A cultura portuguesa colheu no verão de 2021 uma obra de máxima inclinação para a luz. Não sei quanta gente culta deu por isso, mas o volume X das Obras Completas de Eduardo Lourenço (EL), publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian, com o título Jorge de Sena, Contemporâneo Capital, é um livro precioso, que reúne tudo quanto se conhece ter Lourenço escrito sobre Sena (ensaios, artigos, depoimentos) e reedita a relevante correspondência entre ambos, vinda à luz há 30 anos pela Imprensa Nacional. Vital é ler e reler esta convivência de vozes, os dois intelectuais portugueses que alcançaram a sumidade do pensamento e da escrita na segunda metade do século XX.
Assinale-se que a excelência do volume é devedora do labor de Gilda Santos, professora e investigadora literária, reputada especialista seniana. O competente rigor da coordenação, o saber e belo estilo da introdução, as notas clarificadoras são justamente o que exige o tratamento de personalidades desta dimensão, com o pleno conhecimento das biografias e bibliografias, textos e contextos, fontes e publicações, acontecimentos e circunstâncias. O livro, além de coligir os ensaios de EL que andavam dispersos, acrescenta inéditos, aponta variantes, realiza emendas, com esmero exemplar; e a reedição da correspondência vale pelo acréscimo de cartas que faltavam e pela reposição (ainda que, infelizmente, não total) de “algumas ocultações de nomes ou pequenas supressões no texto das cartas” com que a 1ª edição cedia “à brandura dos nossos hábitos e costumes” (disse Mécia de Sena, em 1991).
Os textos de EL, em que a sua voz ensaística dialoga com a criação seniana, são perfeitamente apresentados por Gilda Santos na introdução, por isso, não me deterei a resumi-los. Modelos de excelência no uso da reflexão e da palavra, os ensaios prestam a Sena a elogiosa justiça que alguns escolhem ignorar. Por exemplo, “Jorge de Sena e o Demoníaco”, no qual EL visita tal motivo na nossa literatura e diferencia o demoníaco em José Régio e Jorge de Sena (JS) (que este diferenciou, na carta de 23/10/67), é clarificador sobre a resistência de certo público de “sensível epiderme lusíada”, que prefere páginas mais deleitosas a ser provocado por um escritor ácido, de criatividade avassaladora, insuportável na “ardente afirmação da sua superioridade intelectual”. Essa tibieza mental e o momento “não-cultural” ou “anticultural” que EL identifica, em que a arte se exprime no “desdém ou furor por tudo quanto seja herança humanística”, farão ainda muita gente receosa ou hostil ao homem e à estética seniana.
A correspondência, mais do que os encontros raros, mostra bem, escreve Mécia de Sena, como “se dedicaram amizade, respeito e admiração mútua por cerca de 28 anos”. Longe ambos da pátria, para JS, uma carta de amigos “em cima da mesa é uma presença, uma forma de convívio, uma conversa que todos os dias prossigo”, e as cartas são para EL, a forma de “reunir à minha volta (…) os membros dispersos daquela comunidade para a qual somos mais ou menos vivos”.
Na admirável “Carta para ninguém”, ao identificar a diferença de temperamentos, EL supõe que “Aos leitores desta correspondência não escapará essa dissonância íntima de duas vozes”. Não escaparão decerto as consonâncias no audacioso entusiasmo intelectual, pensando, “de modo diverso, mas igualmente intenso, nos destinos e na vida cultural do nosso país”, em que, usando palavras e uma imagem de Lourenço, ele seria o sismógrafo “interessado na decifração dos signos e enigmas de uma cultura comum”, e Sena o próprio sismo no ímpeto de arrasar a maldade, mediocridade e incúria nacional.
Cada carta, além das circunstâncias das vidas privadas (mas que remetem para a esfera pública, como as detenções políticas de EL em Caxias e de JS na fronteira espanhola, ou o inadmissível “esquecimento” a que Sena foi votado pelas universidades portuguesas após o 25 de Abril, elas que nos quadros docentes aceitaram cegamente e de braço no ar tantos medíocres) é, na primorosa qualidade das escritas, um manancial de ideias e reflexões inteligentíssimas, opiniões e informações literárias, políticas e culturais valiosas.
A extensa “carta testamentária” de JS, de 8/6/1967, por exemplo, é um raro monumento de prosa e de lucidez crítica: expõe o seu íntimo dolorido pela morte da mãe; justifica a “agonia antibrasílica” desenvolvida pela “frustração insuportável de ser-se irremediavelmente português no seio de uma cultura que nos detesta e ridiculariza sem sequer procurar conhecer-nos”, verberando por experiência do seu próprio departamento universitário o “americanismo antieuropeu” promotor de uma “flatterie antiportuguesa para agrado dos brasileiros”, como a estúpida mas estratégica menorização da literatura portuguesa face à brasileira; faz considerações sobre a vida americana; refere a incansável produção ensaística e poética, a publicação impossível dos contos de Os Grão-Capitães porque escandalosos, e revela a esperada conclusão (que nunca logrará), do romance Sinais de Fogo.
Declarando-se, como “escritor, um indisciplinador de almas”, JS lança afirmações memoráveis e paradigmáticas da sua personalidade: “Eu não sei viver sem contradições que seja forçado a superar a cada instante e não sei existir sem opções irremediáveis. A dor que isto causa é uma outra questão. E talvez que eu a suportasse melhor se não fora o isolamento cultural em que sou forçado a viver”. Outra: “Eu não preciso que ninguém me diga que sou um dos maiores poetas da língua portuguesa, um dos contistas mais originais, um dos críticos mais sérios e importantes, autor de algum do teatro mais significativo do século. Eu sei que sou”. Numa cultura que preza a modéstia franciscana mendicante de louvores, a seriedade de se saber excelente leva a falar de megalomania, sem conceber, escreveu Joaquim Manuel Magalhães, que “a grandeza só pode pensar com grandeza de si própria” (leia-se Jorge de Sena, Os Dois Crepúsculos, Lisboa: A Regra do Jogo, 1981).
A resposta de EL (carta de 14/6/67) é o confirmar de afinidades: “A sua realmente “amarga” carta encontrou um grande eco em mim. Já verá que, além da sintonia de “exilado” e de “exílios”, há outras razões para que eu me tenha lido nela lendo-o a si”. Lourenço capta a excelência de Sena nas cartas que envia, nas abordagens brilhantes aos sonetos de Evidências, às ficções de Novas Andanças do Demónio, incluindo O Físico Prodigioso, que julga “um dos textos mais precisos e “prodigiosos” que saíram da pluma portuguesa”, à “Aparição da Poesia”, fragmento do romance Sinais de Fogo, saído no nº 59 da revista O Tempo e o Modo, de abril de 1968, dedicado a JS, ao livro Conheço o Sal… e Outros Poemas, que acolhe com caloroso entusiasmo.
Como Gilda Santos nota, a carta de 24/6/68 é uma prova da esplêndida lucidez de EL, na análise ao Maio de 68 em França. A de 1/6/78, comovente por sabermos que JS já não a leu, é de qualidade humana e estilística inexcedível, nas palavras solidárias com o amigo doente, impedido de estar presente no I Congresso Internacional de Estudos Pessoanos; EL desgosta-se ali por os últimos textos de JS, “de uma violência e um desespero inauditos” afastarem “o comum das pessoas em atitudes que vão da perplexidade ao puro pânico cultural ou subjectivo”; espera poder associar-se à apresentação da candidatura de Sena ao Prémio Nobel, enquanto o tenta convencer da atenção, culto até, que, ao invés do que supunha, merecia “em Portugal e mesmo fora de lá”, afirmando: “Se há hoje um autor vivo e de estatura reconhecida na pequena pátria onde nasceste – mas não tens nem queres ter outra que te leia –, esse és tu”.
Exagerei nos atributos do volume? Será efeito de olhar a declinação e reconhecer que não temos hoje homens assim. Não sei quanta gente culta dará por isso, mas este é certamente um livro de estio solsticial.