Em arte, muitas vezes o mais específico é o mais universal. Assim acontece com o belo filme Listen / Ouça dirigido por Ana Rocha de Sousa (ARS) e com excelentes interpretações de atores portugueses e britânicos.
Lembro-me de ter havido, há vários anos, uma investigação, na TVi, sobre a adoção compulsória de filhos de imigrantes portugueses numa prática corrupta que estaria a ser implementada, dentro do sistema social inglês, a pretexto de improvados maus tratos por parte dos pais biológicos. O filme de ARS retoma essa escandalosa situação, incidindo sobre uma paradigmática família de imigrantes portugueses pobres que têm os três filhos confiscados.
Quem se der ao trabalho de ler este meu breve comentário se ainda não viu o filme deve vê-lo. Por isso vou apenas tentar resumir, muito esquematicamente, o essencial da comovente narrativa, para poder acentuar as fundamentais questões éticas e políticas que estão poderosamente encapsuladas na situação específica tratada pelo filme. Uma dessas questões, se entendi corretamente, é a paradoxal transformação de um justo sistema de proteção social num iníquo mecanismo repressivo que resulta na desumanização daqueles mesmos cujos direitos humanos estão ostensivamente a ser defendidos.
A família em foco é constituída por um pai, precariamente pago por trabalho ocasional nos famigerados “contratos de zero horas”, que têm servido para disfarçar as estatísticas de desemprego no Reino Unido, uma mãe ganhando o insuficiente em serviços domésticos, e três filhos. Há dias em que não têm o que comer. A mãe rouba discretamente nos supermercados. O filho mais velho é um pré-adolescente febril e fatigado; a filha do meio é surda; a mais pequena está ainda a ser amamentada.
É, no entanto, uma família unida e afetuosa. Tinham recorrido aos serviços sociais para a obtenção de um aparelho auditivo para a filha que ela, caindo, partiu, ficando com contusões nas costas causadas pela queda. Esse acidente levou à presunção, por parte dos serviços sociais, de que as contusões teriam resultado de maus tratos por parte dos pais e a um consequente processo judicial que resultou em que os filhos lhes fossem confiscados e separados uns dos outros, com diferentes destinos. Dois deles (o rapaz mais velho, que fugiu da casa onde tinha sido colocado, e a menina surda, que ninguém queria) vieram a ser recuperados pelos pais, mas não a bebé, que havia sido prontamente adotada, num processo legalmente irreversível.
Não há dúvida de que há pais que maltratam os filhos. Tem havido casos recentes em que os serviços sociais – não só na Inglaterra – não detetaram a tempo brutalidades que levaram à morte de crianças vitimadas pelos pais. Não há dúvida também de que essas crianças teriam beneficiado – ou, pelo menos, sobrevivido – se retirados a tempo aos pais biológicos e adotados por quem os desejasse e protegesse. Essa é a premissa justa do sistema social de proteção a menores nas democracias. Mas quando os mecanismos do sistema social se sobrepõem às causas que os teriam justificado entra-se num universo kafkiano em que o processo protetor se torna ele próprio num potencialmente corrupto mecanismo repressivo. E então é quando o bem desejado se transforma em mal factual.
Neste belo e sábio filme, os agentes dos serviços sociais não são demonizados nem representados, eles próprios, como corruptos. São cidadãos bem intencionados que julgam estar a agir pelo melhor. “I am on your side” – “estou do teu lado” – diz um deles a uma das crianças que julga estar a proteger. Não é também sem significado que os dois principais agentes sociais sejam interpretados por um ator e uma atriz das chamadas minorias étnicas tradicionalmente marginalizadas (um negro, uma indiana) e não como uns nazificados mauzões loiros de olhos azuis. Mas têm regras a cumprir. Sem o saber, de agentes de proteção tornaram-se em agentes de repressão.
No entanto é a indiana que, clandestinamente, informa os pais de que a filha surda, depois de lhes ter sido retirada, desenvolvera contusões idênticas às que haviam desencadeado o processo judicial e que portanto teriam sido causadas por uma doença congénita – a “púrpura” – e não por maus tratos. Essa revelação clandestina irá permitir que o tribunal devolva a menina aos pais.
A clandestinidade – ou, mais propriamente, a necessidade da clandestinidade como fuga à repressão – é aliás também um dos temas fundamentais do filme. Quem viva ou tenha vivido sob regimes totalitários sabe que a clandestinidade é, ou pode ser, uma obrigação ética. Como aconteceu em Portugal e está cada vez mais a acontecer em países onde as próprias instituições democráticas estão a ser perversamente transformadas em instrumentos de repressão. O Portugal salazarista também se auto-definia como um Estado de Direito. Ou a Alemanha nazi. Os judeus foram legalmente transportados para os campos de exterminação, em suposto beneficio de valores éticos comuns que os marginalizava e os excluía
No filme, o rapazito que fugiu da casa onde tinha sido confinado, é ajudado por uma organização clandestina que irá conseguir reuni-lo aos pais também em fuga das democráticas autoridades inglesas. Não sei se tal organização de facto existe. Mas basta que possa ser necessário vir a existir. O filme Listen / Ouça é um aviso que deve ser visto e ouvido.J