Poucas vezes na história de uma arquitetura, o diálogo com a população terá riscado tantos projetos. Daí que o SAAL represente a própria “cultura arquitetónica do 25 de Abril”, segundo Delfim Sardo (DS), comissário da exposição O Processo SAAL: Arquitetura e participação 1974-1976, que inaugura na próxima sexta-feira, 31, no Museu de Serralves. Objetivo: fazer o “balanço” desse processo que, em dois anos, envolveu um milhar de pessoas – arquitetos, engenheiros, técnicos, moradores, de Norte a Sul do país.
Os seus nomes vão figurar num mural de homenagem, por ordem alfabética, de acordo com o espírito de um tempo de exceção, em que se gritava nas ruas “Casas, sim, barracas, não”, e todos tinham voz na construção de um futuro melhor. “Uma das formas mais dignas de assinalar os 40 anos da revolução é falar desse projeto, que não foi de total sucesso, mas foi muito importante, porque solucionou alguns problemas das populações, promoveu o debate e a participação cívica, além de mudar a relação dos arquitetos com a questão habitacional”, sustenta DS.
Corria livre o verão de 1974, ainda no calor da Revolução de Abril, quando foi criado o SAAL, Serviço Ambulatório de Apoio Local, por iniciativa do arq° Nuno Portas, então secretário de Estado da Habitação e Urbanismo. O despacho previa a criação de brigadas interdisciplinares, coordenadas por arquitetos, que em articulação com o Fundo Fomento da Habitação se propunham dinamizar o associativismo em comunidades carenciadas, de modo a “promover a solução de situações de extrema insalubridade e precariedade habitacional que se vivia”, como adianta o curador, crítico, ensaísta e prof. da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Coimbra. “Em Portugal, faltariam na época cerca de meio milhão de fogos, uma situação de alguma maneira especular da atual, em que parece haver meio milhão em excesso”, salienta DS. “Não quer dizer que se tenham resolvido os problemas da habitação, na medida em que a distribuição não é equitativa. Mas no início dos anos 70, havia, de facto, carências gravíssimas”.
Eram identificáveis duas situações paradigmáticas: em Lisboa, resultado da crescente industrialização que tinha trazido para a cidade muita população, imigrada do campo, cresciam os bairros de lata, alguns de grandes dimensões; no Porto, a peculiaridade das ilhas, estruturas de habitação precária no interior dos quarteirões, da zona histórica da cidade. Num e noutro caso, as brigadas do SAAL foram “muito importantes, ao lidarem com estas populações, desenvolvendo o trabalho com elas”. Pretendia-se justamente que os “projetos fossem participados e dialogados: “A ótica não era a daquilo que tinha sido a muito ténue política habitacional do Estado Novo, sempre orientada pela ideia da deslocalização das populações, quando havia algum projeto social, construindo-se em altura, uma matriz que viria a seguir-se mais tarde. Com o SAAL, a ideia era dinamizar, nos sítios, com envolvimento comunitário, a melhoria das condições de vida, com projetos originais”.
Experiências no terreno
Nenhum projeto do SAAL ficaria concluído. É que ‘mexiam’ com interesses muito poderosos, nas cidades, como a “posse dos solos”, um problema que, em muitos casos, segundo DS, continua por resolver: “A especulação imobiliária era crescente, nos anos 70, e isso fez-se sentir de uma forma brutal no Porto, porque estavam em causa zonas no centro da cidade, muito apetecíveis. Também em Lisboa, onde havia grandes empreendimentos para algumas das áreas, onde os projetos se sedimentaram. E no Algarve, onde o SAAL teve uma participação muito orgânica”. Um movimento cívico “imortalizado” na canção de Zeca Afonso, Os Índios da Meia Praia, e no filme Continuar a viver, de António Cunha Teles, para o qual foi feita. “Interessou-nos perceber o que eram os projetos, até onde foram desenvolvidos, e sobretudo que não existiu um, mas vários SAAL, tantos quantas as experiências no terreno”, sublinha o curador.
Isso mesmo se pode aferir na exposição de Serralves, que recebe o visitante com uma grande maqueta do Porto, feita por estudantes de Arquitetura. Não por acaso. “Houve uma vivência coletiva muito intensa, com uma forte inter-comissão de moradores, e uma direção muito coesa do SAAL Norte, de que faziam parte Margarida Coelho e Alexandre Alves Costa. Este, aliás, correu perigo de vida, pois puseram uma bomba no seu carro, depois de outra ter deflagrado na sede do Porto”, recorda Delfim Sardo. “E mesmo que os projetos não tenham sido concluídos, veio à tona, com o SAAL, a ideia de que há um direito de cidadania ao centro histórico da cidade, o que teve consequências muito importantes no contexto do pensamento urbano sobre a cidade”.
Em Lisboa, acrescenta DS, houve por outro lado bairros que resolveram problemas habitacionais que vinham do séc. XIX: “Há descrições da Quinta da Bela Flor, que teve a intervenção do arq°. Artur Rosa, que falam de famílias a viverem em grutas, na encosta, já em pleno sec. XX. Houve uma ação realmente importante para as populações”.
À distância, afigura-se mesmo “extraordinário o que foi feito na altura” e é positivo o saldo no terreno, mesmo que muito tenha ficado no papel. Simbolicamente, será enfim instalado no Bairro da Relvinha, em Coimbra, um equipamento social, que esperou quatro décadas num armazém, um acabamento com projeto de João Mendes Ribeiro.
Na Relvinha irá decorrer uma das sessões que se vão realizar nos bairros, no âmbito desta evocação do SAAL, que a 14 e 15, culmina com um colóquio O SAAL e a Arquitetura, coordenado por José António Bandeirinha e Gonçalo Canto Moniz, no CES, Centro de Estudos Sociais de Coimbra, uma coorganização de Serralves e da Faculdade de Arquitetura de Coimbra. O programa evocativo arrancou em maio, com uma conferência em Serralves, onde irá ainda decorrer um ciclo de cinema e de debates no âmbito da exposição agora inaugurada, aliás coproduzida pelo Centro Canadiano de Arquitetura, de Montreal, onde será apresentada no próximo ano.
Cultura de participação
O SAAL teve também consequências ao nível da “consciência social do arquiteto”, na discussão sobre a “autonomia da arquitetura”, até pelo que alertou os próprios estudantes, sobretudo em Lisboa, na altura uma escola mais fechada, já que no Porto, a faculdade já estava envolvida no projeto do Barredo e havia uma noção mais aguda dessas questões: “Construi-se uma dinâmica de debate e uma consciência política e cultural da arquitetura”.
Sardo chama ainda a atenção para algumas lições importantes a retirar dessa dinâmica. “O arq°. Manuel Salgado disse um dia que havia uma coisa essencial a aprender com o SAAL – o facto de serem os promotores a ser financiados, ou seja, as populações organizadas. Depois foi seguido o modelo de financiamento do cliente individual, o que tornou praticamente impossível qualquer tipo de planificação urbana integrada e inteligente e deu origem a toda a especulação imobiliária, ao desaparecimento do mercado de arrendamento, à situação caótica das cidades”, sublinha. “Se se tivesse colhido o ensinamento do SAAL, em tempo devido, provavelmente teríamos hoje uma situação urbana bem mais interessante”.
Outro ensinamento prende-se com uma “artesania arquitetónica que não se perde”, que não está necessariamente na “glorificação autoral”, mas na “relação”, o que implica uma arquitetura “não industrializada dos bairros sociais”, tal como se fez posteriormente e que constituiu uma “desgraça”.
A experiência do SAAL não só mudou a arquitetura portuguesa como constituiu um primeiro passo para a sua internacionalização, pelo interesse que o processo suscitou lá fora. Estiveram envolvidos nas operações, aliás, vários grandes nomes da arquitetura portuguesa contemporânea. É o caso de Álvaro Siza Vieira. “Fez dois projetos no Porto, a Bouça, que já vinha do Fundo Fomento de Habitação, só concluído em 2006, e que levei em 2010 à Bienal de Arquitetura de Veneza, e S. Vítor, um projeto de uma extraordinária qualidade arquitetónica, de que apenas foram construídas 12 casas, praticamente nada, com toda a envolventea ser dinamitada ao longo do tempo pela câmara”, salienta DS. “Foi a partir daí que Siza foi convidado para fazer os projetos de Haia e de Berlim. Nesse sentido, foi determinante na internacionalização da sua carreira. Outros arquitetos tiveram também no SAAL o seu primeiro palco de afirmação internacional. Porque muitos poderes públicos na Europa se interessaram por esse projeto pioneiro e com um lado performativo muito forte”.
Rigor e poética
Além de S. Vítor, a exposição de Serralves incide sobre uma dezena de projetos. No Porto: Bairro Antas, de Pedro Ramalho (ver caixa); Miragaia, Fernando Távora, Bernardo Ferrão e Jorge Barros; Bairro Leal, Sérgio Fernandez. Em Lisboa: Curraleira – Embrechados, José António Paradela e Luís Gravata Filipe; Quinta da Bela Flor, Artur Rosa; Bairro Bacalhau-Monte Côxo, Manuel Vicente; Quinta das Fonsecas e Quinta da Calçada, Raúl Hestnes (ver caixa). Em Setúbal: Casal da Figueira, Gonçalo Byrne (ver caixa). Em Lagos: Meia-Praia-Apeadeiro, José Veloso. “Há muitos outros projetos paradigmáticos, mas estes pareceram-me fundamentais para poder chamar a atenção para o SAAL, que por tudo o que envolveu é um caso de estudo apaixonante”, adianta o curador. E explica: “O projeto de Miragaia, de um enorme fôlego, que nunca chegou a ser feito, pelas mudanças políticas e tensões posteriores, teria sido fundamental para a recuperação da zona. Os outros do Porto revelam um imenso esforço de rigor do exercício arquitetónico face ao lugar”.
Já em relação às intervenções de Lisboa, destaca as de Manuel Vicente e Raúl Hestnes, em zonas limite da cidade, de uma “arquitetura em altura, com uma grande racionalidade da sua presença no espaço”, assim como o projeto da Curraleira, também com uma “enorme economia, mantendo a baixa altura de uma maneira muito interessante”. Deste projeto, revelam-se na exposição os painéis que a própria brigada fez em 1976. De Artur Rosa, não será mostrado o projeto, mas a ação do arquiteto em defesa e evocação do SAAL, no momento do seu desmantelamento, três instalações em ‘terra de ninguém’ entre a prática artística e o exercício da arquitetura, que traduzem “o desencanto de um processo que não teve continuidade. O projeto de Gonçalo Byrne é “um gesto arquitetónico notável”, num terreno muito complicado, em Setúbal: “A solução encontrada domestica esse terreno e as casas estão lá, funcionam e sobrevivem aos acrescentos e mudanças que foram feitos, com imensa saúde arquitetónica”, afirma DS. “Finalmente, o projeto de José Veloso, pelo seu simbolismo, procurando chamar a atenção para o movimento criado no Algarve”.
São apresentados projetos e maquetas, alguns originais, outras especialmente criadas para o efeito, bem como: impressões heliográficas como eram feitas na época, de modo que se reveja a “maneira de comunicar a arquitetura da altura”; filmes e gravações sonoras inéditas; entrevistas; fotografias históricas e outros documentos, como fichas sociológicas de levantamento das comunidades; registos de entrega das primeiras chaves. Pretende-se, no entanto, que seja uma exposição de arquitetura e não documental, nota o curador: “Queremos mostrar a importância do SAAL enquanto arquitetura, no conjunto das dinâmicas sociais a seguir ao 25 de Abril. E criámos um lado de cruzamento com a prática artística”.
Nesse sentido integra ainda uma instalação de Ângela Ferreira, concebida para o contexto da mostra, e o olhar contemporâneo de três artistas, André Cepeda, José Pedro Cortes e Daniel Malhão, que fotografaram os bairros do SAAL hoje. Uma encomenda que permite aferir como “estão”. E alguns, assevera DS, “estão muito vivos e vividos”: “Há bairros em que as pessoas mostram um enorme carinho e empenho nas suas casas, como aliás se via no documentário Operações SAAL, de Jorge Dias. E continuam a desenvolver lutas de proteção do local, por exemplo na Curraleira, contra a prevista instalação, relativamente perto, de uma central elétrica de alta voltagem. Isso revela que houve uma cultura de participação que ficou”.
Ficou igualmente, em seu entender, “arquitetura de qualidade feita para populações carenciadas” e que “sobrevive à forma como é apropriada”. Os ensaios fotográficos encomendados a Cepeda, Cortes e Malhão demonstram-no inequivocamente. Serão publicados na íntegra no catálogo da exposição, que inclui textos de José António Bandeirinha (cuja tese de doutoramento abordou precisamente este processo, um daqueles arquitetos que, segundo DS, “tem andado com o SAAL às costas, para não deixar cair a sua memória”), de Alves Costa e do italiano Vittorio Gregotti, autor do CCB, que veio a Portugal na altura para ver de perto o que se passava. E ainda um arquivo de textos de referência, como o de Giancarlo di Caro, sobre o “projetar com e não projetar para”, problemática central do SAAL, e o – célebre – de Nuno Portas, “escrito a quente”, em 1976, em que o ‘criador’ faz um “balanço muito crítico” da sua ‘obra’.
Será ainda publicado um volume que reúne as comunicações dos colóquios. “Espero que seja uma interessante fixação de memória e sobretudo que se relance a discussão sobre o papel e a ética do arquiteto, o caráter político do trabalho arquitetónico”, diz Delfim Sardo. “E que venha à superfície toda a poética do SAAL”.