É um pequeno livro discreto, sem a gramagem e o lustro do papel dos convencionais álbuns de capa dura. E, no entanto, salta à vista, nos escaparates, pela fotografia que ocupa toda a capa: um chapéu, um tomate, uma mão, uma atmosfera acinzentada, um conjunto que lembra Magritte. Uma única palavra dá-lhe nome: Cadernos e um número, um, promete-lhe continuidade. É um caderno sem linhas, lá dentro, só há fotografias de Daniel Blaufuks, sem qualquer texto, sem uma palavra. “A imagem não precisa de texto”, justifica o fotógrafo, interrogando-se: “Haverá ainda quem saiba ler uma imagem?”. Para ele, as imagens contam histórias, como afirmava ao JL, em 2003, altura em que apresentou na Gulbenkian, em Lisboa, a exposição Collected short stories – E se há uma “leitura da Pintura”, por que não uma “leitura da Fotografia”?Neste Caderno de apontamentos fotográficos, lêem-se sobretudo referências da Pintura ou da Literatura – de Magritte ao famoso escriba Bartleby, personagem de um dos mais intrigantes contos de Herman Melville, o mesmo é dizer, os lugares da memória, matéria-prima de toda a obra de Daniel Blaufuks. Mas da primeira imagem que evoca a fotografia Noir et Blanche (1926) do surrealista Man Ray à derradeira tentativa de levitação, corre uma narrativa de simulação e magia. Mas nada na manga: as aparências iludem. “Haverá, aqui, de facto, algum truque?”, pergunta, retórico, o fotógrafo, em resposta ao JL. “O Caderno é um pequeno livro de anotações, um livro de trabalho, um esboço, não tem truque”, esclarece. E acrescenta, chamando a terreno outro surrealista: “Também Georges Pérec gostava de criar pequenos jogos literários, como receitas de cozinha sem funções práticas”.
Também os truques de Blaufuks não têm outro desfecho que não seja a própria fotografia. E a sua potencialidade de ilusão? “A primeira imagem do Caderno é a recriação de uma famosa fotografia de Man Ray em que eu assumo o papel do modelo feminino. É uma ilusão mal disfarçada, mas apenas para quem conhece o original. É uma referência, logo uma memória”, diz.
Todas as fotografias deste Caderno são, aliás, “recriações” de um manual de magia, que Daniel Blaufuks encontrou num alfarrabista. Interessou-lhe, adianta, a sua atmosfera cinzenta, mas avança que bem poderia ter sido um livro de jardinagem. A questão era que permitisse o jogo com as referências literárias, pictóricas ou cinematográficas que queria estabelecer. Sem tirar coelhos da cartola, pombas do lenço ou achar na palma da mão alguma carta fora do baralho. Não significa isto desconhecimento do ‘ilusionista’: “Na era do photoshop toda a fotografia é ilusão e claro que aprendi a fazer todos os truques”, assevera irónico. Mas remete o efeito ilusório ao olhar de quem vê ou lê: “Cabe ao ‘leitor’ decidir como quer olhar. Uma fotografia é uma fotografia é uma fotografia. Tudo o resto é poesia”. E acrescenta: “O leitor é convocado. A partir daí o livro é dele. Pode começar pelo início, pelo meio, pelo fim. Pode mesmo tentar encontrar a solução, se é que existe. Pode tentar levitar um copo, como eu o faço na última imagem. É importante ainda existirem coisas que não podemos compreender inteiramente”.
Daniel Blaufuks pensa publicar uma série destes “rascunhos” fotográficos, a um ritmo trimestral. Assim as vendas permitam a continuidade do projecto, já que não conta com qualquer apoio. E os ‘cadernos’ seguintes podem ser “quase tão inexplicáveis” como o primeiro que já está nas livrarias. O fotógrafo tem, aliás, vários livros de fotografia publicados. Começou logo em 1991, com o magnífico My Tangier, resultado de uma expedição à mítica Tânger, ao encontro do escritor norte-americano Paul Bowles – autor de Deixai a chuva cair ou Um chá no deserto, entre outros -, que ali escolheu viver, até à sua morte em 1999. “Gosto de alguns livros de fotografia”, diz. “Gosto de os fazer e ver na mão de outras pessoas. Os livros são democráticos. Todos podemos levar um para casa”. É o que pede o seu Caderno, sem alarde, nem outro teaser que não seja o das suas desejáveis imagens, todas dispostas ao centro da página, possibilitando também um certo efeito cinético, num desfolhar rápido. “A opção gráfica é a que este trabalho pedia: o senhor Bartleby tenta fazer habilidades nas horas vagas”, diz o fotógrafo, invocando de novo as ligações literárias do seu trabalho. E nele, afirma, o processo de feitura das imagens pouco importa: Todos nós temos hábitos. Fotografar, pensar, ler, escolher. Eu fotografo, eu penso”.
Soa algo cartesiano e bem se poderia arriscar a máxima “Leio, logo fotografo” ou “Existo, logo fotografo”. Tanto pelo facto de ter encontrado na fotografia uma linguagem própria como pela natureza da sua fotografia. Fernando Pessoa, José Saramago, Joseph Conrad, Ernest Hemingway ou Graham Green fazem parte das suas afinidades literárias e estão implicados na sua obra, ao correr dos tempos. A próxima exposição de Blaufuks, a inaugurar a 17 de Março, na Galeria Carlos Carvalho, em Lisboa, intitula-se O oficio de viver e cruza o universo de outro dos autores da sua particular estima, Cesare Pavese. Blaufuks parte da escrita dos diários do escritor italiano para constituir uma série de fotografias, encenações do quotidiano, capazes de reflectir sobre a banal organização dos dias e a um tempo, sobre a própria prática da arte: “A fotografia como exercício
diário, a fotografia como razão para estar vivo. Ter um trabalho para ter direito ao descanso. Sentir-se útil, sentir-se em paz, não desistir”, como se pode ler na memória descritiva da exposição. E noutro passo: “A série é composta por trabalhos minimalistas, quase tableaus caseiros da banalidade do quotidiano, encenados propositadamente para este trabalho em espaços recolhidos e com pouca ou nenhuma ligação com o mundo exterior. São peças íntimas viradas para si mesmas, como quem escreve um diário. E quem escreve um diário tem a nítida consciência de que outro o lerá um dia mais tarde. O conjunto de trabalhos, algo diarista, mas que pouco ou nada relata, remete não só para a nossa própria memória pessoal, como igualmente para representações e simbolismos presentes na Pintura e no Cinema e que fazem parte da memória comum da nossa civilização”.
A memória é ainda o lastro de outra exposição que Blaufuks irá apresentar, no início de Abril, no espaço Carpe Diem, também em Lisboa. O nome deixa-o desde logo claro: “A memória da memória”. Mostrar-se-á um filme, Carpe Diem, sobre a memória do próprio espaço expositivo, e um trabalho em fotografia “A memória dos outros”, criado a partir de filmes privados. Ambos os projectos, como adianta o texto de apresentação, “debatem-se precisamente com essa impossibilidade de aceder inteiramente à memória alheia, dado esta ser uma experiência sensorial e espacial, transmitida principalmente através de registos falados, escritos, fotográficos ou fílmicos, logo através de uma memória dessa memória (evocação). Simultaneamente estes dois trabalhos realçam a importância dos arquivos de memórias como um elemento de transmissão e como base essencial para o conhecimento”.
Enquanto prepara uma exposição para inaugurar a 2 de Maio, em Essen, na Alemanha, Daniel Blaufuks, que também trabalha em cinema – Black/white e Sob Céus estranhos são as suas primeiras obras – ou em cenografia, além do fotojornalismo ou da fotografia de moda, que marcaram o início do seu percurso, está a montar um filme que rodou na ilha de S. Vicente, em Cabo Verde, uma vez mais sobre a memória, desta feita do próprio cinema, naquela ilha.
E de reter na memória são os Cadernos de Blaufukss. Espera-se que saia na Primavera o segundo dessa colecção de anotações do ofício de fotografar.