Nas minhas frequentes viagens a Madrid, adormeço embalada pelos poetas do século de ouro espanhol. No prédio onde vive o meu anfitrião, Pablo Eulate, morreu Miguel de Cervantes, a 23 de abril de 1616, precisamente no dia em que também a Inglaterra perdia William Shakespeare. Nas ruas próximas desta Calle Cervantes amaram, escreveram, bateram-se em duelo outros homens que glorificaram a Espanha, não através da espada ou dos canhões, mas pela força da poesia: Francisco Quevedo, Lope de Vega, Luís de Góngora, Garcilaso, entre outros. Autores que os nossos escritores, seus contemporâneos, como D. Francisco Manuel de Melo liam e frequentavam como se portugueses fossem.
Há quase dez anos, uma viagem literária à região de Castela-La Mancha, organizada pela Oficina do Turismo Espanhol em Lisboa, despertou-me para a leitura de São João da Cruz e Quevedo. Fiquei-o a dever a José Bento, um dos membros dessa alegre comitiva, hispanista de méritos reconhecidos, que me deu a conhecer as excelências dos versos e as aventurosas vidas destes homens que, como Camões ou o referido autor de Carta de Guia de Casados, não se podiam dar ao luxo de baixar a espada para só viver da pena.
Graças à erudição sem alarde de José Bento, os leitores portugueses poderão agora ficar a conhecer melhor a obra de dois destes grandes nomes da poesia peninsular de seiscentos. Com chancela da Assírio & Alvim, acabam de ser lançados no mercado português duas antologias de primeira importância: a de Lope de Vega e a de Góngora. Em introduções que são autênticas lições, José Bento põe em relações os dois autores, que, na verdade, se opuseram num duelo literário que fez escola: “Góngora teve como contemporâneo Lope de Vega e, vinte anos mais novo, Francisco de Quevedo, que se lhe opuseram ferozmente desde que tiveram forças para tanto. É discutível qual destes poetas é o maior e tal discussão não interessa e é inconclusiva. Contudo, o mais influente no seu tempo foi Góngora, pois não só deu origem a uma escola, nem sempre digna do mestre ao tornar o cultismo em culteranismo (heresia poética, como sugere esta designação, porventura formada a partir de luteranismo?), como até transmitiu algo do seu melhor a estes seus dois inimigos.” Sobre Vega (porventura mais conhecido pela sua obra teatral do que pela poética), José Bento escreve: “”Monstro da natureza” chamou Cervantes a Lope pela quantidade da sua obra. Com rigor e compreensão para os seus excessos, uma selecção que seja suficiente para conhecer essa obra ultrapassa as dimensões de uma antologia. Mas, organizada com vontade de compreender o homem e o poeta complexo e por vezes desmesurado,em diversos aspetos, que ele foi, é possível que seja a única forma de começar a aceder e compreender um dos melhores poetas da literatura espanhola, com defeitos que muitos souberam evitar, mas com uma pujança e ousadia que são quase só dele.”Basta-me um verso e re-encontro a luz da Madrid que amo e também toda a pujança das literaturas ibéricas, mães, por sua vez, de muitas outras literaturas em África e na América Latina. Re-encontro tudo aquilo que o FMI e o BCE não podem compreender.