Pedi para colocar o meu café no meu termos e o empregado ao balcão disse-me, meio em suspiro, que não estão autorizados a tocar em material que não seja da casa, que pede muita desculpa, quando é interrompido pela voz rouca do senhor António que grita lá da cozinha – diz à miúda para se sentar cinco minutos a beber aqui o café. Tenho uns assuntos para tratar com ela!
Era esta a sua maneira de me fazer abrandar. Achava que eu levava uma vida demasiado agitada e que não percebia “nada disto”, que não era assim que se vivia, não era assim que se combatia, não era assim que se encontrava um lugar no mundo, que a sobrevivência era um equilíbrio entre o prazer e a raiva, entre a convicção e um medo profundo de se estar errado.
Eu nunca contrariava o senhor António. Nem mesmo quando me servia o que eu não lhe pedia.
Peguei no café e quando me virei para me sentar na única mesa redonda que o café tinha, esbarrei com uma pessoa que entrava, alvoroçada, no café. Era a Nadia. Não a via há anos. Entornei o meu café sujando-lhe a roupa. Ainda antes de me reconhecer e sem levantar a cabeça respondeu-me:
– Não faz mal, assim tenho mais uma desculpa para chegar mais tarde! Despedi-me! Vou só lá buscar as minhas coisas!
A Nadia era a única, do nosso grupo de amigas que tinha conseguido o emprego dos nossos sonhos.
– Olá Nadia!
– Amália? Não devias estar na…
– Sim… vou daqui a pouco… Estás bem?
– Não… como é que dizia a canção? Tudo vai mal para mim…
– Mas tudo vai mal porquê?
Passámos a infância a decorar canções e poemas que ouvimos os nossos pais a cantar. Nada destas músicas ou livros se ouviam na rádio ou se compravam em livrarias (que hoje eram monumentos com bilhete de entrada e tinham nas prateleiras apenas 10 títulos e quatro autores nas prateleiras traduzidos em 35 línguas). Tínhamos ouvido os nossos pais e tios e avós e bisavós a falar de Trovas do Vento que Passa, e de uma Grândola que chegou mesmo a ser sugerida para ser hino nacional e que agora só se ouvia na boca de alguns em cafés como este.
– Não aguento produzir mais um evento que me embrutece disfarçado de pérola artística e comunitária cheia de europa comum. Hoje recebi os artistas que vão fazer um espetáculo cá sobre paisagens para lhes mostrar os locais possíveis para a sua apresentação. Querem fazer o espectáculo numa floresta mas não querem bem uma floresta, porque uma floresta “a sério” tem muitos mosquitos ao final do dia e atrapalha um pouco a “fruição do espectador”.
Têm de escolher um local que seja acessível e que permita um trabalho artístico com a comunidade mas a companhia tem apenas três dias para vir ao local antes de vir montar o espetáculo. Pediram-me para “providenciar participantes dessa comunidade” mas convém que sejam profissionais pois é para constituírem uma banda musical que não toque muito bem nem muito mal. Também já avisaram que não pode ser um sítio mesmo descentralizado porque não se pode demorar mais de uma hora a chegar (a partir da capital, entenda-se, pois outro público da periferia poderia estar mais próximo, mas esse não interessa nada).
A floresta tem de ter trilhos para ser acessível, mas também tem de ser suficientemente “selvagem”. Tem de ter acesso a casas de banho e a eletricidade, mas não pode ter um café ou algo que indique que existe presença humana no espaço. Tem de ser fácil de montar e tem de ter a dose certa de espaços abertos e espaços com densidade florestal, para se poder desenhar um triângulo entre as diferentes performances que são sempre iguais em todos os países onde se apresentam, apesar de se apresentarem como um projeto site specific. Só a paisagem deve mudar e mesmo assim, se pudesse mudar o menos possível…
Tem de ser um espaço ao ar livre com árvores que seja suficientemente próximo do público de cada capital que acolhe o projeto e tem de permitir a acessibilidade e por isso deveria ter uma paragem de autocarro próxima do local e não se pode autorizar os espectadores a deslocarem-se em carro próprio até ao espaço, mas a equipa tem de poder chegar lá com camiões tire com todo o material hiper-pró high tech para poderem trazer os capacetes 3D, e as cadeirinhas para todos, o sistema de internet para que cada espectador com o seu telemóvel possa fazer download da folha de sala e da tradução de algumas peças para evitar o desperdício de celulose (porque o desperdício digital, apesar de ser tão ou mais grave, pelo menos não se vê) e para trazer as arcas frigoríficas que vão refrigerar os almoços que vão oferecer todos empacotados em saquinhos de plástico por causa das questões de higiene, e os contentores de água porque vai fazer um calor horrível e a peça dura sete horas para que todos tenhamos a experiência de estar isolados na floresta, e os ecrãs de leds e os auscultadores multifuncionais com os quais se termina o espetáculo com uma voz que se diz ser a mãe-natureza e que num tom de antigo testamento ameaça ficar cá quando mais ninguém conseguir sobreviver neste planeta.
Hoje pediram-me para abater uma árvore para gravarem o som da queda naquele exato lugar onde vão fazer o espetáculo, e ainda se riram da minha cara, dizendo-me que não deveria estar chocada com o pedido porque há árvores abatidas todos os dias.
Não aguento!
Trabalho num teatro que não é um teatro, é um banco que recebe milhões em fundos europeus comunitários para desenvolver projetos artísticos que na verdade são produtos criados numa lógica industrial, por artistas de países neutros ou que não fazem parte da dita comunidade mas que dela beneficiam, o que poderia ser ótimo e sem nada a opor se a bela e irrecusável proposta de partilha que se lê no papel não se traduzisse num cabaret tecnológico de 15 minutos por país e artista convidado que se reproduz sempre igual, sem que os próprios artistas se tenham de deslocar aos 200 sítios por onde o espetáculo itinera, e pago com o mesmo orçamento inicialmente distribuído pelos cinco parceiros de países diferentes.
Deixei de perceber o que faço, porque faço, para quem faço!
O caminho para o inferno, está cheio de coroas de padres…e de paletas de artistas!
Vim aqui porque quero perceber melhor como funciona essa vida de cornucópia!