Dia 23 de fevereiro, quando as tropas russas se preparavam para cumprir a ameaça de Putin, tive o imenso prazer de falar na abertura do 23.º Encontro D’Escritas, na Póvoa de Varzim, tendo como anfitrião o poeta, escritor, jornalista e fundador-diretor deste jornal, José Carlos de Vasconcelos. Ao longo destes dois anos de pandemia não estive em silêncio. Continuei a ser orador em mais de uma centena de conferências, nacionais e internacionais, mas (com muito raras exceções) sem sair do meu escritório. E esta ida à Póvoa – que com o seu indómito Atlântico, sempre perfumado por um forte hálito de iodo, me evoca uma versão mais agreste do meu natal estuário do Sado -, foi a primeira que implicou pernoitar, conferindo à experiência de regresso ao espaço tridimensional uma carga emocional ainda mais intensa.
Na minha conferência, falei do modo como hoje, na estreita margem de manobra que nos permitirá salvar um futuro habitável, lutam as forças assimétricas da distopia triunfante contra a resistência, ainda frágil, de uma utopia emergente do “regresso à Terra”. Permiti-me um exercício de rememoração do meu próprio percurso. Pertenço a uma geração que foi fortemente marcada pela Conferência das NNUU sobre Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, e pela publicação do Relatório do MIT sobre “Os Limites do Crescimento” (ambos ocorridos em 1972).
Lembro-me bem das figuras marcantes do jornalista Luís Filipe Costa (1936-2020), dando rosto ao primeiro programa de educação ambiental da televisão portuguesa, “Há só uma Terra”, assim como do papel pioneiro de um homem sábio, íntegro e absolutamente dedicado à causa pública, o eng.º José Correia da Cunha (1927-2017), que liderou a delegação portuguesa a Estocolmo, depois de lhe ter sido confiada a chefia da Comissão Nacional do Ambiente, em 1971. Em 1976, comecei a escrever os primeiros textos sobre temas ecológicos, mas foi em 10 de janeiro de 1978 que me iniciei numa atividade cívica pela defesa do ambiente, com a autoria do Manifesto do Movimento de Ação Ecológica de Setúbal, que, embora com existência breve, ainda realizaria algumas ações e contaria com o apoio do saudoso José Afonso.
Partilhei com os participantes das Correntes D’Escritas um excerto desse Manifesto, publicado na imprensa setubalense um mês após a sua escrita: “Nas próximas décadas a humanidade será submetida a uma prova duríssima, a um teste de resistência vital para a sua sobrevivência na face do nosso planeta (…) Chegámos a uma encruzilhada em que a História e a Natureza ameaçam colidir. O poderio humano ramificou-se a todos os cantos do planeta. Se esse poderio continuar a ser movido pelas forças cegas do lucro e da ganância poderemos estar certos que do encontro da História e da Natureza resultará o Apocalipse, o fim da História e a destruição da Natureza.” (Manifesto do Movimento de Ação Ecológica de Setúbal, Nova Vida, 10 02 1978).
Haverá algum conceito neste texto que em 2022 poderia ser substituído, por questões de estilo. Mas o essencial, que até a mim próprio me chocou, é em 2022 o diagnóstico estar não só correto como ainda mais verdadeiro do que em 1978. Nessa altura, o choque letal entre a História e a Natureza permanecia ainda uma mera, embora forte, possibilidade. Em 2022, é uma certeza do nosso quotidiano que já não estamos em condições de evitar, apenas de remediar. E mesmo assim, persistem dúvidas sobre o alcance da nossa capacidade de mitigação e de adaptação perante o que aí vem, movida pela pujança inelutável das forças da Natureza. Aquela que temos tentado ludibriar, desde o início da Modernidade.
Nessa conferência referi também o estreito parentesco entre as questões do ambiente e o problema da guerra e da paz. Curiosamente, estava na sala do belíssimo Teatro Garrett, que serve de palco às Correntes D’Escritas, o editor Manuel Alberto Valente, responsável, em 1985, no âmbito das Publicações Dom Quixote, por aceitar a publicação do meu primeiro ensaio, Europa: O Risco do Futuro. A insegurança Estratégica nos Anos 80 (168 pp.).
A razão por que me inclinei para dar prioridade ao estudo sistemático das questões da paz e da guerra no contexto da Guerra Fria foi dupla. Primeiro, porque em caso de guerra central entre as alianças militares chefiadas pelos EUA e pela URSS, o uso de armas nucleares iria provocar uma catástrofe ecológica instantânea, com repercussão planetária. Segundo, porque, como europeu, não me sentiria bem permanecendo em silêncio quando todos os cenários de conflito, desenhados em Washington e em Moscovo, apontavam para a possibilidade de uma guerra nuclear limitada à Europa, que exterminaria milhões de vidas, deixando países como a Alemanha, a Polónia e a Checoslováquia em ruínas e vastas regiões da Europa central e ocidental com elevados graus de contaminação radioativa. Em 1985, a prioridade seria a de impedir a guerra atómica (que poderia ser comparada a uma síncope cardíaca) de modo a concentrar, depois, todas as forças no combate à crise ambiental global (que, por sua vez, poderia ser comparada a uma patologia mais lenta de esclerose múltipla).
Quando na manhã de dia 24 de fevereiro foi possível perceber que a Rússia de Putin pretendia ir mais longe do que a mera ocupação das zonas de maioria russa – num gesto aventureiro que não isenta de responsabilidades todas as tropelias a que o Ocidente submeteu uma Rússia fragilizada pela implosão da URSS (um milagre pacífico que se deve a um dos últimos heróis do nosso tempo, M. Gorbachev) -, percebi que as nossas probabilidades, já de si exíguas, de navegar até um futuro habitável caíam praticamente para zero.
Na altura em que escrevo esta crónica, está tudo em aberto. Até a possibilidade de uma ultrapassagem do limiar atómico. Mas mesmo que tal não suceda, os tambores de guerra vieram para ficar. Os Estados vão aumentar exponencialmente as suas despesas militares (para gáudio do complexo-militar-industrial global). A energia nuclear, indispensável para a produção de armas atómicas, vai sair da sua atual letargia e regressar em força. A indispensável cooperação internacional entre as grandes potências para a descarbonização da economia mundial vai ser inviabilizada. Assistiremos a um recuo, talvez até a um abandono formal das metas do Pacto Ecológico Europeu, ao naufrágio dos objetivos de sustentabilidade das NNUU, e ao enterro do Acordo de Paris, que, aliás, nunca passou de uma miragem. Os 24 países mais pujantes, fora da OCDE (onde se destacam a Índia, Brasil, Indonésia e África do Sul) vão usar o seu petróleo e o seu carvão até ao último barril e até à última tonelada.
Afinal o Inferno não era um mito teológico, mas sim um projeto de futuro, humano, demasiado humano. Fomos nós que há séculos, com uma insuportável exuberância narcísica, o começámos a construir, fazendo dele o verdadeiro “fim da história”. Talvez não merecêssemos mais do que isto. Contudo, e por isso mesmo, nunca os versos de Augusto Gil foram mais certeiros: “Que quem já é pecador/sofra tormentos, enfim!/Mas as crianças, Senhor,/Porque lhes dais tanta dor?!…/Porque padecem assim?!..”