Embaixador do Equador em El Salvador, na Austrália e na Bulgária, bem como nas Nações Unidas em três ocasiões distintas, também dirigiu, no início desta década, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, numa carreira de mais de 50 anos ao serviço da diplomacia do país sul-americano. Luis Gallegos, 78 anos, exerceu ainda vários cargos na ONU, incluindo no Conselho dos Direitos Humanos e na Assembleia Geral, tendo liderado o comité responsável pela elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em 2006.
Agora, é impulsionador de uma nova negociação global, dentro das Nações Unidas, para se estabelecer uma Convenção para a Proteção dos Direitos dos Idosos e da Longevidade, sustentada no aumento da esperança de vida. Nesse contexto, criou a fundação Global Initiative on Ageing & Longevity e participou, na semana passada, num congresso internacional sobre economia da longevidade realizado no Porto. Antes da viagem a Portugal, conversou com a VISÃO a partir de Quito, capital equatoriana, por videoconferência, sobre este projeto nascido na pandemia. Já reformado, mas não retirado, até porque os dias, garante, continuam divertidos e “muito preenchidos, talvez mais agora do que antigamente”.
Quais os novos desafios do envelhecimento num contexto de aumento da esperança de vida em quase todos os países?
Temos um problema demográfico muito complexo. Somos mil milhões de pessoas com mais de 65 anos. Neste momento, temos mais idosos do que crianças a nascer. Nas Nações Unidas, estima-se que, por cada idoso, há duas pessoas no grupo de impacto direto, sejam família, cuidadores, médicos. Isso eleva os envolvidos para aproximadamente três mil milhões de pessoas. Dentro de 25 anos, em 2050, seremos dois mil milhões acima dos 65 anos e um grupo de impacto de quatro mil milhões. Portanto, uma comunidade de seis mil milhões de pessoas. As leis nacionais não estão preparadas para esta mudança demográfica e, em muitos casos, os governos não consideram politicamente vantajoso abordar estas questões, como aumentar a idade da reforma ou alterar as regras da Segurança Social. Por isso, a solução política é deixar para o próximo governo resolver, mas não é a solução real.
Até há pouco tempo, só uma pequena parte da população vivia durante várias décadas após atingir a idade da reforma, mas deixou de ser assim.
Agora as pessoas vivem, em média, 25 a 30 anos depois dos 65. Na sociedade moderna, a vida divide-se entre a etapa de formação, que inclui toda a educação até ao doutoramento e se estende, em média, até aos 35 anos, depois trabalha-se mais 30 ou 35 até aos 65 ou 70, e a seguir vive-se outros 30. As pessoas vivem mais e em melhores condições, tanto físicas como mentais, porque há melhores medicamentos, melhores sistemas médicos, uma sociedade mais consciente do que lhe faz bem ou mal, que faz mais exercício. Mas este não é um fenómeno populacional da Europa, do Japão, da Coreia do Sul ou dos Estados Unidos da América. É um fenómeno global. Na China, há 400 milhões de pessoas com mais de 65 anos.
Não é um problema exclusivo de países ricos, portanto.
É um problema ainda maior nos países pobres, onde a rede de apoio são as famílias. Logo, são necessárias uma política estatal e uma política global claras sobre como vamos lidar com o envelhecimento de um segmento importante da população. A longevidade vai afetar as relações sociais, as económicas, as tecnológicas, os setores de produção e trabalho, o sistema educativo. Vai ter um efeito muito complexo na sociedade, que a dado momento terá mais idosos do que restante população.
Quais as principais implicações no trabalho, nos cuidados médicos e na qualidade de vida na velhice associadas às transformações a que estamos a assistir no nosso estilo de vida?
Ao mesmo tempo que a evolução tecnológica muito rápida e complexa de prever, com a Inteligência Artificial e os novos mecanismos, fará desaparecer muitos dos trabalhos funcionais que conhecemos, a robótica e a tecnologia de assistência estão a ser seriamente debatidas em todo o mundo. Vou dar um exemplo. Há alguns meses estive em Pequim, cuja população envelhecida quer viver nas suas casas, não em lares ou instituições. Por isso, desenvolveram um sistema tecnológico que acende luzes quando as pessoas vão à casa de banho de noite, avisa quando a água ao lume começa a ferver ou mede a pressão arterial quando alguém se aproxima de um espelho. O aparelho está ligado, 24 horas por dia, a um sistema de cuidados médicos que proporciona autonomia e que irá melhorar com o tempo. Pode ser só para alguns, mas é um indicativo de onde iremos procurar soluções. É muito importante sublinhar que se trata de viver com dignidade, da melhor forma possível, dentro das limitações e do destino de cada um. Considerar os idosos uma minoria e colocá-los num canto é não perceber que todos vão ser idosos. Precisamos de mais compreensão e empatia, numa visão intergeracional. As escolas, por exemplo, terão de ensinar aos jovens como se cuidarem para viverem melhor nos últimos anos. Seria extraordinário encarar o envelhecimento como um desafio semelhante ao das alterações climáticas, como resultado de uma mudança de mentalidade em todo o mundo.
A Global Initiative on Aging & Longevity (GIA Longevity), a fundação que criou em 2022, definiu como objetivo “agir em prol de um mundo construído para a longevidade”. Como surgiu a ideia de promover uma convenção de direitos humanos e envelhecimento no seio da ONU?
Em 2020, eu era embaixador do Equador nas Nações Unidas, em Nova Iorque. Com a minha esposa, Fabiola, decidimos trabalhar neste tema depois do que ali vimos durante a pandemia, quando um dia morreram mil pessoas em lares para pessoas com deficiência e para idosos. Morreram sozinhas e isoladas. Isso motivou-nos a dizer que eram necessárias regras de dignidade. Uma criança nascida hoje tem a probabilidade de viver mais de 100 anos. Então, temos de tentar que ela viva essa longevidade com qualidade de vida, com os seus direitos salvaguardados, o que muitas vezes não acontece devido a leis obsoletas que temos agora. Neste processo de transição, a palavra-chave é dignidade.
Os idosos têm sido tratados com “idadismo”, ou discriminação por causa da idade. Dou como exemplo o facto de serem considerados inaptos para trabalhar ou a recusa dos bancos de lhes emprestar dinheiro
Porquê?
Os idosos têm sido tratados com “idadismo”, ou discriminação por causa da idade. Dou como exemplo o facto de serem considerados inaptos para trabalhar ou a recusa dos bancos de lhes emprestar dinheiro. Como imaginam que o cliente vai morrer, não lhe facilitam o carro novo, porque preferem emprestar aos mais jovens do que aos mais velhos. Esta é uma das múltiplas razões que nos levaram a propor na ONU a necessidade de negociar uma Convenção das Nações Unidas para a Proteção dos Direitos dos Idosos e da Longevidade. Foram precisos três anos e meio de conversações até o Conselho de Direitos Humanos aprovar, a 4 de abril deste ano, o início das negociações para uma convenção que proteja os direitos e a dignidade dos idosos. Levará mais dois ou três anos para que os países negoceiem um acordo e se comprometam a proteger os direitos dos idosos, assim como se comprometeram a proteger os direitos das pessoas com deficiência.
Que outros direitos dos maiores de 65 anos é preciso acautelar globalmente?
O uso da tecnologia, por exemplo. Exigimos maior cibersegurança para os idosos que não dominam o tema, mas que são afetados por ele. Também me lembro de que há alguns anos, em Espanha, quando os bancos fecharam as pequenas agências com funcionários e colocaram apenas caixas automáticas, houve uma recolha de 800 mil assinaturas a pedir funcionários para atender os idosos que não tinham a possibilidade, a capacidade, o que quer que fosse, de usar essas caixas automáticas. Quando se reúne tal quantidade de assinaturas, o Parlamento espanhol tem de tratar do assunto. Um dia, estava a dar uma palestra sobre o tema em Madrid e um homem de 30 anos disse-me que tinha assinado a petição. Perguntei-lhe porquê, se era tão jovem, e respondeu: “Quando o meu pai não consegue levantar o dinheiro da reforma, liga-me para o ajudar. Devia haver uma solução para o problema dele que não fosse um problema para todos.” Queremos quebrar estas barreiras. Outro exemplo é impedir que eles administrem os seus bens e recursos a partir de certa idade. Tudo isso tem de mudar com o aumento da longevidade, assim como é preciso outra atenção das políticas de Estado ao isolamento e à solidão das mulheres idosas, a que acrescem as doenças da velhice. Em suma, a complexidade deste problema é de tal magnitude que, muitas vezes, os decisores políticos preferem adiá-lo ou deixá-lo nas mãos da sociedade civil. A GIA Longevity foi criada não só para motivar a convenção da ONU, mas também para abordar todos os aspetos da longevidade que identificámos: financiamento, habitação, segurança, adaptação das cidades, procurar que os governos sejam mais amigáveis e todos os elementos necessários para viver os últimos anos com dignidade. Que não seja como querem pintar agora, um fardo para filhos e netos, que também não é justo para eles, pois o que deve ser é um complemento intergeracional.
Não sentiu vontade política para enfrentar esses problemas?
Vou fazer uma distinção aqui. Há muita desconfiança nas democracias, que acreditam que não dá votos tratar destas questões sensíveis para a sociedade, enquanto nos governos autoritários isso não importa, porque eles lidam com isso dentro de um esquema de planeamento centralizado, no qual a solução do problema é coletiva. São realidades geopolíticas que nada têm a ver com o fundo do problema.
Mas quer dizer que os países autocráticos têm maior facilidade em decidir sobre o assunto?
Acredito nisso. Falei com muitos chefes de Estado. No entanto, numa conversa com António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, ele disse-me: “Lembre-se de que quase todos os mandatários têm a nossa idade e, portanto, deve haver uma maior sensibilidade para este fenómeno da longevidade.” O que vejo em muitos casos é que o tema dos fundos, dos sistemas sociais, da previdência, deste cubo de Rubik onde estão saúde, educação, problemas de género ou habitação, torna-se tão complexo que as pessoas se abstraem. Espero que esta discussão nas Nações Unidas, a negociação de uma convenção e o ativismo das novas gerações possam trazer para a discussão mundial o verdadeiro problema dos idosos nas sociedades atuais e no futuro imediato. Se vamos ser seis mil milhões de pessoas impactadas com a longevidade daqui a 25 anos, não é tema que possa esperar até ao final do século para se ver o que acontece.
Portugal tem uma população envelhecida. É um dos maiores riscos para a sustentabilidade dos sistemas de pensões em muitos países do mundo?
Essa é precisamente a base do problema. Por exemplo, na Coreia do Sul, a média de idade dos trabalhadores é de 53 anos, quando deveria ser de 35. No Japão, as pessoas continuam ativas aos 80 anos. É um fenómeno que é necessário analisar para ver se esse tipo de filosofia, de cultura, de valores, de religião, se adapta aos conceitos europeus, americanos ou de sociedades diferentes.
Em Portugal, só se pode trabalhar no setor público até aos 70 anos, mesmo que a pessoa deseje continuar. Concorda com esta restrição?
Só posso falar do meu caso e dos casos das pessoas à minha volta.
No fundo, estou a perguntar se alguém com 70 anos tem o direito de continuar a trabalhar, se tiver essa vontade?
Eu concordo com isso, porque passei pelo mesmo. Aposentei-me aos 70 anos, depois de 52 anos no setor público, e hoje, aos 78, continuo a trabalhar noutras causas. Ainda há muito a dar.
Trabalha todos os dias?
Sim. Talvez mais agora do que antigamente. Com as novas tecnologias, dou aulas de manhã, ao meio-dia tenho discussões com Nova Iorque, agora são 17h e estou em ligação com a Europa. De manhã, tive uma intervenção de apoio a uma crise internacional na qual as Nações Unidas me pediram para intervir. Normalmente, tenho os dias muito preenchidos. Divirto-me muito, sou um otimista de coração e agradeço a Deus por a minha mulher me permitir fazer o que faço.
A convenção para idosos incluirá medidas para os cuidadores?
É muito importante ter presente que existe uma indústria de cuidados que vai crescer e que vai precisar de pessoas com empatia, por exemplo, para levar uma pessoa, homem ou mulher, à casa de banho. Precisamos de educar os cuidadores, de formar médicos, de analisar rigorosamente os temas na academia para que haja uma contribuição ao mais alto nível. Mas precisamos de começar. Nesta conferência em Portugal sobre a economia da longevidade, vamos trocar opiniões, como faremos noutras. Nos próximos três meses, haverá cinco conferências globais sobre envelhecimento. O mundo quer contribuir para encontrar soluções.
Ouvir os vários intervenientes é parte do processo para se chegar ao que ficará escrito na convenção?
Claro. Na discussão destes temas tem de haver todas as visões e tem de haver um grande acordo mundial que leve à dignidade das pessoas idosas.
O que aprendeu com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em 2006 na ONU, após um processo que também liderou?
É muito difícil negociar um instrumento internacional entre 193 países que têm línguas diferentes, valores diferentes, religiões diferentes, interesses diferentes, muitas vezes interesses geopolíticos diferentes, mas que concordaram em proteger as pessoas com deficiência. Num mundo multilateral, fraturado por guerras entre potências e rivalidades, talvez possamos concordar que a proteção dos idosos também é uma causa que deve ser protegida. O que aprendi? Aprendi a admirar as mães e os pais que estão dispostos a lutar pelos filhos com deficiência e pelas suas famílias. É importante que exista essa paixão pela prevalência dos direitos humanos, independentemente da idade, da condição de deficiência, de ser mulher, homem ou criança. Há no mundo 1,3 mil milhões de pessoas com deficiência, com um grupo de impacto de 2,6 mil milhões. Portanto, são 3,9 mil milhões de pessoas protegidas pela convenção sobre deficiência. Quando ando pelas ruas, vejo os pontos para orientar as pessoas cegas. Foram consequência desse acordo comum. É importante haver uma visão integral do mundo onde todos os seres humanos de diferentes gerações possam conviver. Uma pessoa nasce com uma deficiência ou adquire-a durante a vida por acidentes, doenças, guerras, como vemos na Ucrânia, em Gaza e nos 60 conflitos do mundo. Quando se tem mais de 65 anos, há 85% de probabilidade de se ter uma incapacidade, uma deficiência, um elemento limitante.
Com mais de 50 anos de experiência diplomática em vários cargos, como vê a importância da diplomacia no mundo atual? Está novamente a ganhar terreno a força das armas?
Estamos a viver num mundo muito complexo, de uma fratura do multilateralismo, uma polarização global que é muito preocupante para pessoas como eu, que dedicámos a vida a procurar consensos, a unificar critérios, a privilegiar a inclusão de pessoas diferentes, pessoas com deficiência, mulheres indígenas, a lutar por sociedades mais integradas em vez de excludentes. Então, preocupa-me o momento atual do mundo, porque há um afastamento dos valores para que reine a força em vez da razão. Num mundo polarizado, o que existe é a possibilidade de mais violência e assim não vamos resolver isto como Humanidade, na procura do melhor para todos.