Estes modos de pensar acerca do ato de ver são, para mim, a grande proeza de génio de Siza. Em Porto Alegre é muito claro: ele presenteou o Brasil com o melhor que é imaginável
A Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre (Brasil)
A obra de Álvaro Siza Vieira para a Fundação Iberê Camargo assenta ao pé do lago com uma força bruta, uma brancura gelada que contrasta com o Brasil e com a paleta do pintor, patrono daquela casa. É um cubo excêntrico que se fecha como cofre, respirando por seus braços robustos, quase cegos. Uma caixa quase cega, mas neste quase reside uma das suas mais surpreendentes características. As pequenas janelas não mostram simplesmente, elas fotografam. São janelas de fotógrafo, cortando no lugar certo para a imagem certa e que assiste à arte de ver. É claro que Siza já havia jogado com esta questão. Mantendo a referência aos espaços de arte, os janelões de Serralves despem o espectador do edifício. Quem está dentro assiste ao exterior como se o exterior entrasse ou o edifício se eclipsasse. Com a obra de Porto Alegre é um pouco o contrário. O exterior vê-se recortado, quase ficcionado, pelo edifício. O espectador veste o edifício e não pode abdicar dele, está subjugado, manipulado, não existe mais nada que independa do edifício uma vez transcorrida a porta de entrada. Estes modos de pensar acerca do ato de ver são, para mim, a grande proeza de génio de Siza. Em Porto Alegre é muito claro. E pouquíssimas poderão ser as exposições que ali se façam que consigam maior espanto quanto consegue o próprio espaço expositor.
Álvaro Siza fez o seu trabalho mas creio que superou a questão linear de corresponder a uma encomenda. Creio que ele presenteou o Brasil com o melhor que é imaginável, que é dizer que ali ficou plantada uma casa que, mesmo vazia, se tem como um tesouro de beleza, engenho e espiritualidade. Se fosse possível, diria que um dia tomariam aquela casa para dentro de outra, onde a poderiam proteger da chuva e do sol, para que nunca mais acabe.
Vejo Siza como alguém que edita a luz. É um sábio de acender e apagar, flagrar o clarão ou permitir a contenção como se a casa fosse essa página que espera ou que resplandece em demasia. As suas obras brancas convidam a uma narrativa por descobrir, convidam ao gesto original, porque ele faz a casa como quem simplesmente move a luz. Ficamos todos livres para o gesto, quero dizer, aquele torna-se o lugar puro da ideia, como se fosse passível de favorecer a ideia.
Talvez por acontecer como um movimento da luz, seu domínio, autorização e proibição, o que sentimos nas obras do mestre é sempre do foro espiritual. Há uma invariavel relação com a desmaterialização e consequente obrigação à interioridade e sugestão de transcendência. O corpo é rejeitado pelas casas de Siza. O corpo é recipiente do espírito em visita que, se dotado de grandeza, dilui na luz. Por isso são perfeitas as obras para a arte que constrói. No edifício que vira sobretudo claridade, as obras de arte pontuam como se pairando na própria luz. São os únicos corpos que importam. Elevam-se no convívio dos espíritos pela pureza admitida, induzida, da casa. Já sabíamos bem que observamos a arte como em prece, entendemos que Siza não cria senão certos templos. Não precisam de ser mais sagrados do que simplesmente prestarem um serviço ao deslumbre. O transcendente começa no que supera o comezinho, naquilo que faz da existência uma experiência de inesperado, instigador, sobressalto.
Na casa de uma amiga há um desenho pequeno de Siza. Uma pessoa rápida, abreviada, que parece estar sentada, talvez pensando. Parece-me alguém pensando. No pequeno papel, até um pouco displicente, demora a impressão de que nos compete, como observadores, esperar. A brancura poderá ser intensa, imensa, mas não impedirá que aquela linha discuta o seu movimento, o jeito como discursa acerca de uma ideia, acerca do que haveremos de, devagar, pressentir. Penso nisso quando pondero as grandes casas de Álvaro Siza Vieira. Pressentimo-las. Sobretudo pressentimo-las. Magníficas como são.
O Mestre
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