Mostrando claramente a filiação e atividade do autor na BD franco-belga, o elemento mais interessante deste livro é o modo como como define uma situação arquetípica, e depois trabalha no sentido de a torpedear, acrescentando camadas de complexidade às personagens e às situações em que se envolvem, que no final já pouco são do que eram ao princípio. À superfície a história parece linear. Em São Salvador da Baía uma situação de pesca ilegal com explosivos faz coalescer os pontos de vista narrativos de um cidadão justiceiro, de um traficante menor sem grande vontade de se envolver, de um polícia particularmente voluntarioso. Mas o cidadão é também um amante envergonhado à procura de uma segunda oportunidade, o traficante um filho extremoso que tenta passar entre os pingos da chuva da vida e da lei, o polícia um abusador incapaz controlar as suas emoções. À boa maneira da melhor BD de aventuras a ação é credível e montada de forma inteligente, algo que só é possível graças ao desenho realista e dinâmico de Quintanilha, marcado por um uso de cinzas e sombreados, vincando o quanto certos dispositivos e ritmos narrativos em BD exigem um desenho correto do ponto de vista anatómico, sem o qual toda a boa vontade crítica se revela inútil. Algo que é muitas vezes menorizado.
Mas o mais interessante de “Tungsténio” são as histórias pretensamente acessórias ao pretexto central, que o autor trabalha em regime de “flash back” e memória à medida que vai variando o ponto de vista e introduzindo outras personagens (sobretudo a namorada do polícia). Lentamente comportamentos que pareciam obscuros (ou óbvios) vão tomando outros significados, desmontando as personagens para além dos seus arquétipos iniciais. Como sempre neste tipo de livros com múltiplas perspectivas que se cruzam a construção é intrincada; depende de dramatismos e de coincidências ou ligações que se vão tornando visíveis à medida que a ação decorre, explodindo, não numa resolução plena (que seria incongruente), mas numa falsa calmaria final. Estes elementos poderão ser considerados excessivos ou exagerados na exata medida em que o leitor comungue menos ou mais do espírito da obra. Perdoamos sempre melhor os defeitos de obras que consideramos bem feitas, e “Tungsténio” merece um perdão que nem precisa.
Um último pormenor, que esperei por vários livros da Polvo para referir, na esperança que desaparecesse. Quanto ao Acordo Ortográfico nada contra nem a favor (acho só incrível que seja este o último/único Grande Bastião da Resistência Intelectual Nacional), mas, independentemente da escolha, manter expressões, grafias e palavras tipicamente brasileiras que tolhem a leitura por questões de pretensa autenticidade não é razoável, e apenas denota facilitismo. Um projeto editorial com tanto mérito merecia ser levado, com qualidade, até ao fim.
Tungsténio. Argumento e desenhos de Marcello Quintanilha. Polvo. 184 pp., 15 Euros.