Três dedos de Estaline
Naquela tarde eu ainda não era mau. Mas já dividia as pessoas em duas categorias. Aquelas que usavam sandálias. E as que não usavam sandálias. Dito assim parece ridículo. E até eu, passados quase trinta anos, consigo já racionalizar esta afectação, como diria o meu psiquiatra. Mas ainda não uso sandálias. Nunca uso sandálias. Desde muito cedo que desconfiava que tinha algo de diferente em mim. No meu corpo. Em três dedos do meu pé esquerdo. Mas foi só naquela tarde, numa sala recôndita da escola primária, com o médico a segurar-me no pé e a tentar afastar os dedos, a magoar-me, que o confirmei. Até então, nunca me tinha sentido uma aberração. Só os mais qualificados têm essa competência.As palavras do médico diagnosticaram-me o futuro.- Pé de cabra! O que o seu filho tem é pé de cabra! Tem os dedos quase colados!Nunca ouvira tal expressão, mas naquela tarde ouvi-a duas vezes. E mais uma.- É verdade, pé de cabra, nunca ouviu falar? - perguntou o médico à minha mãe.Ouvi-o rir quando a minha mãe lhe perguntou se não havia nenhuma possível operação libertadora para os meus dedos. Será que não havia nada que se pudesse fazer?- Qual quê?! Daí não vem mal nenhum ao mundo, minha senhora... - disse o médico.O pé de cabra calhara-me na caminhada. E não viria mal nenhum ao mundo por isso. Acho que o médico também terá dito que, um dia mais tarde, poderia sempre fazer a operação, se assim o entendesse. Mas eu nunca assim o entendi. E nunca fiz a operação.A coabitação de três dedos do meu pé esquerdo continuou forçada, afastando-me a mim da convivência com os meus colegas de escola. Até hoje, se pensarmos bem.As coisas são como são porque se passaram como passaram. Sei que poderá parecer estranho. Mas tentarei explicar. Alguém duvida que só damos o segundo passo porque houve um primeiro? E um terceiro porque já haviam sido dados outros dois? A responsabilidade pessoal vai diminuindo à medida que caminhamos. Há sempre mais passos dados do que a dar. E isso torna-nos, de certa forma, só de certa forma, menos culpados. Mas estou a perder-me. Dizia eu que, então, ainda não sabia que os três dedos do pé esquerdo colados eram a marca do diabo no corpo dos homens. Só mais tarde. Mas aprendi-o. Era um bom aluno. Mas eu nem sempre pensava nos meus dedos colados. Só quando jogava à bola no pátio central da escola era mais difícil esquecê-los, uma vez que ensopavam de sangue a minha meia. O meu pé esquerdo parecia um regime comunista, do mais vermelho que se possa imaginar. E eu sentia-me tão envergonhado. Tão diferente. Tão humilhado. Tanto que tentava sempre esconder-me depois dos jogos. Saía mais cedo só para poder descalçar-me sem ser visto. Aprendi cedo a cortar rentes as unhas, a aparar bem os cascos do pé de cabra. Ao mal devemos sempre cortar a direito, não vá ele crescer. Fazia-o para que as unhas, como já terão concluído, não penetrassem nos dedos vizinhos, como espadas de um regime totalitário. Como se fossem impelidas por um desejo despótico de conquista em corpo próprio. Com o tempo, alimentei pensamentos doentios. Pensei que se cortasse as unhas rentes e a direito, não poderia nunca ser o diabo. E que nunca o sangue me denunciaria. Mas a caminhada era longa. Habituei-me a que uma simples aresta mal aparada fosse o suficiente para fazer jorrar o sangue. Houve um dia, porém, em que tudo se precipitou. Uma caminhada começa sempre com um passo, e já vimos que a culpa é mais dos que foram dados atrás. Com o pé de cabra é provável que comece mal. Sobretudo sendo o esquerdo. Nunca começar com o esquerdo. Dá azar. São muitos os contras, bem vêem. Esse passo foi dado quando estava sentado, estranho paradoxo, a tentar limpar o sangue das minhas unhas e fui visto pelo gordo do Hilário. O gordo do Hilário. Por breves momentos, estancou diante de mim e olhou para os meus dedos com uma expressão de terror, sem conseguir articular qualquer palavra. Tive esperança de que não conseguisse mesmo falar, mas foi um bloqueio momentâneo, pois logo largou a correr e a gritar, naquele corpo lento e pesado, alertando o resto da turma para o horror de eu ter os dedos colados como os de uma barbatana. Nessa manhã nada se passou. E eu passei a hora do almoço, em casa, a rezar uma oração da minha mãe, a implorar a deus para que ninguém se lembrasse dos berros do gordo do Hilário. Mas as minhas marcas não eram de deus. E o gordo do Hilário tinha soltado bem os pulmões. Comprovei-o mal entrei na sala de aula e esta rebentou numa risada geral. Ouvi de tudo. Mas tudo isso eu teria suportado facilmente. Na tentativa de acalmar a turma, a professora, já conhecedora do caso, resolveu dar um pouco de história aplicada ao meu pé esquerdo. - Vocês sabiam... calem-se!... vocês sabiam que Estaline também tinha três dedos do pé esquerdo colados uns aos outros? - disse, perante o grupo de imberbes.- Não sabem quem foi Estaline? - insistiu. Ninguém sabia, ninguém fazia ideia, como é óbvio, e nem eu, até então, tivera conhecimento desse nome que tinha a minha passada. Apesar do despropósito do tema para tão tenras idades, a professora fez questão de contar tudo o que sabia sobre o ditador soviético. Explicou o que era um ditador. E depois teve também de explicar o que tinha sido a União Soviética. Tudo em vão. Mas nessa altura, os meus olhos já não conseguiam deixar de mirar o gordo do Hilário. Aos poucos, o assunto foi deixando as conversas da turma. Mas continuava a bailar entre a minha cabeça e o meu pé esquerdo. E quando o gordo do Hilário se levantou para ir afiar o lápis no caixote do lixo ao fundo da sala, dei por mim a levantar-me e a caminhar para lá, para afiar também o meu. Ainda haverá apara-lápis destes? Pergunto-me sempre. Os dedos ainda me doíam da correria da manhã. Recordo-me bem de tudo. Até do cheiro a giz que pairava no ar, sempre que passávamos junto ao quadro negro. Abeirei-me dele, e depois de afiado o lápis, despejei os aparos todos por cima da sua cabeça. A confusão foi enorme. Hilário, o gordo, saltou como um urso em cima de mim e apertou-me o pescoço. Eu defendi-me como pude, mas não pude muito. Mas a derrota verdadeira foi quando, já depois de separados, a professora me agarrou pela bochecha com dois dedos e me pregou uma estalada com a mão direita que fez estremecer os alicerces da minha memória, até hoje. Não sei porque o fiz, mas, nesse instante, procurei pensar nos meus pés, concentrar-me no meu pé esquerdo para evitar chorar, e logo senti cravarem-se, com força, as unhas na carne. Unha com carne. A dor acalmou-me e recebi a segunda estalada, indiferente, sem verter uma única lágrima. - És mau! - gritou a professora! - És má rês! Vê-se logo que és filho de quem és!Foi a primeira vez que soube que era mau. Má rês, fosse isso o que fosse. E que era filho de alguém que não podiam ser os meus pais, porque os meus pais eram bons. Eram até católicos. A partir deste dia, deixei de cortar as unhas dos pés. E sempre que me via perante alguma situação que me magoava, cravava, tão fundo quanto conseguia, as unhas nos dedos. A dor que se procura não dói. E serve de analgésico, tranquilizante. No último dia de aulas, recordo, o gordo do Hilário voltou a levantar-se para ir afiar o lápis. Não sei se olhou para mim com ar de gozo ou se o imaginei apenas. Acho que o imaginei apenas. Sei que estava tranquilo e com o pé esquerdo ensopado de sangue. Sei que me levantei para ir ao seu encontro. Ficou incrédulo ao ver-me chegar ao pé de si e começar a aparar o lápis, mais e mais e mais ainda, sem desviar nunca os olhos dos seus pés, com os seus dedos gordos a saltarem para fora das sandálias. Hilário, o gordo, usava sempre sandálias. Usava sandálias no Verão e usava Sandálias no Inverno. Hilário, o gordo, usava sempre sandálias.E então, de súbito, ouvi a professora a gritar.- Esse lápis ainda não está afiado?E sabem que mais? Estava. Estava tão afiado quanto um lápis pode estar. E quando o enfiei no olho esquerdo do gordo do Hilário, depois de deitar os aparos no caixote do lixo, como alguém de bem deve fazer, não o ficou menos. Ficou ainda mais afiado.O resto da minha vida tem pouco interesse. Todos os dias que se seguiram pareceram sucedâneos deste. E daquela tarde em que o médico me diagnosticou o futuro. O pé de cabra calhara-me na caminhada. E não viria nenhum mal ao mundo por isso. Aqui, onde estou, continuo a ter a visita de muitos médicos em salas recônditas. Todos eles falam sobre o meu pé esquerdo e sobre o quanto essa marca terá influenciado o meu destino. Mas nenhum deles faz questão de o ver. Eu sempre preferi assim.
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