenas que Rui Cardoso Martins, o escritor e o jornalista, o cidadão e o fazedor de opinião, não é indiferente aos tempos que estamos a viver. Ruínas, muitas ruínas ensombram O osso da borboleta, que é um osso escondido do corpo humano (no crânio) ou um osso inexistente nas borboletas. O casino, o hotel, não por acaso chamado Atlântico, o mar que nos pode salvar (pela emigração) ou condenar (pela força da rebentação), as conquistas pretéritas. Na verdade, é no passado que estas duas personagens, elevadores avariados de um mesmo prédio, mais viajam. O que já foi ensombra o presente. Ela que foi a mulher mais bonita do bairro, mas que caiu na cantiga de um burlão qualquer. Ele que teve uma vida estável – mulher, emprego, honestidade – mas que se revelou um hábil manipulador da contabilidade da sua vida e da empresa em que trabalhava.
Rui Cardoso Martins não larga estas personagens. A sua prosa torrencial – enrodilhada, expressiva, voraz – entra e sai de dentro das cabeças de Paulo e Purificação. Tanto se faz corrente de consciência, como se afasta para um olhar exterior. Instala-se no sótão e vagueia pelas ruas, joga tudo na roleta da psique humana, acertando tantas vezes no jackpot. Disperso ao início, o romance constrói aos poucos uma teia que, afinal, não tem pontas soltas. Um romance que é uma ruína. Uma lembrança das guerras que nos destroem. Ontem, como hoje.