No século XVI, quando o petróleo ainda não era usado como fonte de energia nem havia a procura que hoje se verifica das chamadas terras raras, o motor da economia mundial esteve centrado no comércio das especiarias. Especialmente, a partir do momento em que os portugueses chegam, em 1511, às ilhas Molucas, dando início a uma feroz batalha, com os vizinhos espanhóis, pelo controlo deste comércio valioso, centrado no cravo-da-Índia e na noz-moscada.
Considerado um dos grandes historiadores dos impérios marítimos europeus, autor nomeadamente dos best-sellers Conquistadores e A Torre Maldita, o britânico Roger Crowley volta agora ao tema com o livro A Rota das Especiarias – A Disputa do Século XVI que Moldou o Mundo, editado pela Presença. É um regresso a uma das épocas mais marcantes da História de Portugal, mas também do mundo. E que nos deixa várias lições sobre os tempos modernos. Mesmo que o historiador não esconda algum pessimismo. “Atualmente, não parecemos estar a dar ouvidos ao passado, à medida que entramos num período que parece cada vez mais perigoso e enfrentamos problemas intratáveis”, confessa.
Qual a razão para as especiarias serem tão importantes no século XVI? E o que significava para as potências marítimas o controlo desse comércio, com origem na Ásia, nomeadamente na atual Indonésia?
Por que as especiarias eram tão importantes? É uma pergunta fascinante e que nos parece misteriosa hoje em dia. Mesmo no século XVI, um monge português chamado Gaspar da Cruz achava que “o Homem pode viver sem pimenta”, mas, ao longo da História, as especiarias exerceram uma forte influência na imaginação humana. Foram-lhes atribuídas propriedades mágicas: antisséticas, analgésicas, afrodisíacas e até foram consideradas vislumbres do Paraíso. Ao mesmo tempo, tinham outra característica ainda hoje muito atual: tornavam simplesmente a comida mais interessante. Na Europa, eram extremamente caras, pelo que adquiriram um estatuto místico e de luxo, permitindo à nobreza rica exibir-se com banquetes luxuosos temperados com especiarias.
O controlo do comércio de especiarias, do ponto de vista europeu, era uma questão de dinheiro. As especiarias passavam pelas mãos de muitos comerciantes até chegarem à Europa. Cada comerciante acrescentava a sua própria margem de lucro, de modo que o preço das especiarias na Europa era frequentemente 1 000% mais do que o seu custo na origem. O objetivo da exploração europeia era eliminar os intermediários. Esses intermediários eram em grande parte comerciantes islâmicos, pelo que também envolvia um certo elemento de guerra santa.
O que torna a história do controlo das especiarias relevante para o público atual? Acha, por exemplo, que há paralelos com o controlo atual sobre os minerais raros?
Sim, acho que é um paralelo razoável – a corrida para obter e possuir recursos valiosos está muito presente na opinião pública atualmente.
O que mais o surpreendeu durante a pesquisa e a escrita deste livro?
Em inglês, temos um ditado, derivado de um romance, que diz que “o passado é outro país” – que é impossível compreender realmente as pessoas e os acontecimentos do passado. Dei por mim a tentar, sem sucesso, compreender a mentalidade dos marinheiros que fizeram viagens extraordinárias que envolviam sofrimento terrível e uma grande probabilidade de morrer. É possível perceber que viajar era a única vida que eles conheciam e que viram a perspetiva de oportunidades desconhecidas numa primeira ocasião. 265 homens partiram com Magalhães. 18 voltaram. Cinco deles (incluindo Elcano) voluntariaram-se para repetir a viagem, sabendo exatamente o que os esperava. O passado é realmente outro país.
O modelo de Afonso de Albuquerque no controlo das rotas marítimas é, ainda hoje, o mesmo que seguiram todos os impérios sucessivos. Atualmente, vemos os chineses a fazer algo semelhante
No seu livro Conquistadores, elevou para níveis muito altos o contributo de Vasco da Gama para a globalização. Neste livro, A Rota das Especiarias, destaca o papel decisivo de Afonso de Albuquerque. Porquê? Qual foi a sua importância? Ele era um visionário?
Afonso de Albuquerque foi muito importante para o desenvolvimento do Império Português no oceano Índico. Ele foi certamente um pensador à frente do seu tempo. Em primeiro lugar, percebeu que havia poucos portugueses para controlar o território terrestre, mas que a criação estratégica de bases costeiras fortificadas permitiria aos portugueses controlar o comércio e fornecer uma rede de bases marítimas. As ligações na cadeia de bases foram o primeiro passo para uma rede global de longo alcance para o comércio e para o intercâmbio. Ao mesmo tempo, Albuquerque era um radical no pensamento social. Percebendo que a presença portuguesa consistia apenas em homens, face à oposição da Igreja, ele encorajou os casamentos mistos com mulheres locais. Goa é o modelo disso. Ele foi um criador de sociedades crioulas.
Vê o controlo contemporâneo das rotas marítimas, como Malaca, como um eco direto das rotas do século XVI e da visão estratégica de Afonso de Albuquerque?
Absolutamente. O modelo de Afonso de Albuquerque no controlo das rotas marítimas é, ainda hoje, o mesmo que seguiram todos os impérios sucessivos, particularmente o britânico. Atualmente, podemos ver os chineses a construir essa rede controlada por bases – em África, na América Latina, na Ásia e no Médio Oriente – e tentando dominar o mar da China Meridional.
O conflito ocorrido no século XVI, nas Molucas, entre portugueses e espanhóis pode ser considerado uma espécie de guerra ibérica esquecida, uma vez que raramente é lembrado, contrariamente ao que sucede em relação a outros conflitos, como a Batalha de Aljubarrota?
Penso que essa é uma forma razoável de ver a disputa pelas especiarias – uma microguerra do outro lado do mundo que, por estar tão distante da disputa entre portugueses e espanhóis noutros locais e por ser de tão pequena escala, mal tocou a consciência nacional e passou despercebida. Mas, na verdade, durou 20 anos.
Qual é o episódio mais dramático ou simbólico desta guerra distante que destaca?
Acho que os relatos de testemunhas oculares de ambos os lados e dos seus representantes, os povos nativos, que travaram intensas batalhas em canoas, são fascinantes. O basco Andrés de Urdaneta escreveu sobre uma delas, do ponto de vista espanhol. Ele estava numa canoa quando um barril de pólvora pegou fogo. Gravemente queimado, ele salta para o mar, “quando voltei à superfície, a nossa proa (canoa) estava a fugir, porque os portugueses, vendo a pólvora em chamas, atacaram-nos”. Nem gritos nem gestos conseguiram persuadir os remadores indígenas a resgatá-lo. Ele viu as canoas portuguesas a aproximarem-se dele, disparando mosquetes. Mesmo a tempo, uma canoa vem salvá-lo. “Agradou ao Nosso Senhor que o inimigo não me tivesse feito mal. Fiquei gravemente queimado, de tal forma que fiquei 20 dias sem sair de casa.”
Neste A Rota das Especiarias cita uma frase de António Galvão sobre o facto de, naquela época, os portugueses enviarem “assassinos para a Índia, de onde eram enviados para Malaca, com os casos mais monstruosos a irem para as Molucas”. Foi uma época marcada pela ganância e pela crueldade?
É difícil pensar de outra forma. Cada governador português das Molucas tinha uma oportunidade de quatro anos para enriquecer o mais rapidamente possível. Afonso de Albuquerque soube prever o futuro: “Portugal é muito pobre e quando os pobres são cobiçosos, tornam-se opressores… Receio que chegue o tempo em que, em vez da nossa atual fama de guerreiros, só sejamos conhecidos como tiranos gananciosos.” Galvão destaca-se como uma exceção decente, um homem que estava genuinamente interessado no povo das Molucas e fez algumas melhorias nas suas vidas.
Como é que a mentalidade dos portugueses no oceano Índico difere da dos espanhóis nas Américas?
Mais uma vez, penso que a diferença é uma questão de escala. Vasco da Gama podia ser tão cruel como qualquer outra pessoa, mas os portugueses eram simplesmente incapazes de infligir os níveis de danos às culturas antigas e profundamente enraizadas do hinduísmo e do islamismo que os espanhóis infligiram às tribos indígenas das Américas. A população de Portugal era demasiado pequena, daí a solução dos casamentos mistos.
As viagens das especiarias levaram os portugueses a introduzir armas de fogo no Japão, criaram as primeiras ligações com a China e obrigaram os espanhóis a preencher a lacuna que faltava na navegação pelo oceano Pacífico. As consequências são muito profundas
Escreve que, naquela época, “em termos de gestão, recolha e atualização de dados, arquivos e mapas, Portugal estava muito à frente de Espanha” e que a vida em Lisboa estava repleta de espiões. O que mudou e por que razão Portugal perdeu esse poder?
Sob o rei D. João II, os portugueses criaram um notável processo de recolha de conhecimento e uma estratégia estruturada para a exploração marítima. Estavam muito à frente de Espanha nas fases iniciais da exploração náutica porque eram, por temperamento e modo de vida, um povo do Atlântico, enquanto considero os espanhóis – com exceção dos bascos – um povo do planalto. Ao mesmo tempo, o sentido de identidade de Portugal como nação unificada desenvolveu-se cedo – daí a importância de Aljubarrota –, enquanto a formação de Espanha demorou a emergir (e permaneceu dividida por conflitos internos até aos dias de hoje). O rei D. João II, um dos monarcas mais inteligentes do início da era moderna, criou um esforço nacional unificado. Portugal e, depois Espanha, ficaram para trás devido ao surgimento dos recém-chegados do norte da Europa – os ingleses e os holandeses. As estruturas imperiais de Espanha e de Portugal eram dirigidas centralmente pela coroa e as decisões eram lentas. Os europeus protestantes criaram novos modelos financeiros para a exploração – empresas privadas, como a Companhia Inglesa das Índias Orientais e a sua equivalente holandesa, a VOC, nas quais muitos comerciantes podiam investir e que permitiam que as decisões fossem tomadas de forma mais rápida e eficaz do que o sistema monárquico centralizado: a iniciativa privada era mais ágil e eficaz do que o controlo real.
As especiarias tiveram mais impacto na História mundial do que o ouro e a prata? De que forma as especiarias mudaram as potências europeias?
Penso que podemos considerar as especiarias a primeira mercadoria comercial global. Paralelamente à rota da seda, criaram redes comerciais marítimas de longo alcance que se estendiam por todo o planeta, desde a Antiguidade. Existem cravos com 4 000 anos escavados nas margens do Eufrates e relevos esculpidos de frotas de especiarias no Egito, no vale dos Reis. Estas ligações profundas tiveram todo o tipo de impactos no mundo. As viagens das especiarias levaram os portugueses a introduzir armas de fogo no Japão, criaram as primeiras ligações com a China e obrigaram os espanhóis a preencher a lacuna que faltava na navegação pelo oceano Pacífico. As consequências são muito profundas. É razoável afirmar que esta ligação através do Pacífico permitiu que a prata fosse transportada para a China e criasse a primeira moeda global. Portanto, o impacto das viagens das especiarias é enorme. Permitiu aos europeus compreender o nosso planeta como uma entidade. As suas explorações viram uma explosão da cartografia e da escrita na nova era da impressão.
As atuais guerras comerciais podem ser interpretadas como uma versão menos sangrenta das rivalidades ibéricas daquela época?
Acho que a realidade atual mostra que as guerras comerciais sempre estiveram presentes, mas a diferença é menos sobre commodities e mais sobre tarifas e protecionismo. No entanto, quando vemos a corrida para controlar metais preciosos e outros recursos, podemos fazer o paralelo.
Quais são os grandes mitos da “Era dos Descobrimentos” que gostaria de desmistificar?
Primeiro, considero que a expressão “Era dos Descobrimentos” é um conceito incrivelmente eurocêntrico. Seria útil se virássemos um pouco o globo para perceber que outras nações e povos sabiam muito sobre o mundo antes de começarmos a navegar à sua volta. De certa forma, isso implica a sua insignificância até que a Europa se deu ao trabalho de os notar.
Como é que a História nos ajuda a refletir sobre os caminhos que o mundo deve evitar repetir?
Pensando no comércio de especiarias, vejo temas que se repetem: controlo de recursos preciosos e zonas estratégicas, gestão – ou tentativa de gestão – de conflitos através de negociações. Refletir sobre estas questões é útil, mas, atualmente, não parecemos estar a dar ouvidos ao passado, à medida que entramos num período que parece cada vez mais perigoso e enfrentamos problemas intratáveis.