Vida de Artistas é uma comédia sofisticada e provocadora que os Artistas Unidos apresentam no Teatro São Luiz até domingo, 10, no que é a última encenação de Jorge Silva Melo (JSM), encenador maior do teatro português, que nos deixou no passado dia 14 de março. Aliás, os idos de março levaram igualmente o poeta Gastão Cruz e Maria Helena Dá Mesquita, uma das primeiras mulheres a escrever crítica de teatro em Portugal. As nossas homenagens pelo trabalho, talento e legado que nos deixam.
O autor de Vida de Artistas, o decano do teatro britânico Sir Noël Coward (1899-1973), um dos preferidos de Silva Melo, foi prolífico contista, compositor, cantor, ator tanto de teatro como de cinema e a sua atividade de dramaturgo e de encenador estendeu-se igualmente ao teatro de revista e aos musicais. A sua carreira prolongou-se por seis décadas, alcançando grande popularidade, da Broadway ao West End, sucesso público e da crítica, de que nos dá conta na sua autobiografia em três volumes.
Vida de Artistas (Design for Living), escrita em 1932, pertence ao período de produção entre as duas grandes guerras, quando o autor já era um dos dramaturgos mais bem pagos do mundo. É uma comédia de “maus costumes” escrita para o casal Alfred Lunt e Lynn Fontanne, que estreou na Broadway, em 1933, com êxito estrondoso, e em que Coward participou como ator. A censura em Inglaterra, onde estreou apenas em 1939, deveu-se à temática da vida boémia dos artistas, que vai bem mais longe na assunção da amoralidade das personagens, assim como da inconvencionalidade social, a par da ambiguidade sexual na relação do ménage à trois entre as três inquietas e egocêntricas personagens: o artista plástico Otto, o dramaturgo Leo e a decoradora de interiores Gilda que abomina a monotonia. Com uma escrita brilhante e elaborado enredo, Vida de Artistas cumpre a primeira função que Coward atribuía a um espetáculo de teatro: divertir. Com inteligência, ironia, ritmo, ceticismo, humor e encanto.
Como se sabe, o amor de JSM pelo teatro era também dedicado aos atores com quem gostava de trabalhar, nos Artista Unidos, Companhia que fundou em 1996, a partir da apresentação de António, um Rapaz de Lisboa, nos Encontros Acarte de 1995, e com quem realizou numerosos espetáculos. O seu pensamento assenta na premissa de que o ator se encontra na interseção entre a escrita e o palco, pelo que a sua função é primordial na passagem do texto à cena, através do seu corpo, voz e visão do mundo, que contaminam a personagem. Além de que o resultado de um espetáculo corresponde sempre ao conjunto das contribuições de muitas valências artísticas, para JSM, a liberdade dessa contribuição era fundamental, inclusive na passagem generosa do testemunho para as gerações seguintes, para “os que nascerem depois de nós”.
Neste espetáculo, como nos outros, JSM escolhe os atores que lhe parecem certos para os papéis. E, de facto, Rita Brütt, Pedro Caeiro e Nuno Pardal surgem justíssimos nesse trio que é uma unidade, só completo quando estão juntos, e é essa a conclusão a que assistimos, durante os três atos do espetáculo, entre Paris, Londres e Manhattan: uma coreografia perfeita, em simetria, em variação e permutação de ações, até o círculo se fechar, até à próxima crise. Elegantes e extravagantes, como Coward pede, os atores evoluem com o gesto preciso e a elocução matizada, retirando prazer do jogo de representar. De referir ainda Américo Silva, em Ernest, o negociante de arte, a apresentar o outro lado da moeda, o da censura e das convenções.
Dois colaboradores inseparáveis dos espetáculos dos Artistas Unidos, Rita Lopes Alves autora da cenografia minimal, a criar no grande palco um outro palco mais pequeno para sinalizar quem está dentro e fora do jogo, e Pedro Domingos a bem iluminar.
Aplauso para o Teatro São Luiz que, desde a direção de Jorge Salavisa, abriu as portas aos projetos dos Artistas Unidos, mantendo o ditame com a direção de Aida Tavares, que dedicou a Jorge Silva Melo a programação do Dia Mundial do Teatro. Longa vida aos Artistas Unidos, que precisam de casa, para continuarem. J
Vida de Artistas, de Noël Coward, Tradução José Maria Vieira Mendes, Interpretação Américo Silva, Ana Amaral, Antónia Terrinha, Jefferson Oliveira, Nuno Pardal, Pedro Caeiro, Pedro Cruzeiro, Raquel Montenegro, Rita Brütt e Tiago Matias, Cenografia e Figurinos Rita Lopes Alves, Coordenação Técnica João Chicó, Som André Pires, Luz Pedro Domingos, Assistentes Nuno Gonçalo Rodrigues e Noeli Kikuchi, Encenação Jorge Silva Melo. Coprodução Artistas Unidos, Teatro Nacional São João e São Luiz Teatro Municipal.
Teatro São Luiz, de quarta a sábado às 20h e domingo às 17h30. Até 10 de abril.