Desde há muito que o cinema italiano tem de lidar com o peso dos seus clássicos. Parece claro que, por mais que os realizadores invistam e se reinventem, jamais poderão concorrer com a genialidade de Rosselini, Visconti, De Sica, Fellini, Antonioni, Pasolini, etc… Durante algum tempo chegava-nos de Itália Nanni Moretti, Roberto Begnini e pouco mais. Essa imagem do novo cinema italiano tem vindo a ser alterada em Portugal, em parte graças a esta festa que demonstra uma grande diversidade de propostas, alguma de grande qualidade, reconhecidas através de importantes prémios. E é precisamente nessa dicotomia entre a História e a contemporaneidade que arranca mais uma edição da festa. Uma necessidade de ir além quando se fica inevitavelmente aquém.
Enfim, o cinema em Itália tem muitos caminhos e nem todos vão dar a Roma, de Fellini (nem de Rosselini). Embora alguns passem lá por perto. No justo compromisso com esse alicerce histórico. Por exemplo, o encontro com a equipa de filmagem em O País das Maravilhas é Felliano e Viscontiano, apesar de Alice Rohrwacher possuir um estilo distinto.
Este ano o 8 ½ conta com sete ante-estreias: um número extraordinário, mostra da relevância crescente do cinema italiano contemporâneo em termos de exibições comerciais. Até porque estas ante-estreias destinam-se a públicos diversos. Desde a versão televisiva de Gomorra, o conhecido livro de Roberto Saviano sobre a Mafia, até ao vencedor do prémio do Júri de Cannes, passando por um filme infanto-juvenil O Rapaz Invisível, de Gabriele Salvatore.
Fora das ante-estreias, uma das grandes apostas do festival é a sessão competitiva, de curtas e de longas, onde reside o eventual futuro do cinema italiano. Há uma escolha cuidada, com incidência em produções independentes. Assistir a essas sessões é um bom exercício persecutório. Serão avaliadas por um júri constituído por Ana Sousa Dias, Lidia Ramogida e Francesco di Pace.
Quem quiser jogar pelo seguro pode agarrar-se às sessões retrospetivas. A principal é o ciclo dedicado a Sérgio Leone, que terá continuação na Cinemateca Portuguesa. Uma oportunidade para rever a obra do grande mestre do western spaghetti, em filmes como Por um Punhado de Dólares, O Bom, o Mau e o Vilão ou Era Uma Vez na América. Mas também é sempre tempo de rever, agora em cópia restaurada, o Novo Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore, um dos filmes mais comoventes e nostálgicos de sempre. E para terminar nada melhor que juntar o cinema italiano com a sua riquíssima gastronomia. A proposta é ver Roma, de Fellini, enquanto se desfruta de um requintado banquete, no Mercado da Ribeira (dia 29, às 19 e 30).
Os mais novos também vão ter um espaço próprio, que funciona também como um grande banho nostálgico, com a recuperação de grandes personagens do imaginário infantil. A começar pelo clássico Pinóquio, mas propondo também o revivalismo de fenómenos mais recentes, como Topo Giggio e Calimero.
A festa começa em Lisboa, mas depois entra em digressão por Porto (9 a 12 de abril), Évora (15 a 18), Caldas da Rainha (25 a 27), Loulé (1 a 3 de maio) e Coimbra (5 a 7).
A não perder
ERA UMA VEZ NA AMÉRICA, DE SÉRGIO LEONE
Uma das mais famosas sagas do cinema americano foi realizada por um italiano: Sergio Leone. Robert de Niro é o protagonista de uma história de violência que acompanha a escalada de um grupo de amigos desde a infância à idade adulta. Na Cinemateca passa, pela primeira vez em Portugal, a versão mais extensa com a edição do realizador. Poderá ser visto de uma só vez numa sessão de mais de quatro horas. A versão director’s cut tem 251 minutos, mais 12 que a original.
> São Jorge, 28 de março, às 15
O PAÍS DAS MARAVILHAS, DE ALICE ROHRWACHER
O filme que ganhou o Grande Prémio do Júri em Cannes. É um objeto duro e tenso, que reformula as expectativas utópicas da nova vida do campo na sociedade contemporânea, dando-nos a estranha sensação de entrar um mundo desconhecido à porta de nossa casa. Uma família meio-hippie que se dedica à apicultura. O pai, alemão, contraria a aparência libertária revelando-se de uma rigidez agressiva, perante os anseios do seu rancho de filhas. Gelmosina, uma das filhas, embate frontalmente com a violência do pai, ao timidamente revelar desvios dos caminhos programados. Às tantas, rejeita-se a possibilidade de viajar até Milão. É que Milão, no caso, apesar de estar próximo, parece a milhares de quilómetros de distância.
> São Jorge, 25 de março, às 21 e 30
QUE ESTRANHO CHAMARSE FREDERICO, DE ETTORE SCOLLA
O Frederico de que fala é mesmo Fellini, um dos enormes do cinema mundial. E o título dá uma boa pista para o que se pode encontrar: um documentário biográfico num estilo muito pessoal e inconvencional, que faz jus à arte do próprio Federico Fellini. O filme é apresentado como: “Um grande realizador italiano conta a história do maior realizador de todos os tempos”. E há constantemente esse encontro, no qual Scolla se revela um humilde seguidor do grande mestre.
> São Jorge, dia 29, às 19 e 30
INCOMPREENDIDA, DE ASIA ARGENTO
A família é sem dúvida um dos temas centrais do cinema italiano. No caso de Incompreendida esta aparece da forma mais disfuncional que se possa imaginar. A família é uma antifamília que tem como vítima a pequena Aria, de apenas nove anos. A mãe é música e o pai, estrela de cinema. Após um violento divórcio, Aria vê-se desamparada e indesejada perante o desprezo de cada um dos pais. O pai prefere a filha mais velha, a mãe, a do meio. Um filme violento e extremo, com Charlotte Gainsbourg em destaque, na estreia da atriz Asia Argento como realizadora de longas-metragens.
> São Jorge, dia 30, às 22
CORAÇÕES INQUIETOS, DE SAVERIO CONSTANZO
O realizador de A Solidão dos Números Primos deu um passo transatlântico e resolveu filmar Corações Inquietos em Nova Iorque. O romance em que se baseia, da autoria de Marco Franzoso, passa-se em Itália, mas Saverio Constanzo achou que a história encaixava melhor na grande metrópole americana, aproveitando a ocasião para se internacionalizar, com uma película falada em inglês. Mais uma vez a história de uma família disfuncional, mas desta feita a podridão está logo na raiz. O nascimento do primeiro filho despoleta os mais psicóticos conflitos, num estilo próximo de Roman Polanski.
> São Jorge, dia 27, às 21 e 30
ALMAS NEGRAS, DE FRANCESCO MUNZI
O crime organizado, o tráfego de droga e de armas, a violência em alta escala é um tema comum ao cinema italiano, com crescente interesse sobretudo depois do sucesso Gomorra. De resto, ante-estreia-se no 8 ½ a versão de série televisiva do livro de Roberto Saviano. Num estilo próximo, Almas Negras conta uma história de violência e tráfego de droga na Calábria, a região mais a sul da Itália continental. Um filme noire cheio de suspense e emoções fortes muito aplaudido em Veneza.
> São Jorge, 31 de Março, às 21