O projeto de resolução do Chega [na Assembleia da República] de dar prioridade, no acesso gratuito às creches, a crianças cujos pais estejam empregados levanta vários problemas e de vários pontos de vista- Proponho-me sintetizar aqui alguns desses problemas e encará-los de um ponto de vista educacional.
Felizmente, a proposta suscitou um debate na Assembleia Regional dos Açores que a comunicação social classificou de “aceso”, mesmo “inflamado”, o que não impediu a resolução de ter sido aprovada a resolução com os votos do partido proponente e dos partidos da coligação de Governo: PSD, CDS-PP e PPM (embora dois deputados – um do PSD e outro do CDS – tenham abandonado o plenário no momento da votação, honra lhes seja feita!). PS, BE e PAN votaram contra e a IL absteve-se.
A primeira questão levantada é a discriminação dos pais que não trabalham, pressupondo-se que poderiam tomar conta dos filhos. Os termos em que essa distinção é feita permitem reconhecer os conhecidos preconceitos contra os pobres que a extrema direita alimenta procurando culpabilizá-los pela sua condição e descrevendo-os como uns parasitas sociais: “… e eu não posso admitir que uma mãe que está em casa deixe os filhos na creche e depois volte para casa e leve o dia todo a ver televisão sem cuidar do seu filho”, teria dito Olivéria Santos, deputada do Chega.
Outro deputado do mesmo partido na Assembleia Regional teria afirmado: “Os meninos do RSI ocuparam as creches enquanto os pais vão para o café, para o supermercado, para onde quiserem…” Ou seja, não só se introduz uma discriminação negativa entre os cidadãos, como se pretende justificá-la com frases preconceituosas reveladoras de desconhecimento das condições de vida e da cultura de parte da população, procurando bodes expiatórios entre os mais vulneráveis e introduzindo um critério não relevante, conforme disse o constitucionalista Bacelar Gouveia à Rádio Renascença.
Pior: não só reforçando uma desigualdade como criando uma nova desigualdade. E os termos utilizados recordam-nos inevitavelmente a forma como um governante do Norte da Europa se referiu aos habitantes do Sul, preguiçosos e bêbados… numa manifestação de racismo social e de incultura inconcebíveis no século XXI. Um olhar educacional sobre este problema levar-nos-ia a interrogarmos o nível cultural e de raciocínio moral dos seus defensores…
Uma segunda questão de que apenas se suspeita tem a ver com a preparação de medidas legislativas, a informação incompleta designadamente sobre o aumento da procura e dos custos para a satisfazer. Segundo o Expresso de 18 de julho, “não se sabe ao certo quantas crianças estão em lista de espera”. Mais: a 31 de outubro de 2022 terá sido anunciado pelo Governo o acesso gratuito às creches nos Açores. Em janeiro de 2023 tal medida foi implementada e “desde então o número de crianças abrangidas disparou”, mas o número de lugares disponíveis não acompanhou este aumento.
Talvez seja tempo de reconhecermos que qualquer medida deve ser devidamente preparada, assente em informação fidedigna, designadamente em termos de calendarização e custos, acompanhada durante um período suficiente e participada desde o início pelos principais interessados.
Mas a principal questão tem a ver com a finalidade desta medida. Trata-se de auxiliar o mercado de trabalho ou de promover o desenvolvimento integral das crianças, em especial das mais desfavorecidas, de combater a pobreza e de reduzir as desigualdades socioeconómicas, culturais e educacionais?
Se houver que escolher entre estas duas finalidades deverá prevalecer o Superior Interesse da Criança, tal como consignado na Convenção sobre os Direitos da Criança que, como instrumento jurídico internacional, atribui ao Estado particular responsabilidade na sua aplicação. Citando Marta Santos Pais no encontro comemorativo da ratificação por Portugal em 1990 da Convenção: “É o Estado que, pela ratificação da Convenção, assume perante a comunidade internacional o compromisso solene de criar as condições necessárias e adequadas ao exercício efetivo pelas crianças sujeitas à sua jurisdição dos direitos reconhecidos por este texto”.
Ora nos últimos anos os estudos das neurociências têm vindo a alertar para a importância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento cognitivo das crianças, contrariando a ideia de uma inteligência geneticamente determinada , inata e imutável e indo ao encontro de estudos longitudinais iniciados nos anos 60 que mostraram o impacto extraordinário da educação precoce, 30 ou 40 anos depois, sobre a qualidade de vida dos adultos que dela beneficiaram – sobre a continuidade da sua educação mas também sobre a saúde, o emprego, a estabilidade afetiva e até a redução das infrações à lei com as consequentes sanções prisionais.
Para além de estudos mais de natureza psicológica e sociológica, também economistas se pronunciaram sobre a questão. O Conselho Nacional de Educação referiu esse facto há vários anos, defendendo a alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo no sentido do reconhecimento da Educação ao Longo de toda a Vida (do nascimento até à morte) e a oferta educativa universal (embora não obrigatória) desde os primeiros meses.
Luís Aguiar-Conraria, no Expresso de 25 julho 2024, recorda, a propósito deste caso, o prémio Nobel da Economia James Heckman para quem “os anos em que o investimento em educação tem maior retorno são os primeiros anos de vida”. Foi graças a estes estudos e tomadas de posição que se começou a defender a oferta gratuita de creches a todas as crianças. No entanto, sublinhe-se que, se as creches em geral proporcionam a satisfação de necessidades básicas de alimentação, higiene e segurança, agora quer-se que a sua intencionalidade educativa seja reforçada e a qualidade da sua oferta educativa garantida, como aconteceu quando a oferta do jardim de infância se universalizou – e sabemos como essa oferta ainda necessitaria de ser aprofundada, designadamente na área metropolitana de Lisboa e nos Açores…
Graças à indiscutível habilidade da extrema direita para suscitar o pior do ser humano, assistimos à transformação de uma medida educacional positiva e consensual, com efeitos também económicos e sociais a longo prazo, numa medida discriminatória das crianças mais desfavorecidas e com consequências não só sobre os futuros adultos, não só sobre o desenvolvimento da Região e do País, mas ainda sobre o agravamento das desigualdades e da injustiça social.
Felizmente não andamos todos a dormir e certamente poderemos contar com a iniciativa de instituições públicas como o Tribunal Constitucional ou de associações privadas como o IAC (Instituto de Apoio à Criança), onde personalidades como Manuela Eanes ou Dulce Rocha, que têm dedicado a sua vida à defesa dos direitos das crianças certamente estarão atentas a este volte face…
Chega de não falar no Superior Interesse da Criança!