No próximo sábado, 31 de dezembro, completam-se 60 anos sobre mais uma tentativa de derrubar a ditadura, que se pode começar por ‘caracterizar’ dizendo que nessa altura há 30 anos a oposição ao regime não disparava um tiro. O objetivo era levantar o quartel de Infantaria 3, em Beja, e houve três mortos e mais de uma dezena de feridos, um em perigo de vida – o capitão Varela Gomes, comandante operacional da ação. Pode também dizer-se que o chamado Movimento de Beja se insere numa sequência de acontecimentos, que o antecedem com características diferentes, após a campanha do general Humberto Delgado à Presidência da República.
Por outro lado, teve consequências na alteração do processo de luta contra a ditadura, passando as diversas formações políticas – FAP, PRP-BR, PCP e LUAR – a adotar a luta armada contra símbolos da ditadura e da guerra colonial. Efetivamente, alguns meses depois de Beja, o Partido Comunista (PCP) discute uma proposta de Francisco Martins Rodrigues sobre a adoção da prática política com recurso à ação direta. A proposta não foi aceite, embora a luta armada fosse tema de conversa entre alguns militantes, como Eurico de Figueiredo, Raimundo Narciso e outros.
Triunfou a posição do PCP, face a Beja, que lhe imprimia a fórmula putschista e, ainda, “a visão de que uma revolução não se inicia com a tomada de um quartel.” Dois anos depois, Martins Rodrigues e outros dissidentes do PCP criaram a FAP e prepararam-se para realizar pontualmente ações armadas. Outras formações políticas atrás referidas seguirão mais tarde o mesmo caminho, especialmente as Brigadas, lideradas por Isabel do Carmo, a LUAR, liderada por Palma Inácio, e a ARA do PCP.
Até então, as diversas formações políticas agregadas na altura traduziram a sua ação contestatária, ao longo de décadas, e com grandes sacrifícios, em publicações clandestinas, com o objetivo de consciencializar a comunidade para ações de greves e de outras formas de contestação, na almejada ideia de provocar uma sublevação geral popular, capaz de derrubar o regime fascista. Todavia, paralelamente a este modo de exercer oposição, havia personalidades que consideravam o levantamento de massas e a insurreição geral uma esperança quimérica.
Acreditavam, por outro lado, no modelo da I República, em 5 de Outubro de 1910. Que se deveria espoletar um movimento de iniciativa militar ao qual a população aderiria, como veio, aliás, a verificar-se no 25 de Abril. Fernando Piteira Santos, António Lopes Cardoso, Carlos Veiga Pereira e outras personalidades ligadas à Seara Nova, que participaram no “Movimento de Beja”, tinham esta visão, assim como Francisco Sousa Tavares e outros que haviam participado na chamada “Revolta da Sé”.
O clima político gerado pela candidatura do general Delgado conduziu à ideia de que se estavam a criar as condições para desencadear uma ação com as componentes militar e civil. A declaração espontânea (de Delgado), “obviamente demito-o”, a Salazar, dessacralizou o ditador e o Estado Novo. Meses depois, logo em 11 de março de 1959, está preparado um movimento com mais de uma centena de elementos conjurados, os militares comandados pelos majores Calafate e Pastor Fernandes, e os civis por Manuel Serra. O movimento autossuspende-se no próprio dia em que estava para eclodir, quando o governo já se havia refugiado no Quartel do Carmo, cujo oficial de dia estava implicado na conspiração.
Em nota à margem sublinhe-se que o então Presidente da República, Craveiro Lopes, sabia desta ação, através dos contactos com o capitão Almeida Santos. Aliás, já em 1955 Craveiro Lopes admitia contactos com oficiais oposicionistas, como o capitão João Varela Gomes, colocado (como eu) no Grupo de Artilharia Antiaérea, instalado na fortaleza da Cidadela de Cascais, na qual o Presidente passava os meses de Verão.
A partir de 1960 intensifica-se a pressão internacional sobre o Estado Português, Assim:
1) A ONU declara o direito à autodeterminação das colónias portuguesas, depois de nesse ano terem ascendido à independência 16 colónias africanas;
2) Em janeiro de 1961 o sequestro do paquete “Santa Maria”, comandado pelo capitão Henrique Galvão, constitui a mais importante ação desencadeada pela oposição, com três importantes países, membros da NATO, a considerarem que não se tratava de um ato de pirataria, como pretendia Salazar, mas de denúncia de um regime autoritário;
3) A 4 de fevereiro inicia-se a guerrilha pela independência de Angola, com ataques do MPLA à polícia e outras instituições públicas e, no mês seguinte, a UPA mata três centenas de colonos brancos no Norte de Angola;
4) Aa 28 de março – uma semana antes do primeiro embarque de tropas para Angola para contrariar as ações de guerrilha desencadeadas – o general Botelho Moniz, ministro de Defesa, escreve uma carta a Salazar em que afirma expressamente: “O quadro da situação política atual […] está confinado a valores políticos gastos” – leia-se a manutenção militar do colonialismo. Salazar ignora a situação e, em vez de procurar soluções políticas, proclama um recurso militar único com a frase “Para Angola em força”.
Semanas depois, dá-se a “Abrilada de 61”. Botelho Moniz, juntamente com o secretário de Estado do Exército, o então tenente-coronel Costa Gomes e quase todos os comandos do Exército, tentam um golpe de estado – palaciano porque recusavam qualquer confronto militar e por considerarem que o poder militar que reuniam era suficiente para exigir a demissão do chefe do Governo, numa primeira fase, e depois, também, face às suas hesitações, a de Américo Tomaz, que sucedera a Craveiro Lopes na Presidência.
Enganaram-se. Na 2ª feira seguinte, depois de um normal fim-de-semana, tinham a PIDE à porta dos respetivos ministérios a dizerem-lhes que não podiam entrar, tinham sido demitidos. Dias depois, Costa Gomes publica, no Diário Popular, uma carta aberta com a seguinte ideia: a “função militar” na manutenção das colónias resumia-se a ganhar “o tempo” para que fosse encontrada uma “solução política” (aspas minhas).
A resposta política a este avolumar de situações foi a ditirâmbica abolição do Estatuto do Indigenato, que discriminava os cidadãos das colónias segundo o “nível de europeização” – falar português, religião, riqueza, etc. A partir desta abolição todo o povo das colónias passou a ser “português”. A realidade é que muitos já lutavam para ser independentes.
Em novembro, elementos da oposição portuguesa no exílio fazem uma original ação de sequestro de um avião, da TAP, que lança sobre Lisboa e outras cidades folhetos contra a política do regime, assinados pelo capitão Henrique Galvão. Neste mesmo mês de novembro encena-se a farsa das eleições legislativas, o que dava sempre alguma animação oposicionista. Chegados a dezembro, sempre de 1961, no dia 4 fugiram da prisão de Caxias oito importantes dirigentes do PCP, entre os quais o atual conselheiro de Estado Domingos Abrantes, com grande gáudio nosso no carro blindado que tinha estado ao serviço de Salazar. E no dia 18 dá-se a integração de Goa, Damão e Diu na União Indiana.
Salazar impunha a política colonial a todos os territórios sem distinção: ignorava a capacidade militar de cada opositor e a especificidade da relação colonizador colonizado. Conforme relatos dos embaixadores dos EUA em Nova Deli (John K. Galbraith) e em Lisboa (Charles Elbrick) o Pandita Nehru tentou efetuar uma integração conservando os aspetos culturais, a língua e alguma autonomia, o que Portugal recusou. A invasão efetuou-se com enorme superioridade de forças, impedindo a resposta militar e a sinistra intenção que Salazar expressa no último telegrama enviado a Vassalo e Silva: “Não prevejo a possibilidades de tréguas nem prisioneiros […], sinto que apenas poderá haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos.”
Este clima contribuiu para que a ação em Beja eclodisse negligenciando a sua preparação, dado estarmos convencidos de que o espoletar da ação se repercutiria pelo país. Era a terceira vez que os civis iam a Beja e os militares, em condições menos convenientes, sentiram que não poderiam adiar. Fracassou pela descoordenação entre militares e civis, e também só entre militares, por factos que não se previam e por circunstâncias casuais: presença do 2º comandante no quartel, que estava de prevenção; impossibilidade de formar e sair com a Companhia de Intervenção; neutralização do comandante operacional da ação; intempérie que apagava frequentemente a luz do quartel e da cidade.
Com o fracasso da Ação de Beja, o país iniciava no mesmo ano uma guerra de 13 anos e tivemos de esperar, porquê tanto tempo?, pelo 25 de Abril.