Em 2015, As Mil e Uma Noites, talvez o mais ousado filme de Miguel Gomes, entrou em Cannes pela ‘porta pequena’. O comité de seleção alegou que o filme era demasiado comprido (na verdade, divide-se em três parte e equivale a três longas-metragens), e exclui-o do concurso principal, selecionando-o apenas para uma das secções paralelas, a Quinzena dos Realizadores. Produtores e realizador não disfarçaram a desilusão, apesar de o filme ter ganho dois importantes prémios no certame. Em Grand Tour, o festival fez uma espécie de reparo histórico ao selecionar o filme para a secção principal. E o júri, presidido por Wim Wenders, fez-lhe justiça, ao distingui-lo com o prémio para a melhor realização.
Baseado num conto de Somerset Maughan e com Crista Alfaiate e Gonçalo Waddington nos principais papéis, Grand Tour oferece-nos o périplo pela Ásia, atrás das duas personagens: um homem em fuga e a noiva que o persegue.
Para esta ficção, Miguel Gomes filmou uma espécie de arquivo contemporâneo, cruzando a ficção com imagens documentais de cada um dos sítios por onde passa. O filme é falado em português e narrado em diferentes línguas asiáticas.
Miguel Gomes é um dos mais reconhecidos realizadores portugueses da atualidade. Começou o seu percurso, em 1999, com a curta-metragem Entretanto. Entre outros, a sua obra inclui filmes como Aquele Querido Mês de Agosto (2008), Tabu (2012), As Mil e uma Noites (2015) e Diário de Otsoga (2021, realizado com Maureen Fazendeiro.
JL: Já filmaste em África, tens um projeto no Brasil e agora a Ásia. A ideia é dar a volta ao mundo em filmes?…
Miguel Gomes: Tenho ainda outro projeto na Bretanha… Mas começo a chegar à conclusão de que, para mim, fazer filmes tem a ver com o desejo de partir, de preferência, à aventura (uma aventura o mais aventurosa possível). Existe uma separação clara entre aquilo que é o meu quotidiano e a ideia de fazer um filme.
Isso aplica-se mesmo a Aquele Querido Mês de Agosto, apesar de ser filmado em Portugal?
No caso, era partir para um território particular, em Portugal, com os seus próprios rituais e regras de funcionamento. Cabia a mim desvendá-las e expô-las no filme. Para partir não é necessário fazer milhares de quilómetros. Mas, no caso do Grand Tour, foram mesmo milhares: não só pela distância de Portugal, mas pelos quilómetros durante o próprio filme.
Ao mesmo tempo que há essa partida, deslocando o cenário do filme para locais que não dominas, mantém-se uma linguagem que une o teu trabalho… Como isso acontece?
A isso pode chamar-se o meu sistema nervoso, que engloba a minha sensibilidade, o sentido de humor, grupos de interesses. Tudo isso permanece ativo, esteja eu na Ásia, no Brasil ou na Europa. Em cada lugar, há oportunidades para o deslumbramento, para poder capturar coisas que falem comigo, porque são divertidas, bonitas, comoventes. Não acho que haja um território que tenha mais capacidade para me seduzir do que outro.
É um cinema de sedução e deslumbramento?
Não sou da família dos realizadores que querem dizer coisas. Não quero falar. Quero ver, filmar e mostrar. O deslumbramento tem a ver com nunca compreender porque é que nas Filipinas existe um desporto nacional chamado karaoke e o My Way é o objeto central. Não faço ideia porquê. Apenas contacto com esse fenómeno e tento captá-lo. Não sou eu que tenho de explicar essas coisas, somente partilho a minha fascinação não racionalizada por isso.
Também não fazes parte da família de realizadores obcecado pela realidade. Não é muito importante saber se aquele rio, efetivamente, não se pode subir…
De facto, o rio não se podia subir. Mas não hesitamos um segundo em enquadrar elementos que fogem à realidade, se isso tornar mais interessante aquele mundo paralelo que é o cinema.
Ao mesmo tempo, há no filme uma dinâmica de argumento, em que uma parte mais documental parece ilustrar emocionalmente a narrativa.
Gosto sempre de tentar fazer uma coisa e o seu contrário. Sou adepto dessa dialética. Quis criar mecanismos de narração e montagem, com um fluxo contínuo em que, mesmo nos momentos em que os personagens estão ausentes, eles pudessem de alguma forma estar presentes. A próprio natureza da proposta é descontínua. Passamos imagens de estúdio de 1918, ao lado de outras, com telemóveis e motos, ligadas ao nosso tempo de hoje. Acho divertido ver as respostas dos espectadores a isso. Há quem veja a continuidade, não perdendo de vista o Edward e a Molly; e há quem reaja à descontinuidade de forma positiva ou negativa, vendo dois mundos diferentes que se vão sucedendo, apesar de estar sempre a acontecer a mesma história. Usamos imagens de arquivo não do passado, mas sim do futuro (do futuro daqueles personagens). Apesar disso, tentamos que os personagens continuem a existir. Fazer um filme é sempre difícil, temos que tentar acertar e ver se as coisas funcionam. Mas para mim é irresistível a ideia de fazer dois filmes num só.
Não é a primeira vez que acontece…
Olhando para trás, penso que os meus filmes são sempre o resultado de um processo pré-definido, que pode passar por coisas muito diferentes. Por exemplo, no Mil e Uma Noites, a ideia foi criar ficção a partir daquilo que estava a acontecer na atualidade, sem poder antecipar nada, sem um argumento prévio – tivemos de escrever em cima do acontecimento e filmar o mais rapidamente possível. Em Diários de Otsoga, entrámos todos numa casa, num confinamento artístico, em que a única coisa que sabíamos era que íamos fazer um diário sobre esse momento, invertendo as suas páginas. O resto quisemos descobrir fazendo.
E no caso do Grand Tour?
Tirei a história de duas páginas do Somerset Maugham, que tinham o percurso e a piada que as mulheres são teimosas e os homens cobardes. Disse à produtora que, antes de mais, gostaria de filmar a viagem, fazendo uma espécie de arquivo, que iria integrar o filme. Por isso quis viajar, não só com os argumentistas, mas também com os diretores de fotografia e de som. Depois, em Lisboa, tratámos de fabricar ficção através destas imagens.
O filme divide-se em duas partes. É muito comum no teu cinema ficar exposta esta ideia de partes ou capítulos, usando mesmo separadores. O que pretendes com isso?
Fico muito fascinado pelo facto de haver uma estrutura visível, que parece definir muito as regras do jogo. Enquanto espetador, acho interessante entrar num filme e ver como funciona – porque os filmes não têm que funcionar todos da mesma maneira. Depois, a partir do momento em que se instala um modelo, que não oculto, começam as variações dentro desse quadro que parece ser muito normativo. É como acontece com o Alain Resnais: ele fabricava mundos com regras muito definidas que as mostrava. Por exemplo o Smoking /No Smoking, filme que se vai bifurcando e mostrando várias possibilidades. Ou É Sempre a Mesma Cantiga, em que os personagens começavam a cantar em playback standards da chanson française. Às tantas atirava à cara do espectador a mecânica do filme, mas depois aquilo era surpreendentemente livre apesar de estar tão pré-definido. No caso de Grand Tour, há uma comunicação entre o registo do real e o estúdio. E quisemos perceber que tipo de dialética pode nascer nessas passagens permanentes.
As personagens principais são inglesas, mas falam em português. Não seria esta uma oportunidade para conquistar novos mercados, fazendo um filme inglês, ao exemplo daquilo que tem acontecido com alguns realizadores europeus? Pensaste nisso?
Havia alguma pressão dos coprodutores para essa possibilidade, de um aproveitamento mais comercial do mercado, com a presença de alguns atores americanos ou ingleses. Então eu tomei a decisão de que no filme se vai falar tudo menos inglês. É verdade que é uma maneira de reverter a predominância cultural, o imperialismo linguístico. Embora eu não tenha qualquer problema com isso, porque aceito o cinema naquilo que tem mais de artificial. Há decisões que têm a ver com o sistema económico de produção de cada país. Se os americanos que filmam Roma antiga com toda a gente a falar com o sotaque do Bronx, não é isso que vai constituir um problema para mim. Tal como quando vou ver uma peça do Tchekov não me parece que a verdade da encenação da peça passe pelo facto de não ser falada em russo. A verdade do espetáculo passa por um mundo com convenções próprias, em que os britânicos passas a ser portugueses.
Ainda assim, reformulo a pergunta. É comum alguns realizadores europeus, quando chegam a determinado estatuto, deixarem-se tentar pelo mercado e fazer um filme em inglês. Depois de o prémios em Cannes, não sentes essa tentação?
Teria mais facilidade em responder a essa questão caso essa proposta tivesse aparecido. E parece-me que isso nunca vai aparecer. O prémio em Cannes é importante, e vai contribuir para expor o meu trabalho a uma escala maior. Contudo, o que pratico é demasiado singular ou caprichoso para ser digerido por esquemas mais industriais. Ninguém está à espera que eu me porte bem. Não estou a ver no horizonte esse tipo de convites da indústria. Vão sempre achar que eu não vou fazer um filme que agrade a um grande público. Mas, o que sei eu, se calhar daqui a uns anos vou estar a fazer O Senhor dos Anéis 20, ninguém prevê o futuro.
No Guardian dizem que o teu filme é, ao mesmo tempo, sofisticado, inocente e charmoso. Esta junção parece ser algo muito difícil… Como manténs a inocência dentro da sofisticação?
Tem a ver com o deslumbre, a capacidade de olhar para as coisas e dizer ‘uau’. Hoje em dia é cada vez mais difícil dizer ‘uau’, porque o mundo está mais decifrado, explorado, comercializado, empacotado de uma maneira que ninguém perca muito tempo a descobri-lo. A ideia do viajante que olha para alguma coisa e é uma surpresa total tende a extinguir-se. O mundo já vem empacotado ao estilo fast food.
No final de Grand Tour, repete-se a ideia de desconstrução do cinema, de que mostrar que estamos… É uma espécie de assinatura?
O filme sempre foi um filme, desde o início e não é uma questão de metacinema. As personagens do cinema são marionetas, seres de ficção, completamente falsos, que podem nos ajudar a conectar com a nossa vida real, com nós próprios e com o futuro. A falsidade é uma maneira de aceder a verdade.
É por isso que há tantas cenas de marionetas no filme?
As marionetas são imortais, podem sempre pôr-se de pé, mas nunca irão fazer parte da vida. O Eduard e a Molly, por mais que o espectador se conecte com eles, continuam a ser sempre marionetas. Não me interessa a psicologia das personagens, mas sim o espectador Desde muito cedo, está definido que aquelas personagens são criações da cultura ocidental e também da cultura asiática.
São personagens levadas por obsessões, uma da fuga e outra de perseguição…
O ponto de partida é esse: dois personagens que estão em movimento, quase em antítese. O Edward é um personagem introvertido, que se esconde no mundo, pelo que o seu tempo de ecrã é bastante menor. Ela, por seu lado, faz uma espécie de take over do mundo, de acordo com o seu desejo e objetivo. Mas não estou completamente certo do que se passa pela cabeça dos personagens. O Gonçalo Waddington deu-me uma liçao em Cannes. Porque eu olho para o Edward como um cobarde e ele disse que não o fez como um cobarde.
Uma das marcas é o riso da Molly. Onde foram buscar aquilo?
Foi um dia bastante absurdo da minha vida, em que ficámos não sei quantas horas a tentar inventar risos. Era o primeiro dia de trabalho com a Crista. Quando o encontrámos ficámos muito satisfeitos e não fizemos mais nada. Sabíamos que iria ser muito importante para a personagem.
Continuas a trabalhar com o comité central?
Nasceu com o Tabu. Como havia problemas financeiros, tivemos que reformular o filme em cima do momento da filmagem. Decidimos não fazer uma versão mais pobre, quisemos encontrar cenas que nos podiam dar o que nos interessava, apesar da falta de recursos. Portanto a ideia foi escrever enquanto filmávamos. Desta vez a ideia foi reagir àquilo que filmámos na Ásia, para depois voltar à escrita na altura da montagem. São processos muito orgânicos que misturam as fases de escrita, preparação, rodagem e montagem.
Neste filme também se divertiram?
Às vezes parece que nos divertimos mais do que aquilo que aconteceu na realidade, porque há sempre momentos em que parece que as coisas não vão funcionar. O filme decisivo para tudo aquilo que vim a fazer foi Aquele Querido Mês de Agosto. Um filme em que havia um argumento clássico, mas em que tudo se desmoronou. Então resolvemos ir para região da Beira e filmar o que nos parecesse interessante. Foi a rodagem mais feliz da minha vida. Percebi, nesse momento, que alguma coisa iria acontecer com os filmes se seguíssemos uma lógica de prazer e de descoberta, sem saber de véspera o que íamos filmar. Isso manteve-se de filme para filme. Talvez hoje procure modelos de fabricação de ideias para filmes, em que esses momentos possam existir. Em Grand Tour, tivemos o prazer da viagem. No início de 2020, percorremos aqueles países todos, menos a China, porque na véspera anularam o ferry que fazia a ligação entre o Japão e Xangai, por causa do Covid. Chegámos a Lisboa com 80 por cento do material filmado. E, de repente, entramos em confinamento, o oposto a todos aqueles quilómetros percorridos. Mas também achei interessante ir para estúdio e criar um mundo a partir dali.
Qual será o próximo projeto? Será finalmente o Selvajaria?
Sim, é a adaptação do Sertões, do Aclides da Cunha. Em 2018, vivi o período mais difícil da minha vida profissional. Nunca trabalhei tanto num argumento como nesse e fui várias vezes ao Brasil, mas parecia uma montanha impossível de escalar. Com o Grand Tour reabriram-se as perspetivas. Estamos bastante otimistas. Na altura, eu e o Luís Urbano estávamos a preparar o Selvajaria, não existia dinheiro público do Brasil. Isso agora mudou.
Foi um problema orçamental?
Sim, depois ainda se meteu o Covid. Chegámos a ter bastante dinheiro, mas todos esses apoios tinham um prazo de validade. Houve um momento em que tínhamos vários apoios a caducar, sendo que o produtor achou que não havia as condições para avançar com o projeto, por lhe faltar a parte brasileira. Agora vou voltar a isto, com a Filipa Reis, e estou otimista. Se tudo correr bem, em finais de 2025 ou início de 2026, iniciaremos a rodagem.