Entre 1949 e 1951, os pais do militante comunista Guilherme da Costa Carvalho visitaram o filho por duas vezes no campo de concentração, onde estava desterrado. No livro Tarrafal, João Pina mostra as espantosas fotografias então tiradas pelo seu bisavô Luiz e publica algumas das mais de 800 cartas trocadas entre os pais e o filho.
Era uma vez… Assim costumam começar todas as grandes histórias, não apenas para crianças mas também para adultos. E este livro bem poderia arrancar com um “Era uma vez uma caixa de sapatos…” Uma caixa daquelas de papelão grosso e resistente ao tempo e à humidade, que guardava, intacto, um segredo familiar com 70 anos e cuja descoberta deu lugar a um riquíssimo filão afetivo e memorialístico.
Foi em 2019 que Herculana Carvalho mostrou ao filho João Pina (JP) a tal caixa de sapatos, onde acondicionara cuidadosamente o arquivo fotográfico de Luiz Alves de Carvalho (avô de Herculana e bisavô de João) sobre o Tarrafal. Um acervo notável de imagens registadas nas duas visitas que fez, em 1949 e 1950, àquele campo de concentração, para onde fora desterrado o filho Guilherme. Além das fotos, havia ainda cerca de oito centenas (sim, 800!) de cartas trocadas entre os pais e o preso, meticulosamente arquivadas em dossiês, um material único e inédito.
Acontece que Guilherme da Costa Carvalho não era um preso qualquer. O pai Luiz era o corretor da Bolsa de Valores do Porto, pertencente à (grande) burguesia nortenha. E Guilherme, militante clandestino do PCP, que havia sido preso em 1948, viria a ser um dos quadros heroicos e míticos do partido, averbando quatro prisões e duas fugas coletivas, ambas espetaculares: em janeiro de 1960, do forte de Peniche, com Álvaro Cunhal, e em dezembro do ano seguinte, da cadeia de Caxias, no célebre carro blindado de Salazar.
Bisneto de Luiz Alves de Carvalho, neto de Guilherme da Costa Carvalho (e filho de Joaquim Pina Moura), o fotógrafo JP andou quatro anos a “casar” as imagens com as cartas dos antepassados, que não conheceu pessoalmente, a investigar, a fotografar e a escrever este livro.
Fotografias como “prova de vida” Comecemos pelo mais surpreendente, as imagens. O livro inclui cinco blocos de fotografias: dois com a assinatura do autor, João Pina, um fotógrafo não apenas conhecido e reconhecido, como premiado; e os restantes três blocos da autoria do bisavô Luiz, cego de uma vista, e que constituem a grande novidade e revelação do livro. É muito fácil distingui-las: as do bisavô são a preto e branco, enquanto as do bisneto são a cores. Pina pensa que terão sido feitas com uma câmara Rolleyflex de médio formato, com negativos quadrados (6X6cm).
Um primeiro bloco são imagens de 16 tarrafalistas, o primeiro dos quais é o filho do improvisado fotógrafo, cuja imagem, de resto, abre o livro, um Guilherme da Costa Carvalho sorridente e jovial, de bigode, com aspeto saudável, descontraído, mãos nos bolsos, camisa branca lavada. Estes são sinais comuns a quase todas as restantes fotos, que se destinavam a ser enviadas às respetivas famílias, que não os viam desde que haviam sido desterrados há quase 15 anos para aquele lugarejo perdido da ilha cabo-verdiana de Santiago. Constituindo o que JP classificou acertadamente como “uma prova de vida” junto dos familiares e amigos, e não para serem publicitadas, compreende-se que todos se apresentem na fotografia a preceito: com bom aspeto, roupa lavada e engomada, por vezes de fato completo e gravata, bem penteados e barbeados, ainda que raramente sorridentes.
Era assim que cada um deles desejava que os seus entes mais queridos o vissem, a imagem, quem sabe se a última, que gostariam que perdurasse nas suas memórias e corações. Se há um padrão que sobressai em todas elas é a enorme dignidade que transpiram – desde o mais velho, Bernardo Casaleiro Pratas (n. 1899), um anarco-sindicalista que esteve no campo 17 anos consecutivos, que figura de óculos, boina basca e lapiseira no bolso da camisa, a ler uma edição recente da revista O Século Ilustrado, até ao mais jovem, o comunista Josué Martins Romão (n. 1918), envolvido na Revolta dos Marinheiros, que ali passou 16 anos, preferindo mostrar-se impecável de fato e gravata.
Flores em todas as campas O segundo bloco é, em simultâneo, um levantamento e uma homenagem. Um levantamento de todos os prisioneiros que morreram na primeira fase do campo, entre 1936 e 1948. As fotos são propositadamente muito semelhantes: a esposa do improvisado fotógrafo a depor um ramo de flores na campa de cada um dos 32 mortos – vítimas de malária e febres várias, de uma alimentação deficiente, de água inquinada ou simplesmente de tortura na célebre “frigideira”. É uma sequência muito impressiva de 16 páginas, cada uma com duas fotografias ao alto, sem legenda, todas idênticas, até na forma como Herculana Rosa se veste, mas todas diferentes, porque diferentes são os nomes e as datas inscritas na lápide de pedra. Como escreve João Pina, a bisavó Herculana “foi mãe de todos por uns dias”.
Alguns dos nomes são bem conhecidos, com lugar de destaque na resistência à ditadura, como Bento António Gonçalves, o segundo secretário-geral do PCP, e Mário dos Santos Castelhano, o anarcosindicalista que liderou a Confederação Geral do Trabalho (CGT). A esmagadora maioria dos mortos seriam ou comunistas, ou anarcosindicalistas, ou republicanos, ou maçons; ninguém cuidou de saber como prefeririam ser sepultados, razão pela qual as campas são todas iguais, encimadas com uma inevitável cruz. Nem na morte as suas crenças foram respeitadas.
Esta sequência é igualmente uma homenagem: a todos e a cada um daqueles mortos, para que não caíssem no esquecimento. E uma acusação feroz, como que individualizada, ao regime de Oliveira Salazar, que os desterrou e deixou morrer no Tarrafal, então batizado, com toda a propriedade, de “campo da morte lenta”.
Fotos dos familiares para os presos O terceiro grupo de fotos captadas pelo bisavô de JP é muito curioso e terno. Destinava-se a retribuir as imagens dos presos que o autor, uma vez chegado ao Porto, fez questão de entregar pessoalmente às respetivas famílias. Era a vez, agora, de os familiares e alguns amigos se fazerem fotografar, encarregando-se o autor de as fazer chegar aos tarrafalistas, para deleite de cada um dos presos, que voltaram a poder ver os seus. São 22 imagens, das muitas que Luiz fez e que o bisneto foi obrigado a selecionar, por razões óbvias de espaço, mas também de qualidade. Uma delas reúne 13 familiares do marinheiro comunista Fernando Vicente (n. 1914), de três gerações, quase todas mulheres, onde não é possível iludir a pobreza daquela gente. Compreensivelmente, surgem três imagens enviadas ao filho Guilherme, uma das quais, que encerra este bloco, é dos próprios pais, Luiz e Herculana, na neve da Serra da Estrela.
A contrastar deliberadamente com as fotos do bisavô, as de JP são, como se disse, a cores. O grupo mais numeroso é de imagens de Cabo Verde na atualidade e acabam por ser um tributo a um povo que, após a independência, conseguiu fazer daquelas ilhas um país a muitos títulos exemplar. Um subgrupo são retratos de uma dezena de tarrafalistas da última fase do campo, destinado a guerrilheiros ou militantes dos movimentos de libertação que lutaram contra o colonialismo português na Guiné, Angola e Cabo Verde. Relevo para o escritor angolano Luandino Vieira, do MPLA, que ali penou durante oito anos e que, surpreendentemente, confidenciou “que passou ali alguns dos melhores anos da sua vida”. Na visão do autor de Luuanda, o Tarrafal “não tem cor” e “tem que ser fotografado a preto-e-branco, porque tem aquele tom de terra cinzenta que não é possível captar a cores”. Nada convencido, JP decidiu-se a “contrariar” o romancista, e com sucesso: “Fui para Cabo Verde olhar para as cores. E encontrei-as”.
Mais de 800 cartas em dois anos Se as imagens são simplesmente admiráveis, as cartas não o são menos. Durante os quase dois anos que Guilherme da Costa Carvalho expiou no Tarrafal, ele e os pais (se bem que escritas sempre pelo pai) trocaram cerca de oito centenas de cartas, ou seja, uma média de mais de duas por dia.
A explicação para tão vasta correspondência é dada num telegrama enviado pelos pais a assinalar um aniversário da detenção de Guilherme: “Nosso querido filho [,] hoje como sempre desde que partiste [,] todos os dias [,] todas as horas [,] todos os minutos [, e] todos os segundos da nossa vida estamos contigo [.]” Diversa mas convergente foi a razão apontada pelo filho: “Eu vou procurando viver sem pensar que estou preso, é por isso que vos escrevo muito, pois, enquanto vos escrevo, é como se estivesse aí, apenas longe de vós, mas em liberdade.” Numa outra missiva dirá, simplesmente: “Aqui estamos nós com um único motivo de conversa: as saudades dos nossos, as perguntas sobre os que muito amamos.” E num desabafo: “Grande amparo para nós são as palavras – inesquecíveis – dos nossos.” Tanto escreveu Guilherme que, a dada altura, se lhe esgotaram os blocos de papel de carta, queixando-se igualmente da escassez de bicos para lapiseiras…
Meticuloso, o pai guardou todas as cartas (o original das do filho e uma cópia das suas), em dossiês. São cartas por vezes longuíssimas, manuscritas as de Guilherme, frequentemente datilografadas as do pai Luiz, o que obrigou João Pina a uma difícil seleção. O arco temporal tem início a 14 de setembro de 1949, véspera da saída de Guilherme do forte de Peniche, com o preso a escrever de noite, com destino ainda desconhecido mas que seria o Tarrafal. Termina a 14 de abril de 1951, com mais uma carta do deportado, que ainda não recebera a carta do pai, de oito dias antes, com a desejada e ansiada boa nova: “O Snr. Ministro da Justiça, depois de ouvir o Snr. Diretor da Colónia, determinou o teu regresso da Colónia.” Em maio, com efeito, após 21 meses de desterro, foi transferido para a fortaleza de Peniche.
As cartas, quase sempre transcritas na íntegra, são muito comoventes e abordam todo o tipo de assuntos. Uma ternura infinita é a sua marca de água. “Meus muito queridos Pais” ou “Paizinho” e “Mãezinha”, é a forma habitual como Guilherme se lhes dirige, nunca os tratando por tu. A que o pai responde, invariavelmente, com “meu amado e adorado Filho”, ou “meu muito querido e adorado Filho”. Sabendo que as cartas eram censuradas, no sentido em que eram lidas pelas autoridades prisionais antes de serem entregues aos destinatários, compreende-se que a política só seja ventilada marginalmente e num tom porventura codificado. O suficiente para se perceber que pai e filho não comungavam exatamente da mesma ideologia. Ainda assim, dando provas de extrema tolerância e compreensão, o pai jamais o recrimina. “Ideias políticas não sou eu que as discuto nem sou eu que as vou condenar. Sei somente que te eduquei no caminho da honra, da Justiça e do dever, tu sempre assim o seguiste com a felicidade para mim de nunca na minha vida te ter censurado qualquer ato da tua vida, nem mesmo aqueles pelos quais para aí foste.” Coincidência, esta carta é datada de 25 de Abril de 1950… Cartas virtuais ao avô e ao bisavô
O diálogo, no entanto, é tripartido, porque JP cedo se intrometeu na conversa, dirigindo cartas, necessariamente virtuais, ora ao avô Guilherme, ora ao bisavô Luiz. Numa delas, de setembro de 2019, conta: “Acabo de abrir uma caixa de sapatos, e encontrei dentro dela mais caixas e envelopes, todos cheios de fotografias, negativos e provas de contacto”, entre as quais a sequência das imagens da bisavó Herculana junto às campas. “Sem me dar conta, as lágrimas começaram-me a escorrer pela cara, e as mãos tremiam. Não era tristeza, mas pura emoção.”
As cartas de JP servem para contextualizar o diálogo de há 75 anos entre os familiares que não chegou a conhecer e são uma espécie de catarse de um drama que marcou toda a família. Não por acaso, numa das suas cartas imaginárias, endereçada em 2023 ao avô Guilherme a partir de Nova Iorque, onde vive, confidenciou: “Ao fim de quatro anos a trabalhar sobre o Tarrafal (…), hoje, pela primeira vez que me lembre, sonhei contigo.”
As cartas revelam que, durante dois anos, os pais de Costa Carvalho abasteceram regularmente não apenas o filho mas os demais presos com alimentos variados e em quantidade: “de bacalhau a carne enlatada, frutos secos, conservas de sardinha e até lampreia em lata!” Incluindo caixas de garrafas de champanhe, uma vez que, à época, se acreditava que “era bom para curar febres”. Para a malária, que tantas vítimas fizera anos antes, forneceram doses bastantes do fármaco Atebrina.
O facto de as cartas terem sido numeradas permitiu verificar que todas elas chegaram ao destinatário. Ou seja, eram certamente inspecionadas, mas a censura, neste caso singular, não se traduziu em cortes ou rasuras, muito menos em apreensões. Foi o próprio recluso que o assinalou: “grande felicidade para nós, tudo o quanto vos tenho escrito vos tem chegado”. Apesar da inevitável autocensura, encontram-se referências pontuais mas significativas a diversas figuras da oposição, como os militantes comunistas Joaquim Pires Jorge, Humberto Lopes e Virgínia Moura, vultos republicanos do Porto como Olívio França e Santos Silva, escritores como Vergílio Ferreira e Maria Lamas, o escultor Júlio Pomar (que fora recrutado para o PCP pelo próprio Costa Carvalho) e o compositor Fernando Lopes Graça. Há ainda alusões a Henrique Galvão, já à beira de romper com a ditadura, e a Mário Soares, que o desterrado conhecera quando ambos estiveram encarcerados no Aljube.
A partir do Porto, os pais foram enviando para o Tarrafal exemplares avulso ou por assinatura de jornais como O Século e Jornal do Comércio, o mensário Jornal-Magazine da Mulher, de pendor neorrealista, e revistas estrangeiras como a Life, Tempo, Oggi e, surpresa das surpresas, a Labour Monthly, ligada ao Partido Comunista da Grã-Bretanha. Por barco, foram remetidos numerosos livros e dicionários, alguns deles encomendados junto da editora francesa Hachette.
As três fases do Tarrafal Com a chancela da Tinta da China, este livro é um contributo essencial para um maior e melhor conhecimento do que foi o Campo do Tarrafal, por onde passaram cerca de seis centenas de presos políticos. Já se sabia que tinha duas fases bem distintas: uma primeira, desde a abertura, em 1936, até ao seu encerramento provisório, em 1954; uma segunda, com a reabertura em 1961, por portaria do então ministro do Ultramar, Adriano Moreira, destinado a militantes dos movimentos independentistas, até 1 de maio de 1974, com a libertação dos últimos reclusos (angolanos e cabo-verdianos).
O livro assinala que, na sua primeira e mais tenebrosa fase, haverá que distinguir o período em que o campo foi dirigido pelo capitão Prates da Silva, de 1945 a 1954. Por efeito de uma forte pressão internacional, decorrente da vitória dos aliados e da revelação do que eram os campos de concentração no nazismo, o regime de Salazar foi compelido a alterar a forma particularmente dura e desumana como geria aquela “colónia penal”. Com Prates da Silva, os regulamentos e os métodos foram substancialmente alterados. O melhor indicador reside no facto de, a partir de 1948, não se ter verificado mais nenhum óbito. Houve mudanças sensíveis na alimentação, no vestuário, na saúde, no regime disciplinar, na correspondência, nos contactos com o exterior.
O testemunho escrito da família Costa Carvalho é eloquente. Num gesto pouco conhecido ou mesmo ignorado, mas revelado pelo autor, Prates da Silva chegou a vir “à Metrópole para argumentar junto do ministro da Justiça pelo regresso do avô e sobretudo dos residentes do campo, os marinheiros que tinham estado envolvidos na revolta de 1936 e que levavam já 16 anos a apodrecer no campo”.
Funcionário e dirigente do clandestino PCP, Guilherme da Costa Carvalho viria a ser preso mais três vezes. Ao todo, esteve detido mais de 16 anos. Gravemente doente, foi libertado em 1972. Faleceu aos 52 anos, de cancro, a 24 de março de 1973 – faltavam um ano, um mês e um dia para o 25 de Abril…
Os 50 anos do 25 de Abril têm sido aproveitados, e muito bem, para as mais diversas iniciativas: na historiografia, no registo das memórias, na divulgação didática, na pedagogia para a cidadania. Estimuladas pelas comemorações oficiais, as editoras não se têm cansado de lançar no mercado títulos sobre o Estado Novo, o 25 de Abril, a descolonização e a difícil e complexa construção da democracia. Quando se fizer o balanço final do muito que tem sido publicado no cinquentenário, este Tarrafal, de João Pina, estará seguramente entre os de maior valia.