Nem sempre temos a oportunidade de deambular pelo pensamento de alguém que aprendeu a aprender para nunca mais deixar de saber sempre mais.
Nem sempre temos a oportunidade de saber mais caminhando ao lado de sábios atentos, sedentos, e de, com eles, darmos os primeiros passos pela arte do bem pensar.
Nem sempre temos a oportunidade de bem pensar enquanto fazemos: o amor, a arte, o trabalho, o dever, os dias. Passamos pelas horas a cumprir – horários e promessas – sempre em atraso, mais em dívida do que em boa companhia, mais em velocidade do que com ponderada ação. Agimos sem tempo, concluímos sem raciocínio, dizemos sem sentido, orientamo-nos sem bússola, perdemos tantas vezes o coração em nome de (outra) razão.
Talvez por isso vivamos hoje com mais medo. Com mais dúvidas. Com mais pressa. Com menos palavras. Com mais entusiasmo forçado pelo que nos desanima, e menos paixão pelo que nos falta ainda conhecer. Nem sempre somos quase, nem tudo é sempre tão pouco, nem tanto do que se vive preenche tanto como se, de facto fosse muito, e no entanto, afunda-nos, pesa-nos em demasia.
Felizmente, nem sempre o tudo que nos falta conhecer está fora do nosso alcance. Passear pela exposição Múltiplo Leminski, na Casa da América Latina em Lisboa, é uma bênção; um rapto consentido ao atabalhoamento dos nossos dias para desembaciar os olhos das correntes turvas do que se escreve em vão. Uma viagem pela forma de pensar de um homem que foi poeta, tradutor, publicitário, jornalista, escritor, letrista, compositor, judoca, pai, filho de um polaco e de uma brasileira de origem africana e indígena, seminarista na sua jovem idade adulta, aprendiz toda a vida, provavelmente bom cozinheiro (não há notícia, mas faria sentido), apreciador de amigos, línguas e gins.
Um homem que escreveu a biografia de Jesus antes de Cristo (sobre a sua costela de filósofo e poeta), de Baschô, o mestre dos Haikus, ou de Trostky. Um homem que traduziu Petrarca, Joyce, Jarry ou Mishima, entre 156 traduções de 14 línguas diferentes, umas vivas, outras mortas. Um homem que dedicava os seus dias a satisfazer a sua desmedida ambição intelectual e erudita e que amava os universos entre o amarelo e o azul. Um homem muita coisa, e portanto, alguém que sabia encher poucas palavras de muitos sentidos.
Percorrer a exposição Múltiplo Leminski é confirmar que somos todos feitos de muitos corpos, muitos saberes, muitas vozes, muitas nossas, muitas de outrem, mas é também perceber e perguntar como é possível nem todos abraçarmos essa multiplicidade como forma de estar e de agir, no espaço e no tempo, na vida e na morte, na saúde e na doença. Com voracidade e lentidão.
Percorrer esta exposição é descobrir a vantagem peculiar dos curto circuitos no cérebro, menosprezando os destinos lineares. É perceber que ser, estar, saber, poder, querer, fazer, ouvir ou caber são afinal os únicos verbos regulares da nossa língua, e que é no tentar e no ser tentado que está o engenho mesmo quando não se prevê (em números) o ganho, o jeito ou a conclusão.
A exposição Múltiplo Leminski grita-nos: Não podemos passar um dia sem pensar! Não podemos pensar um dia sem pensar! Como se pode passar um dia sem pensar?
Mais do que permitir o encontro com a sua magnífica obra, mais do que celebrar a sua Poesia Reunida, agora também editada em Portugal (pela Imprensa Nacional) e mais do que comemorar e revelar a multiplicidade da sua atividade artística ou revelar aspetos mais privados do seu processo de criação, esta exposição é um convite a percorrer a lógica, as associações de ideias, as circunstâncias e as atitudes de um criador que se vê sinónimo de sim na sua relação com o mundo.
Percorro a exposição e pergunto-me se ocupo os meus dias como deveria, se os dedico de facto ao livre exercício de criar e de proporcionar espaço de criação, de “pensação”, de desarrumação. Dedicar uma vida a pensar é talvez a mais nobre das tarefas. Traduzir o ato de pensar em projetos, em casas, em jardins, em livros, em histórias aos quadradinhos, em ensaios, em aulas, em formas de estar e de viver é talvez a única atividade que nos distingue de sermos pedras que não voam só porque não têm asas. De sermos pó. De sermos tralha complexa à deriva pelo universo.
Se tem um minuto, ou mesmo se não o tiver, pare. Pegue no mapa. Tire a hora de almoço para não comer, ou o fim de tarde para esquecer aquele email que só lhe trará mais chatices no emprego antes de lhe resolver o negócio ou a situação. Desloque-se. Suba as escadas. Leia com carinho o trabalho minucioso das suas filhas Áurea e Estrela Leminski e da sua companheira e poeta Alice Ruiz. Não aprecie apenas o que vê. Procure passear pela mente de quem chegou àquelas línguas, àquelas influências, àquelas obras, àquelas geografias e qual situacionista francês, coloque o mapa do pensamento de Leminski sobre o seu. Que lugares ainda lhe falta ocupar? Que saberes ainda lhe falta descobrir? Siga as instruções do poeta, como se fosse uma criança e prometa: estar sempre alegre/ nunca ficar inativo/ e chorar com força por tudo o que se quer! Depois tenha uma ideia brilhante! Como se olhasse para dentro de um diamante e o seu olho ganhasse mil faces num só instante!
Nunca cometa o mesmo erro duas vezes/ cometa duas, três/ quatro, cinco, seis/ até esse erro aprender/que só o erro tem vez!
Conclua como Leminski: “Haja hoje para tanto ontem!”
Saia da exposição sabendo que Inverno é tudo o que sinto, Viver (afinal) é sucinto!