Para muitos, o Plano Nacional de Leitura (PNL) é um selo que se cola na capa de alguns livros atestando a sua qualidade. Ou uma comprida lista de clássicos aconselhados às escolas. Mas o PNL é muito mais do que isso. Com o objetivo de promover a leitura e combater a iliteracia, tem um raio de ação vasto que vai muito além da população escolar e do apoio aos professores. é isso que nos revela Regina Duarte.
Sucedendo a Teresa Calçada, Regina Duarte assumiu o cargo de Comissária do Plano Nacional de Leitura 2027 em setembro de 2022, tendo como subcomissária Andreia Brites. Doutorada em Literacias e Ensino da Literatura pela Universidade do Minho, com licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, variante de estudos portugueses e franceses – 1991-1995 pela Universidade Nova de Lisboa, foi coordenadora do Ensino Português no Reino Unido e Ilhas do Canal, no âmbito do Instituto Camões I.P.; adida para a Educação na Embaixada de Portugal em Londres, fundadora da Anglo-Portuguese School of London e presidente da Fundação Talent Education Trust.
JL: Neste momento, quais são os planos mais urgentes do PNL?
Regina Duarte: O PNL fez 15 anos. É uma árvore saudável que cresceu muito, com um trabalho reconhecido e muito interessante a vários níveis. Mas tal como em algumas árvores, talvez tenham crescido demasiados ramos, e o PNL está a precisar de algum recentramento. Havia uma diversificação grande de projetos em muitas áreas e havia algumas dificuldades em dizer para quê que servíamos.
Para quê que serve o PNL, então?
A nossa dupla missão é clara: trabalhar na promoção dos hábitos de leitura e aumentar os níveis de literacia do país. São tarefas ambiciosas, implicam trabalhar com as escolas, mas também com a comunidade e vários setores. Por exemplo, temos trabalhado como as câmaras municipais., para promover os planos locais de leitura. É uma vantagem que mais municípios os desenvolvam , pois assim há uma maior proximidade com a comunidade. Os planos locais podem adaptar-se ao contexto. É natural que uma localidade do interior do país, com a população envelhecida, tenha necessidades de leitura diferentes, do que a de uma zona urbana com a população mais jovem.
E no âmbito das escolas?
Sabemos que os nossos alunos têm dificuldades nas competências complexas de leitura. Está diagnosticado que tal acontece ao longo de todo o percurso escolar até à universidade. O que significa que mesmo tendo uma população alfabetizada, a proficiência de compreensão de leitura é baixa. Estou a falar do que vai para além da informação literal. Quando falamos de coisas fundamentais, como o espírito crítico, que é algo ainda mais necessário nos dias de hoje, para avaliar a informação e perceber quando estamos a ser manipulados. Dificilmente temos uma comunidade adulta com esta capacidade de espírito crítico.
O que estão a fazer para minimizar esse problema?
Criámos recursos pedagógicos para mostrar aos professores como se trabalham estas competências, nos diferentes anos de escolaridade, de forma progressiva e complexa. São recursos didáticos de leitura em que se exploram textos, em que as competências sejam trabalhadas.
O problema abrange o resto da população?
Sim, algo que me surpreendeu foi a ideia de que o PNL se dedicava apenas ao público escolar, quando na verdade serve pessoas de todas a idades. Por exemplo, estamos a trabalhar um projeto de um consórcio internacional de leitura para adultos, pensado em adultos com baixo nível d e literacia, para evoluíram nos sues contextos.
Uma das facetas mais visíveis do PNL é a lista de livros recomendados. Também se aplica a toda a população?
Sem dúvida. Vamos continuar com o portal com a recomendação de obras. O desafio é ao nível da comunicação. Temos 8700 no catálogo. Isso significa obviamente que não se tratam de leituras obrigatórias. Funciona antes como um selo de qualidade. Serve para leitores com poucos hábitos, que não sabem o que escolher, tenham uma orientação em termos de qualidade. Queremos aprofundar esse trabalho sugerindo listas de leitura temáticas, Fizemo-lo para a semana da leitura e para a feira do livro.
Com 8700 obras também se pode tornar difícil saber o que escolher…
O portal dá a possibilidade de filtrar por idade, proficiências de leituras, temas, etc… Mas gostava que o site fosse um pouco mais interativo, permitindo cruzar ainda mais elementos, como por exemplo o ritmo de leitura. Mas isso implica um investimento tecnológico maior. que para já não é possível.
Às vezes deparamo-nos com informações contraditórias… Como têm evoluído os hábitos de leitura dos portugueses?
É um fenómeno complexo. Tradicionalmente, somos um país que começou com níveis muito baixos de literacia no pós-25 de abril. Agora termos uma alfabetização de quase cem por cento, pelo que é natural que haja mais pessoa a ler. Todavia, culturalmente, não somos um país que leia muito. Temos de tentar operar essa mudança cultural. Mas sabemos as mudanças culturais são as mais difíceis e lentas, nenhum plano terá resultados imediatos. Mas há um fenómeno recente. Os jovens estão a ler mais e fazem-no por iniciativa própria. As redes sociais que tendemos a demonizar tiveram esta consequência lateral, altamente positiva, que é a de pôr os jovens a ler mais e a partilharem sugestões de leituras entre pares. E estas sugestões chegam a milhares de pessoas. É uma tendência global.
Recomendam-se livros uns aos outros?
Sim, e isso tem que nos fazer refletir sobre o facto de, enquanto adultos, falhámos no papel de sermos bons mediadores de leitura para as gerações mais novas. Eles não querem as recomendações da escola, nem dos pais. Por outro lado, querem os livros em papel. Escolhem ler em papel para descansar dos ecrãs.O livro como objeto começa a ser para os jovens como objeto de culto. Tudo isto aconteceu nos últimos três anos, mas com números muito expressivos. Estamos a falar dos 15 aos 34
E esses livros têm o selo do PNL?
[risos] De uma forma geral, leem uma literatura muito popular, de acesso mais simples e mais fácil, com temas ligados às suas inquietações… histórias de amor, relacionamentos familiares. No meio disto aparecem leituras de grande qualidade. Por exemplo, o 1984, do George Orwell, tornou-se novamente um sucesso de vendas, devido aos jovens. A Jane Austen está a ter um revivalismo enorme, porque num destes livros populares há uma personagem que está constantemente a ler Jane Austen. Então quiseram perceber porquê. Classificarmos este fenómeno com algo tonto e inconsequente parece-nos inconsequente da nossa parte. Esta ligação emocional e afetiva que estabelecem com a leitura fica lá. É mais fácil sugerimos leituras mais aliciantes a um jovem que já tem uma relação com a leitura. Devemos dialogar de forma aberta e sem preconceitos com este fenómeno.
Então a culpa dos baixos níveis de leitura não é dos jovens…
Quem está a ler menos não são as crianças, nem os jovens. A partir dos 34 anos é que está o problema. É um mistério. Porque é que temos uma população qualificada e alfabetizada, com acesso ao livro, mas opta por não ler? Estamos a falar com pessoas com autonomia de leitura, para quem o livro deixou de ser atraente. Como país não estamos ao nível de alguns países europeus, mas os nossos jovens estão ao nível das tendências globais.
A CONFERÊNCIA ANUAL: LITERACIA MEDIÁTICA E FINALIDADES DA LEITURA
A Conferência Anual do PNL decorre agora, durante o Festival Utopia, em Braga. O que nos espera?
Decidimos que queríamos manter a conferência anual do PNL em dois dias. Um dia em Lisboa, com o apoio da Gulbenkian, e um segundo dia noutra cidade do país para descentralizar e dar a oportunidade a mais pessoas de assistir. Entretanto, surgiu o desafio por parte do festival Utopia, em Braga, para realizar ali o segundo dia de Conferência, na pré-abertura do festival. Resolvemos dedicar o dia à literacia mediática.
Porquê?
O governo incumbiu o PNL de fazer o plano nacional para a literacia mediática. Como nós ajudamos, como sociedade, a ter mais espírito crítico, analisar e avaliar a manipulação que recolhemos, e saber se estamos a ser manipulados. E também a confiança que temos nas instituições. Isto não se coloca apenas no nosso percurso escolar, tem que continuar ao longo da vida.
Particularmente relevante em tempos de desinformação…
Demora muitas vezes a perceber se a informação que nos chega é verdadeira ou se estão a tentar manipular-nos. Na guerra entre Israel e a Palestina já assistimos à manipulação de imagens. E na guerra da Ucrânia houve manipulação de voz, numa mensagem de um alto responsável militar. É cada vez mais difícil de distinguir, mesmo para quem tem um nível elevado de literacia. Para quem não tem torna-se ainda mais complicado.
Isso trabalha-se nas escolas?
Sim, enquadra-se em quase todas as disciplinas. Tem a ver com todos os temas… cidadania, história, português. Trata-se de averiguar a credibilidade das fontes, a forma como a informação é apresentada, etc. Para a população adulta é mais difícil. Se pensarmos numa população que cresceu e viveu sem Internet, não foi preparada para isto e de repente tem de lidar com estes fenómenos tão complexos. Muitas pessoas recebem uma notícia falsa e partilham-na sem se aperceberem da sua falsidade. É um desafio ainda mais premente.
Como chegar à população adulta?
Temos de trabalhar com os diferentes agentes. Com os municípios, agentes de ação social. Há planos, como o de combate à pobreza, que têm já agentes no terreno. Temos de trabalhar com eles. Usar as estruturas que já existem, as associações sociais, os líderes informais.
O outro tema da conferência é “As finalidades da leitura”. De que se trata?
Perdemo-nos muitas vezes em falar de aspetos muito específicos e esquecemo-nos de ir ao essencial. Se soubermos bem para que queremos ler ficamos mais preparados e ter uma voz mais crítica e ativa. Não recebermos sempre por reação, mas pormo-nos na posição naquilo que nós queremos. Somos nós que decidimos o que quereremos na nossa relação com a leitura. Esperemos que a leitura resolva tudo. A leitura tem um papel muito importante no desenvolvimento pessoa, nas relações com os outros e como o mundo. Estamos a deixar espaço para isso? Ou estamos a dar apenas um mandato meramente de conhecimento sobre, que temos de conhecer autores para não ficarmos atrás?
Os jovens estão a recuperar essa relação pessoal, e estão a procurar a literatura como resposta para as suas inquietações pessoais. Como adultos apagámos esse papel. Investimos muito na literatura como conhecimento cultural, com grande aparato, essas opções em detrimento desse papel que a literatura tem há séculos, de ajudar-nos a dialogar com o mundo e com os outros.
São 15 anos de PNL: que balanço se pode fazer?
Temos um bom hábito de fazer a avaliação externa, por isso conseguimos saber alguns dados. O PNL tem mantido as questões da leitura e do livro presentes. Isto é um papel de consciencialização importante. Por exemplo, a ideia de que é importante a relação com o livro e que as famílias leiam para as crianças. Há uma valorização do livro. Em termos de diversidade de ofertas, há dados que mostram isso. Apesar da obrigação da escola de se lerem os livros que nem sempre serão os mais interessantes, há um interesse na escolha. Em termos de avaliação de impacto, é um trabalho que tem de ser feito paulatinamente. A discussão é importante. Aumentar os níveis de leitura tem sido lento, mas estamos no caminho certo.
A leitura em família continua a ser um ponto essencial…
Sabemos que é determinante no percurso pessoal e académico. É mais simples e fácil do que pensam. As pessoas sentem-se muito desinvestidas. Contar ou ler história com as crianças dá-lhe um capital imenso. Uma criança a que nunca contaram história entra com uma desvantagem de um milhão de palavras no pré-escolar.
O que se pode esperar para os próximos 15 anos?
Ter mais pessoas a ler e ter leitores conscientes e autónomos. Que criem comunidades e se sintam à vontade de falar e livros com amigos. Muitas vezes as pessoas sentem-se desinvestidas. Acham que há autoridades que podem falar de livros, mas que elas não estão autorizadas a entrar nesse mundo. Para nós é muito importante afastar essa ideia.
Como?
Apostamos muito nos clubes de leitura. São espaços que criam comunidade e são espaços de liberdade. Criámos uns tutoriais, pare que se percebe a que é muito fácil dar algumas dicas. E oferecer formação através do nosso laboratório. Damos instrumentos que as pessoas possam usar livremente.
Para que mais serve esse laboratório?
Criámos o laboratório PNL com a ambição para apoiar pessoa ou entidade, ou grupo. Qualquer um que tenha uma ideia, mas não saiba como a pôr em prática para o incentivo da leitura. O laboratório tem a vantagem de ser muito flexível. Podemos usar em diferentes fases do projeto. Pode estar já em desenvolvimento e não atingir os resultados pretendidos. Podemos, por exemplo, juntar parceiros, como já aconteceu. Às vezes as pessoas têm apenas uma ideia, e ajudamos a transformá-la num projeto.
Que outras iniciativas de podem destacar?
Plano de ação para a leitura, com 15 agrupamentos. Olharmos para os dados dos agrupamentos, ensiná-los a ler os dados, as áreas de intervenção que permitem identificar, como intervimos e o que tiramos dali para ser apicado no resto do país.