São provocações amáveis, mas merecem, ainda assim, a devida réplica. Somos Todos Hispanos? – perguntam-me vários amigos. “O que queres dizer exactamente com isso? Que somos todos espanhóis? Ou, pelo menos, hispânicos?” É verdade que prezo muito Espanha, que gosto de a ter ao alcance de poucas horas, mas não, não somos todos espanhóis e há boas razões históricas para que não o sejamos.
Hispanos somos, porém. Antes de mais por essa condição, tão irreversível como a genética, que é a geografia. Hispânia, recorde-se, foi o nome dado pelos antigos romanos a toda a Península Ibérica (Portugal, Espanha, Andorra, Gibraltar e uma pequena parte a sul da França). Durante o Principado, a Hispânia Ulterior foi subdividida em duas novas províncias: a Bética e a Lusitânia, enquanto a Hispânia Citerior foi designada por Tarraconense. Como boa parte da cultura e da língua latinas, estas designações foram mantidas nos círculos cultos durante a Idade Média. João XXI, o único Papa de nacionalidade portuguesa era conhecido e passou à História da Cultura como Pedro Hispano. No século XIII, embora já estivessem delineadas as fronteiras do reino de Portugal, ninguém, nem mesmo o próprio, sentiu que fosse uma designação abusiva. Até porque a Espanha, com um “formato” próximo do que lhe conhecemos, data apenas de 1492, quando os Reis Católicos conquistaram o reino de Granada.
Hispanos somos também pelo “lado” da cultura.
Até ao princípio do século XVIII (e consequentemente até ao dealbar de nacionalismos exacerbados um pouco por toda a Europa), muitos dos nossos poetas, escritores e filósofos escreviam com igual correcção em Português e Espanhol. Gil Vicente era bilingue, Camões também, D. Francisco Manuel de Melo, nascido em plena União Ibérica, movia-se com igual à-vontade em Lisboa e Madrid. Apadrinhado por Francisco de Quevedo, os seus escritos faziam igual furor em ambas as cidades. Miguel de Cervantes, embora não tenha escrito em Português, deu várias vezes mostras de conhecer os escritores portugueses, nomeadamente Luís de Camões, a quem dedicou páginas cheias de veneração. Como se, nesse período remoto, tivesse havido duas Europas distintas: a da política, com múltiplas guerras, anexações e interesses, e a da cultura, com outros protagonistas e outras prioridades.