Eu vi chegar. Eu previ que isto ia acontecer. Comprei o creme para as rugas, segui as indicações do site brasileiro de vida saudável, passei mais tempo no campo, andei a pé, corri na passadeira, tomei banhos de sol para reforçar a vitamina D e resguardei-me na sombra dos raios ultravioleta.
Eu vi chegar, eu previ que isto ia acontecer. Marquei consulta no nutricionista, fiz alimentação macrobiótica, segui a dieta paleolítica e depois uma outra que já não me lembro bem do nome, comi legumes e fruta em abundância, bebi muito água e pouca cerveja, li os rótulos de todos os frascos antes de os comprar, controlei a tensão arterial, o colesterol, os diabetes, usei sempre o preservativo, nunca abri conta no tinder.
Eu vi chegar. Eu previ que isto ia acontecer. Nos tempos da pandemia, usei máscara, viseira, luvas e gel desinfetante, continuei a lavar regularmente as mãos depois disso, evitei usar casas de banho públicas e aventuras de uma só noite, dediquei tempo à família e ao lazer, resolvi sodokus, segui as instruções dos livros de autoajuda, pratiquei yoga, tai chi e meditação transcendental.
Eu vi chegar. Eu previ que isto ia acontecer. Viajei de avião apenas em companhias credenciadas, não andei por cidades com risco de ataques terroristas, nunca fui a zonas do mundo com doenças contagiosas e maus serviços de saúde, dormi sempre um mínimo de sete horas por dia, bebi chás medicinais, experimentei elixires, abracei árvores para me sentir mais próximo da natureza, fiz caminhadas pelas montanhas, mas sem nunca tentar alcançar os picos mais altos e mais perigosos.
Eu vi chegar. Eu previ que isto ia acontecer. Doei uma parte das minhas economias à ciência, a institutos que se dedicam intensamente à busca da cura de cancros e doenças raras, li calhamaços médicos, publicações científicas, especializei-me em medicina de ponta, apesar de não ser licenciado na área, cumpri à risca as indicações dos médicos, dos laboratórios, desliguei o wifi durante a noite, não usei bluetooth.
Eu vi chegar. Eu previ que isto ia acontecer. E fiz tudo o que poderia ser feito para o evitar. Contudo, a minha pele está desarreganhada, as pernas mal se movem, os pulmões exaustos e o médico… o médico, que é um rapaz jovem. diz-me que apesar de tudo o que eu agora já não há nada a fazer. Se ao menos acreditasse em Deus poderia ter o consolo da promessa de uma vida eterna. Mas eu sempre acreditei que a ciência havia de chegar à imortalidade… e talvez ainda chegue, simplesmente tal não aconteceu no meu tempo. O médico observa-me com uma curiosidade ternurenta. E eu pergunto-lhe: “Doutor, acha que se guardarem o meu ADN num frasquinho me poderão ressuscitar um dia?”J
Vida eterna
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