Uma colecionadora movida por uma insaciável curiosidade: ao longo dos últimos sete anos, Raquel André colecionou 1606 pessoas, em várias cidades do mundo. “Gosto de pessoas”, diz ela. “Acredito que precisamos todos uns dos outros”.
Das suas histórias, de imagens, objetos e memórias, dos seus encontros, criou espetáculos, interrogando também a relação com o Outro, a intimidade, como alguém se torna artista, o sentido do próprio colecionismo. Mostrou as suas coleções, primeiro, de Amantes, depois de Colecionadores, de Artistas, num projeto que agora encerra com Coleção de Espectador_s, que vai estar em cena, de 16 a 18, na sala Garrett do Teatro Nacional d. Maria II (TNDMII).
Raquel André, nascida em 1986, estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema, depois fez um mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, cidade que demandou para uma residência de cinco meses e onde acabou por ficar sete anos. E foi lá que justamente começou a colecionar os primeiros encontros. O seu interesse pela ideia de coleção, enquanto matéria e metodologia artística, no entanto, vinha de trás, de 2009, quando encontrou uma caixa de papelão cheia de cartas. O achado deu um primeiro espetáculo e um caminho criativo. Mais tarde, trabalhou o tema em co-criações com Tiago Cadete. E nunca mais parou a sua arte de coleccionar.
Jornal de Letras: Por que coleciona pessoas?
Raquel André: Colecionar pessoas é encontrá-las, ter curiosidade pelas suas histórias. É a curiosidade que nos alimenta, sobre nós, os outros, os animais, as plantas, as estrelas, o mundo. A curiosidade e a empatia são ferramentas de existência humana, para podermos questionar algumas posições, tornarmo-nos melhores. Temos uma história, enquanto Humanidade, para reparar e acredito que essas são boas ferramentas para o fazer.
E como começou a colecionar espectadores?
Esta é a última Coleção de pessoas e, portanto, já tem um passado. Tenho cerca de mil fotografias de espectadores de vários lugares do mundo. No caso da Coleção de Amantes, pedi a cada pessoa que tirasse uma fotografia durante o espetáculo e que me enviasse por mail. No da Coleção de Colecionadores, que me dessem um objeto que eu pudesse guardar. E tenho 264. Na Coleção de Artistas, convidava um espectador para vir ao palco e guardei duas dezenas desses momentos.
De todo esse material que foi colecionando se faz a estrutura do novo espetáculo?
Sim. E decidi também convidar alguns espectadores para estarem em palco. essa é a grande diferença em relação aos outros espetáculos em que estou sozinha a falar dos meus encontros com as pessoas, quando fui a casa delas, na Coleção de Amantes, ou aos seus ateliers e estúdios, na de Artistas. Na Coleção de Espectador_s eles também vão contar as suas histórias na primeira pessoa.
Como os escolheu?
Comecei por fazer um open call, que o D. Maria II divulgou nas suas redes e inscreveram-se 64 pessoas. Convidámos 20 para fazermos uma oficina durante dois dias. E desses, 11 para participarem no espetáculo. Os convites foram feitos tendo em conta a diversidade. A pessoa mais nova tem 21 anos, a mais velha 73, e abrange-se todas as faixas etárias, assim como diferentes profissões e histórias de vida.
Foram sobretudo pessoas que já conheciam o seu trabalho que quiseram participar?
Alguns já o conheciam, mas não tinham que ser espectadores das minhas coleções. Essa não era a condição. Eles vão falar de vários eventos artísticos que não esqueceram e, de alguma maneira, transformaram as suas vidas, quer sejam exposições, espetáculos de dança, teatro, cinema, arquitetura, mesmo televisão, viagens. O espetáculo também é sobre o que significa ser espectador.
Essa é uma questão central nas artes performativas e na cultura contemporânea?
Claro. É interessante, por exemplo, perceber a relação de alguma maneira hierárquica, muitas vezes criada pelo próprio artista, outras pelos espectadores. O espetáculo também interroga por que não é mais próxima essa relação. Sinto-me muito animada ao ver estes 11 espectadores falarem sobre os eventos como se fossem deles, com a mesma propriedade com que eu falo dos meus trabalhos artísticos. Como criadores que, na verdade, também são. Para mim, um ato artístico só acontece quando chega ao espectador, na individualidade do recetor.
De que forma os seus espectadores estão a assumir o papel de criadores do próprio espetáculo?
Vão falar de memórias muito fragmentadas, que por vezes se confundem, misturando-se datas, nomes. Há apenas um guião de ideias e são eles que dizem pelas suas palavras o que recordam. Ter essa potência em palco de histórias reais, contadas agora, com os mecanismos do teatro, é fantástico. Acho que eles estão super-entusiasmados.
De que forma as artes transformaram a vida destas pessoas?
Há diferentes níveis de perceção e de transformação. Às vezes, pode ser apenas um clique, um “nunca tinha pensado nisto”, outras pode haver mesmo mudanças drásticas. A ideia de transformação, ao nível pessoal, está muito presente, pelo menos neste conjunto de pessoas. Em cada cidade onde irei apresentar o espetáculo vou trabalhar com espectadores locais, diferentes, e as questões podem variar. Por outro lado, ao questionar o que é ser espectador, vou trazer ao palco também algumas questões políticas sobre os lugares em que nos apresentamos e as histórias que contam.
Em que sentido?
Fiz um site, collectionof spectators.com, em que fui lançando instruções, por exemplo, fotografei os trabalhadores do TNDMII, porque é preciso pensar nos que trabalham para que possamos ser espectadores. Vou fazer um monólogo inicial com essa homenagem e uma viagem aos espaços em volta, quase ver através das paredes, para mostrar o que está por trás do teatro. Quando apresentar o espetáculo na Noruega, irei fotografar os trabalhadores do teatro de Bergen.
Onde irá levar depois Coleção de Espectadores?
A Cabo Verde, à Praia, e estou muito entusiasmada, depois ao Centro Cultural da Malaposta, o que tem um especial significado para mim, porque foi onde comecei a fazer teatro, a Guimarães. E também irei fotografar os lugares dos teatros.
Coleção de Espectador_s será mesmo o fim do projeto ou o espírito de colecionadora não tem fim?
Deixo até um pequeno spoiler (riso), no final do espetáculo, proponho que as pessoas se colecionem umas às outras e estou a criar um dispositivo de encontros entre os espectadores. Nos últimos sete anos, dediquei o meu trabalho a encontrar pessoas, a ouvir as suas histórias reais e a torná-las espetáculos, exposições, livro. E agora quero propor a cada espectador que faça o mesmo, experimentando conhecer alguém que esteja na sala, naquela noite. A individualidade é cada vez mais forte, com as tecnologias e tudo o mais, mas a ideia de estarmos juntos, de encontro, de comunidade, é uma força. Espero que Coleção de Espectador_s consiga transmitir um pouco essa consciência. J