Associava o fôlego narrativo ao conhecimento profundo da natureza humana, como o demonstra em algumas das mais belas novelas espanholas publicadas nas últimas décadas. Falamos de Carmen Martín Gaite (1925-2000), que recebeu, entre outras distinções literárias, o Prémio Nacional de Literatura (1978) e o Príncipe das Astúrias das Letras Espanholas (1988). Como é sabido, nem sempre o espírito de justiça ilumina os júris destes e outros acontecimentos, mas basta ter lido obras como Nebulosidade Variável ou Lo Raro es Vivir para entender a importância da autora natural de Salamanca. Isto para não falar no seu trabalho como ensaísta (escreveu, por exemplo, dois belíssimos estudos sobre os usos amorosos na Espanha do século XVIII e do pós-guerra civil) ou na literatura infanto-juvenil (inesquecível a novela, publicada em Portugal, O Capuchinho Vermelho em Manhattan).
É nessa qualidade, aliás, que, dez anos depois da morte, Carmen Martín Gaite volta a ser notícia em Espanha, desta feita com uma biografia sua, romanceada por Luísa Antolín, e ilustrada por Juan Manuel Santomé: A la Aventura subida en una Pluma (editorial Hotel Papel). Destinada a crianças em idade escolar e adolescentes, a obra transforma a escritora numa heroína que decerto seria muito da sua predilecção, Carmiña, menina conduzida na vida por uma extrema curiosidade. O que a leva a contrariar o figurino que o ideário franquista idealizava para a função social da mulher, privilegiando a busca do conhecimento à demanda do príncipe encantado que obcecava as suas contemporâneas.
Montada sobre uma pluma à maneira de uma gentil bruxinha, Carmiña transforma-se numa paladina da afirmação cultural da mulher espanhola, cercada por preconceitos de toda a espécie, e “voa” através das páginas deste livro, desde a infância em Castela-Leão, até às mornas tardes de escrita, no seu apartamento de Madrid, frente ao Parque do Retiro. Sempre insaciada de experiências e sensações, gentilmente irreverente na boina sobre a ampla cabeleira, a exclamar que, num mundo tão agreste, o estranho (e maravilhoso) é vivermos.