“Olhe que o senhor não me parece nada bem. O rubor das faces, a tez escura, esse olhar distraído mascarado de boa-disposição. O seu pensamento esvai-se atrás das palavras que mal pronuncia. Para si, para mim, para os outros, finge estar bem mas o senhor está num lugar muito longe deste onde nos encontramos. Nem sequer respondeu ao meu cumprimento quando passei por si, tive mesmo de lhe chamar a atenção. Essa sua distância involuntária consternou-me, ofender-me-ia até se não o soubesse nesse estado. Mas não, pelo contrário, deixa-me deveras preocupado consigo e com a sua enfermiça saúde. Talvez seja o Verão que lhe está a cair mal. Desculpe estar a dizer isto, logo pela manhã, assim a meio das escadas, mas como vizinho sinto-me na obrigação de alertá-lo para a sua precária condição. Os músculos, tensos, parecem inchados; os ombros, inteiriços, quase presunçosos de tão direitos; os olhos, velados por esses óculos escuros, a esconder alguma doença desconfiada. Diga-me, o que pretende esconder? Algum mal-estar da alma, algum arrependimento sentido pelo abandono do “trabalho” durante semanas? Não será tudo consequência desses exagerados descansos a que os patrões, muito democraticamente, obrigam os funcionários? Sabe que o homem só se revê quando exercita o corpo e a mente nesse princípio vital a que os Antigos sapientemente denominaram “labor”, e os modernos sindicalistas e comunistas chamam agora “trabalho”, essa palavra de origem suspeita, mas que é também contrária ao estado vicioso, parasitário e inerte, que apelidam de “férias”? Não se vá embora, vizinho, a sua reacção é muito comum. Já a vi noutros padecentes da mesma abjecção bronzeada. Quando se confrontam com a verdade, com a terrível violência que é o abandono drástico do labor a favor da prostração total, as células do corpo e as sinapses do cérebro rejeitam a evidência e sublimam o remorso através da recusa. Esse seu afastamento, escadas abaixo, é a evidência do que acabo de afirmar. Mas é natural que não se sinta bem ao ouvir a verdade, logo no dia em que se prepara para reiniciar o seu “trabalho”. (Vá lá, não fuja, venha aqui para o pé de mim.) Vê-se que ainda vem toldado com a luxúria da preguiça. Dois pecados num só! Labor, vizinho, o que todos precisamos é de labor! Sabe, eu nunca fui de “férias”, nunca me obrigaram a esse disparate. Lá no escritório, primeiro os patrões, depois os sindicalistas, mais tarde todos juntos, quase me forçaram a parar, porque, diziam eles, estava a ameaçar o amável confronto entre o capitalismo e o comunismo. Vejam só, o único momento no meu local de labor em que os dois beligerantes se uniram para dar luta à supremacia da verdade. Irónico, não acha? E quase o conseguiram. Mas eu, nesse último Verão em que me fizeram parar, eu, mesmo assim, não abandonei o escritório. Ali fiquei, ali resisti, ali investi contra tudo e contra todos. (Volte já aqui e, por favor, não me interrompa!) Pois eles não conseguiram impedir-me de laborar. Depois de muito matutar, apelei à amabilidade dos meus dotes musicais. E todos sabem como a música é o símbolo mais abstracto da suprema função vital, sinal renitente, sub-reptício, porém inelutável. Durante o mês de Agosto declarei-me perante os que me quiseram ouvir: o homem dos sete instrumentos! Fiz ferrinhos com clipes, berimbaus com elásticos e caixas de punaises, deflagrei com ritmo espantoso as borbulhas intumescidas das embalagens de plástico. Contudo, no final dos trinta e um dias, os inimigos unidos acabaram por vencer. Apelando aos enfermeiros de branco da medicina no trabalho (outra vez a palavra horrenda!) internaram-me num hospício para depressivos e maníacos. Diziam-me maluco depressivo e perigoso, mas eu apenas era o maníaco da verdade. Digo-lhe que nesse dia fui aposentado compulsivamente. Aposentado, arredado do sentido da vida, eu, o maior amigo da arte laboral e da música! Esse é o maior sarcasmo da verdade, e a verdade tem sempre um humor próprio e muito negro. (Ou vermelho!) Não sabia? Pois é natural, ainda está anestesiado, alienado pelo engodo desse nefasto descanso obrigatório. É nítido que ele o atacou irremediavelmente. O vizinho está doente, muito doente. Vê-se à distância que não teve de lutar como eu, até ao fim das suas forças, contra o mal. Porém, eu detenho a solução. Posso curá-lo! (Venha para aqui, suba só mais um degrauzinho.) Espanta-se com o que eu tirei do bolso e agora tenho na palma da minha na mão? Quer ver? É um revólver, sim, bonito, pequeno, luzidio, parece de senhora, mas é muito eficiente. Não corra, não vale a pena, acabei de trancar a porta da rua. E também escusa de gritar, que não há mais ninguém no prédio. Sabe, “foram todos gozar as merecidas férias!”. Não me vire de costas nem se preocupe com a parede, ela até está a precisar de uma pintura. O vermelho nem lhe ficará nada mal. É rápido e não dói nada. Vai ver: trabalha o revólver, labora a bala. Até tem graça.”
Pum!
(Os senhores, porventura, fazem ideia de quanto se gasta em subsídios de férias oferecidos a esses doidos varridos para irem bronzear-se para a praia?)