Às 15 horas do dia 15 de outubro, Daniel Nunes deixava o quartel dos bombeiros voluntários da Pampilhosa da Serra para ir combater as chamas que ameaçavam o concelho. Apesar de saber que estava a tomar a decisão certa, receava estar a perder um momento importante na sua vida. A vontade era a de ter ficado, como já tinha acontecido noutras ocasiões menos graves, e poder estar disponível para levar a mulher à maternidade da Universidade de Coimbra quando chegasse a hora. Mas aquela vez – e Daniel sabia-o – era diferente.
Susana Joaquim, por sua vez, pensava no perigo que corria o marido e não conseguia descansar porque a ideia de Daniel poder não chegar a tempo não parava de atravessar a sua mente. O casal tinha combinado ir a uma consulta de rotina na maternidade ao meio-dia do dia seguinte. Os relatos que iam chegando do terreno não permitiam à mulher, natural de Castanheira de Pera, fazer qualquer previsão.
Primeiro na Lousã, depois na Pampilhosa da Serra, Daniel ia combatendo as chamas e tentando evitar que chegassem às populações. Mas o fogo não dava tréguas e a violência com que avançava não deixava que o bombeiro de 26 anos parasse para descansar, muito menos para ponderar um regresso a casa, para perto da família que estava prestes a receber mais um membro. Enquanto estava a batalhar contra as labaredas, o jovem bombeiro lembrava-se frequentemente da mulher e da possibilidade de o seu segundo filho nascer sem que ele estivesse presente, mas rapidamente afastava esse pensamento.
As horas continuavam a passar, o fogo ameaçava cada vez mais povoações, o número de aldeias evacuadas aumentava hora após hora e as comunicações eram cada vez mais fracas. O vento parecia aumentar à medida que a noite ia caindo. Susana não conseguia dormir. Ia sabendo que o marido estava bem nas mensagens que, entre várias tentativas falhadas, Daniel conseguia enviar. Mas continuava sem saber a que horas voltaria.
O fogo estava descontrolado. Os ventos – sabe-se agora – ultrapassavam os 200 quilómetros hora. A temperatura que se registou nessa noite no cimo da serra foi de 75 ºC. Daniel Nunes nunca tinha visto nada semelhante. A prioridade era proteger as habitações. Pouco mais havia a fazer. Passou a noite em claro, de aldeia em aldeia, a tentar minimizar os danos.
Susana Joaquim só conseguiu adormecer a filha, de 3 anos, já a noite ia avançada. Leonor já sabe que o pai faz parte do conjunto de homens e mulheres que combatem as chamas. “Ela às vezes vê imagens de incêndios na televisão e pergunta ao Daniel porque é que ele não está a apagar aquele fogo”, conta Susana. Naquela noite, a mulher de 30 anos não conseguiu dormir. À medida que o tempo passava, a preocupação crescia e o cansaço ia-se acumulando silenciosamente.
Quando o sol nasceu, a serra continuava a arder e havia muitas aldeias em risco. Os bombeiros no terreno precisavam de ser substituídos. Foi apenas às dez da manhã que Daniel regressou ao quartel. Teve apenas tempo para tomar banho antes de partir com Susana e Leonor para a maternidade. A consulta agendada para o meio-dia não iria demorar muito e, se tudo corresse como previsto, os três regressariam a casa pouco tempo depois e poderiam finalmente descansar. Mas, como parecia regra naqueles dias, o previsível deu lugar ao inusitado.
Esperaram quatro horas e meia até serem chamados para a consulta. Apesar de terem estado um longo tempo sem dormir, Daniel e Susana estiveram sempre acordados na sala de espera. Estavam exaustos, preocupados com os estragos que as chamas tinham causado, mas também satisfeitos por poderem estar juntos ao fim daquelas horas.
Assim que Susana foi observada, a equipa médica não teve dúvidas: o bebé estava prestes a nascer. Tinham de a transferir para a sala de parto. A médica que a atendeu aconselhou Daniel a ir descansar para casa. Contrariado, o bombeiro só aceitou deixar a maternidade e regressar a casa porque a mulher tinha levado o telemóvel consigo. Sabia que seria avisado a tempo de estar presente quando Martim nascesse.
Tinha acabado de chegar a casa quando o telefone tocou. O seu segundo filho estava quase a nascer. Depois de uma hora de viagem chegou – a tempo – à maternidade. Eram 22 horas do dia 16. Daniel sentou-se numa poltrona da sala de parto, a que estava mais próxima da sua mulher. Passados poucos minutos dormia profundamente. “O telemóvel tocava e ele nem se mexia… Eu também não o ia acordar”, relembra Susana. Despertou apenas uma hora depois quando os enfermeiros entraram a correr na sala. A hora tinha chegado. Ele conseguiu estar ao lado de Susana.
O nascimento de Martim foi registado às 23:35 do dia 16 de outubro, precisamente um dia depois de ter começado um incêndio que destruiu 80% do território da Pampilhosa da Serra. Um sinal de esperança para um concelho que tenta agora renascer das cinzas.
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