As mulheres estão bem representadas em número na Arquitetura em Portugal mas existe uma invisibilidade latente em termos de poder e prestígio dentro da profissão. O alerta vem da presidente da associação Mulheres na Arquitetura (MA), Patrícia Santos Pedrosa, que avisa para os custos sociais desta ausência da representatividade: .

O número de homens e mulheres inscritos na Ordem dos Arquitetos é muito equitativo porém, as mulheres continuam a ser muito ‘invisíveis’ na profissão, em Portugal. Foi isso que motivou a criação da Mulheres na Arquitetura (MA)?
Sim… A associação surge, por um lado, por uma inquietação, uma consciência da feminização da profissão de arquiteta, de arquiteto e esta falta de espelho na imagem do que é a profissão … Quando se pensa o que é ser arquiteto é altamente improvável que se pense numa mulher. A verdade é que as mulheres apesar de estarem em crescendo, na profissão, continuam a estar muito ausentes.
Por outro lado há a questão das próprias mulheres, raparigas, meninas enquanto cidadãs habitantes dos espaços e as questões do seu direito à cidade, aos espaços públicos e privados, edifícios públicos, classificados… Quando se pensa Cidade, pensa-se Arquitetura para um suposto neutro. É supostamente um neutro que sintetiza tudo, não é? Mas na realidade representa uma hierarquia de poder simbólico e efetivo numa sociedade e também na profissão. Quando se projeta a Cidade é preciso considerar as diversidades, as questões que assolam particularmente a vida das mulheres e raparigas, as questões da segurança e as questões do direito à cidade. Foram estas inquietações que estiveram no início da história da associação.
Nestes quase cinco anos de existência notaram alguma evolução positiva neste sentido?
Pois, a pandemia intensificou estas questões todas, não é? Os estudos realizados quer ao direito à cidade, quer à reorganização dos espaços domésticos provam que as mulheres, as raparigas foram mais penalizadas também. Mas sim, começamos a notar mais interesse nestes temas e que resultam em convites à nossa associação… Há quem ache que já vivemos num contexto de tranquila igualdade mas basta começar a falar das experiências profissionais para vir ao de cima experiências que mostram o sexismo na profissão … Infelizmente, naturalizamos as situações por uma questão de sobrevivência mas existe um somatório de pequenas e grandes violências que vamos sentindo enquanto mulheres, enquanto mulheres arquitetas.
Pode exemplificar?
Por exemplo, e seguindo o que tem vindo a público a partir da Universidade do Porto e a partir da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, as questões sexistas, as micro e não tão micro agressões que estudantes e por vezes professoras continuam a sentir nos contextos onde se leciona Arquitetura… Há manutenção de comportamentos que são graves mas que são considerados como parte do cenário e não são questionados enquanto estratégias de violência e poder utilizado contra as mulheres, como, aliás, muito do sexismo que as mulheres sofrem continuamente.
E depois há todo o contexto da profissão. Quando se pensa na arquiteta em obra há aquela ideia da mulher a ser assobiada, etc, mas muitas vezes há outras questões que surgem dos seus próprios pares, pelos engenheiros, pelos clientes… Quantas vezes as arquitetas estão ali para explicar o projeto e lhes é perguntado pelo cliente quando é que “o sr arquiteto chega”… Isto é a assunção de que quando se olha para uma mulher, que está ali à frente, não é considerada como sendo a pessoa responsável pelo projeto. Isto não são histórias ancestrais. Isto continua a acontecer a mulheres arquitetas portuguesas e não só.
E depois existem também os exemplos simbólicos. Basta observar os prémios de arquitetura, quem os ganha, quem está nos júris… Basta observar as exposições, os colóquios, as conferências de arquitetura quem palestra, quem organiza… Podemos olhar para o exemplo da própria Ordem dos Arquitetos… Só temos mulheres enquanto membros-honorários a partir de 2011, sendo que a Ordem se institui em 2002. E existem 117 membros-honorários nomeados, dos quais apenas seis são mulheres.
Pode especificar?
Os membros-honorários podem ser ou não arquitetos, podem ser ou não nacionais, podem ser instituições que contribuam para os valores da arquitetura portuguesa – por exemplo a Secil é membro-honorário por causa do prémio Secil. E a estratégia da designação dos membros-honorários vai mudando de direção em direção. Desde a instituição da Ordem dos Arquitetos em 2002 foram nomeados 117 membros-honorários. A primeira mulher a ser nomeada enquanto membro-honorário é a Cristina Salvador em 2011. E depois só temos mais cinco mulheres a seguir.
Na vossa página de Facebook citam um ranking onde se apurou que as mulheres arquitetas ocupam apenas 20% dos cargos executivos nos 100 maiores ateliês de arquitetura do mundo. Como é por cá?
Por cá não temos grandes ateliês de arquitetura se compararmos com a escala de um ateliê nos Estados Unidos… Mas ainda assim temos mulheres, em título pessoal, à frente dos seus ateliês ou mulheres em parceria à frente dos seus ateliês. Mas é sempre um esforço quando precisamos pensar quem são elas, o que é quase absurdo. E isto sente-se desde logo porque as pessoas com mais visibilidade, as pessoas que são convidadas a falar, são sempre as mesmas…
Apesar deste cenário, temos atualmente um executivo governamental mais equitativo, duas vereadoras na autarquia da capital do país nas pastas de Habitação e Urbanismo… A nível internacional, algumas mulheres estão a dar cartas no desenho e planeamento urbano de cidades tão impactantes como Paris, Barcelona ou Buenos Aires. Mas são ainda gotas de água?
Sim, são gotas de água… Estas mulheres que referiu internacionalmente são mulheres que carregam uma agenda que quer fazer a diferença e que quer entrar em rutura com a ideia de atividade de poder que impera nas cidades. É um processo lento muito moroso, seguramente minado com imensos inimigos.
Porque a verdade é que não se consegue mudar rapidamente uma estrutura profundamente pensada e ancorada no investimento privado como salvador de tudo quando a Cidade é um bem comum. Quando as políticas não se orientam para a sua população que não anda de carro, que não tem poder aquisitivo para comprar casa, estamos obviamente a excluir todas estas pessoas quando estamos a pensar as cidades. E sobre os seus direitos constitucionais de ter um espaço urbano qualificado e do seu direito à habitação. Por cá, eu não vejo, nas políticas urbanas, nas políticas de habitação, vontade absolutamente alguma de entrar em ruptura com o estabelecido em termos de perspetiva crítica de pensamento comum, de pensamento para as cidades, a partir do direito de todos e de todas a viver com dignidade. Neste momento, em Portugal, ainda não há uma ideia da cidade enquanto bem comum.
Qual o impacto que isso provoca em termos de construção de espaço?
Se pensarmos na história da cidade e da construção do território, quem foi tendo sistematicamente o poder de decisão, o poder político e o poder executivo, foram sempre os homens. Portanto quando se pensa a cidade de uma maneira profundamente hierárquica, dos governos centrais aos poderes locais, de cima para baixo, dificilmente estes homens que circulam de carro, que têm conforto no seu quotidiano, conseguiram trazer para as decisões que tomam, a diversidade das necessidades e dificuldades de todos os quotidianos. Estamos a falar genericamente de um poder constituído por homens e para homens. A cidade deveria ser desenhada como um espaço neutro mas é um exercício que dá trabalho, consome energia sentirmo-nos na pele do outro, é a aproximação do que é diferente, isso exige discussão… E por isso quem decide sobre a cidade, que deveria decidir sobre este espaço neutro, acaba por criar decisões para aqueles outros que lhes parecem iguais a eles próprios.
Como se pode criar equidade?
Do ponto de vista da profissão começar por um inquérito sério para perceber quem somos e quais as condições de trabalho. Porque nós apercebemo-nos que nesta altura são mais mulheres do que homens a inscreverem-se anualmente na Ordem dos Arquitetos. Neste momento teremos 46% de mulheres inscritas na OA. Mas também existe um número maior de mulheres a suspenderem as suas inscrições na ordem. É preciso perceber porquê para podermos saber intervir.
Por outro lado, parece fundamental que através da Ordem dos Arquitetos seja estabelecida uma política de tolerância zero nas questões do assédio moral e do assédio sexual. E também adotar uma política zero para a situação do ‘only male can do’… Todos os dias há eventos de arquitetura e só se vê homens como oradores… Com sorte aparece uma mulher a moderar… O que é completamente inaceitável em 2022. As mulheres estão aí, somos quase metade na profissão. Já não é possível dizer que não somos capazes ou que somos a minoria.
Atualmente, qual é a distribuição por género nos alunos de arquitetura?
Dados do último ano letivo, inscritos nos mestrados integrados de arquitetura nas escolas públicas portuguesas do 1º ao 5ºano, a presença das mulheres é de 60%. O que quer dizer que as mulheres se estão a graduar em maior numero do que os homens. Mas para onde vão estas mulheres? É por isso que é preciso saber quem somos e para onde estamos a ir.
Além disso, os cursos e as escolas de arquitetura precisam de ter manuais de boas práticas que digam claramente quais são os comportamentos aceitáveis e os que não são, para que as situações de assédio desapareçam… E também deveria existir uma política de quotas por parte das instituições que têm a arquitetura como preocupação, sejam a instituições universitárias ou culturais. É preciso que em todos os momentos, as estudantes e as jovens arquitetas se vejam representadas nos palcos que assistem para que se imaginem a exercer a profissão. Isto em relação as estratégias no interior da profissão.
Sobre a questão das práticas urbanas e arquitetónicas, é preciso que os políticos e as políticas tenham as questões das perspetivas de género presentes. Ao nível das políticas urbanas, territoriais, de acesso à habitação e que considerem o sítio de onde as raparigas e as mulheres partem social e espacialmente, de forma a estabelecerem políticas de contracorrente que trave esta violência que é exercida sobre as mulheres… São as questões da habitação, as questões da esfera dos cuidados… Quem continua tradicionalmente a desempenhar o papel de cuidadora na nossa sociedade continua a ser a Mulher. Nós aspiramos a que a destruição destes papéis de género aconteça e que surja a igualdade efetiva nos papéis de cuidador mas até lá quem é mais tolhido pelas cidades, pelos equipamentos que não estão pensados para a esfera dos cuidados são exatamente as mulheres. Quando tudo isto passar a ser igualitário, fantástico, todas as pessoas terão melhor cidade!