Desperdício de pescado “Podemos fazer muito mais com o que sobra, com as vísceras, a pele, as espinhas, os olhos, as escamas… Muito disto pode resultar em produtos de valor acrescentado de um nível já de luxo”

Desperdício de pescado “Podemos fazer muito mais com o que sobra, com as vísceras, a pele, as espinhas, os olhos, as escamas… Muito disto pode resultar em produtos de valor acrescentado de um nível já de luxo”

Chama-se Fish Matter, da Cabeça à Cauda e pretende ser uma plataforma para aliar quem produz desperdício de peixe, como a indústria conserveira e de congelados, a quem tem tecnologia para transformar um resíduo em matéria-prima. “Podemos fazer muito mais com o que sobra, com as vísceras, a pele, as espinhas, os olhos, as escamas… Muito disto pode resultar em produtos de valor acrescentado de um nível já de luxo”, diz Maria Coelho, coordenadora do B2E CoLAB, o laboratório colaborativo responsável pelo desenvolvimento do Fish Matter – um jogo de palavras em inglês que pode traduzir-se simultaneamente por “matéria de peixe” e “o peixe importa”. É este o ponto de partida para uma conversa que passa pela inovação em economia azul, mas também pela aquacultura.

O desperdício de subprodutos do peixe, ou coprodutos, é um problema grave?
É um problema grave, sim, porque estão a perder-se oportunidades importantes, que vão permitir-nos alavancar esta passagem de uma economia linear para uma economia circular. É este o novo paradigma de sustentabilidade e impacto ambiental. Tudo aquilo que fazemos hoje em dia tem uma pegada, uma consequência. E o mesmo acontece na bioeconomia azul e, mais concretamente, com a questão dos coprodutos. Em todo o mundo, por ano, há cerca de dez milhões de toneladas de desperdício de pescado. E também acontece em Portugal. Podemos pegar neste desafio e transformá-lo numa oportunidade.

É uma questão particularmente relevante em Portugal, sendo um dos países que mais peixe consomem no mundo, per capita…
Exatamente. Temos uma costa com enorme potencial e uma cultura piscatória e de produção, pelo que daí decorre que também sejamos geradores deste tipo de desperdício. Só para contextualizar, os principais geradores em Portugal de coprodutos têm vindo a ser a indústria conserveira, através das suas águas de cocção (muito ricas numa série de substâncias que podem ser utilizadas), a salga do bacalhau e toda a indústria de processadores. Estas empresas de congelados, que fazem filetagem ou que arranjam o peixe, também geram muitos coprodutos.

É pegar um passivo ambiental e transformá-lo num ativo?
Com certeza, e não só transformá-lo num ativo como também ter um impacto económico importante. Conseguirmos aproveitar o máximo possível de um peixe de uma forma economicamente viável. A Islândia, por exemplo, tem a capacidade, a tecnologia e o investimento para conseguir fazer reaproveitamento a 100% deste tipo de desperdício. E há coisas engraçadíssimas que se podem fazer, desde capas de telemóvel de pele de bacalhau a peças de decoração através do processamento de escamas de peixe. Temos ainda a parte da cosmética, do colagénio que pode ser extraído, e a construção ambientalmente consciente, com a utilização de conchas de bivalves em argamassa.

Conchas para fazer argamassa? Isso já existe?
Já existe desenvolvimento a nível tecnológico e de investigação, em que as conchas têm este potencial para serem uma matéria-prima utilizada na construção. E as cascas de crustáceos podem ser transformadas em bioplásticos.

E há em Portugal empresas que conseguem fazer isso?
Há empresas que, sendo geradoras de coprodutos, já mostram interesse em aplicar tecnologia para os valorizar. Há uma empresa que utiliza os seus coprodutos para gerar biodiesel, outra está a desenvolver o seu próprio processo para gerar colagénio de alta qualidade, para ser vendido como um produto de valor acrescentado. E é muito interessante quando isto começa a tocar nas fronteiras da inovação entre setores, como no caso de uma outra empresa que, através do desperdício do pescado, está a fazer uma ponte para o setor têxtil. Fazemos em Portugal a valorização de coprodutos. A maior parte dessa valorização é para gerar farinha de peixe e óleo de peixe, que são utilizados depois em dietas animais. Isso é necessário e sabemos fazê-lo bastante bem, mas podemos fazer muito mais com o que ainda sobra, com as vísceras, a pele, as espinhas, os olhos, as escamas… Muito disto pode resultar em produtos de valor acrescentado de um nível já de luxo.

A dificuldade é ligar a oferta à procura?
Temos posicionamentos dos atores do setor muito díspares. Há geradores de coprodutos que estão sensibilizados para este potencial e outros que ainda pagam para se verem livres desses coprodutos, quando podiam estar a vendê-los. Esta sensibilização para o output do que pode ser o investimento na inovação também é importante.

É aqui que entra o Fish Matter.
Sim. A plataforma do Fish Matter tenta funcionar como um ponto de ligação. Quer fazer o matchmaking entre quem gera os coprodutos e quem possa ter tecnologia transformadora, ou quem queira aplicar a sua tecnologia a valorizar os coprodutos. A empresa vai para esta plataforma dizer “eu tenho esta tecnologia e quero entrar numa cadeia de valor”. Há aqui dinâmicas que se vão criar, mas sobretudo é o efeito agregador de ter uma ferramenta informativa e onde procurar parceiros. Tudo isto é alimentado pelo levantamento de informação que estamos a fazer e o desenvolvimento de algoritmos baseados em Inteligência Artificial.

Quando estará disponível esta plataforma?
Já começámos a fazer alguns pilotos, mas será no final de 2025 que teremos um protótipo mais robusto para o lançamento.

Há anos que os responsáveis políticos falam do mar como o futuro da nossa economia. Já começou a ser o presente?
Tem havido uma vontade política e do tecido empresarial e de investigação em alavancar ainda mais a bioeconomia azul. E existe uma estratégia nacional para o mar, onde também se menciona a importância da valorização dos coprodutos. Mas ainda não estamos em velocidade de cruzeiro. A inovação demora o seu tempo a estabelecer-se. E não é só uma questão de mindset, é também de investimento e de financiamento. Uma empresa só investe em inovação se tiver casos-piloto de sucesso pelos quais possa guiar-se e perceber que vai conseguir ter sucesso nesse investimento. Mas tem havido quadros de financiamento interessantes para apoiar o setor e temos um tecido de investigação e desenvolvimento com imenso potencial em Portugal, além de investigadores muito bons nesta área.

Entendo as reticências de alguns consumidores, mas estamos muito bem entregues, a nível global, se apostarmos nesta aquacultura sofisticada, verde, digitalizada. A aquacultura é uma necessidade e uma inevitabilidade

É preciso pôr em contacto a academia com o mundo empresarial?
É preciso fazer a ponte e criar uma narrativa de parceria que faça sentido para todos os parceiros. Nós, B2E CoLAB, sabemos o que está a ser feito a nível de investigação em Portugal, conhecemos as empresas do setor e os seus desafios e queremos fazer este interface. É importante que a investigação tenha em atenção as tendências de mercado. Vai ser muito mais fácil fazer esta transferência de tecnologia se já tivermos no mercado quem esteja disponível para pagar por essa tecnologia. Portanto, há alicerce, há matéria-prima…

… Há vontade política?
Há vontade política, sim. Estamos no bom caminho, mas tudo isto demora o seu tempo, se queremos ter sucesso a longo prazo e não ser um fogo-fátuo de um ou outro caso de sucesso.

Boa parte do trabalho do B2E está ligada à aquacultura. Ainda há um estigma em Portugal contra o peixe de aquacultura, nomeadamente quanto ao suposto pior sabor comparado com o do selvagem?
Há, e é um estigma injusto. Mas vai chegar uma altura em que nem sequer interessa se é injusto ou não, porque vai ser uma necessidade. Há que olhar a longo prazo, fazer uma leitura do nosso contexto e, a partir dessa avaliação, temos de tratar os nossos stocks com respeito. Isso significa que não podemos continuar com a atividade extrativa que temos tido até agora, muito menos aumentá-la. A população mundial está a crescer e não vai parar. Há que a alimentar. O sabor, e já lá vou, vai ser uma não questão.

Porque a sustentabilidade está em primeiro lugar?
Sim, por uma questão de sustentabilidade. Por outro lado, indo agora de encontro à questão do sabor, é natural que as pessoas não saibam, mas as tecnologias utilizadas na produção de aquacultura estão avançadíssimas, a nível de qualidade, de pegada, de tudo o que é o universo sustentabilidade… A formulação das dietas é de uma sofisticação incrível, por espécie e por estádio de desenvolvimento…

Não é igual ao que se fazia há 20 anos.
Não é de todo igual. As questões de salubridade… “Ai, mas os peixes estão ali nas gaiolas e tal”… Há tecnologia que permite simular as correntes a que os cardumes estão habituados, para que possam fazer o seu exercício, há sensores de monitorização de “n” parâmetros importantes para o seu crescimento saudável. E, além dos coprodutos, também os subprodutos da aquacultura, como as lamas, já estão a ser valorizados [na agricultura]. Estamos a comer um produto com qualidade ao nível da produção, a própria tecnologia utilizada é feita de forma a ter o mínimo de impacto quando é instalada… Entendo as reticências de alguns consumidores, mas estamos muito bem entregues, a nível global, se apostarmos nesta aquacultura sofisticada, verde, digitalizada. A aquacultura é uma necessidade e uma inevitabilidade.

Voltando ao sabor, os testes cegos que têm sido feitos provam que as pessoas não conseguem distinguir um peixe de aquacultura de um selvagem.
Sim, há estudos que mostram que o consumidor não distingue um do outro. Mas, mesmo que distinguisse, estamos num ponto a nível mundial, das alterações climáticas e da sustentabilidade de recursos, em que não vamos ter muito mais por onde nos virarmos. Isto é uma necessidade.

Uma das dificuldades da aquacultura é que o peixe come peixe. Logo, uma parte da ração tem origem nas pescas. Acaba por ser uma redundância. Como se dá a volta a isto?
Há vários esforços para desenvolver dietas que não utilizem ou que diminuam a utilização de peixe. Vamos conseguir um equilíbrio através unicamente da utilização do aproveitamento dos coprodutos, porque estamos a compensar com outras fontes de proteína, como os insetos.

O desafio é aumentar a fatia dessas proteínas alternativas.
Pode passar por aí, sim, ou então otimizar de tal forma a dieta de modo a que o conteúdo proteico com origem no pescado seja, de facto, o mínimo possível. Mas mantendo o perfil nutricional, não comprometendo o perfil nutricional das necessidades de cada espécie.

Há outros mitos que continuam muito presentes na aquacultura, nomeadamente a questão da utilização de “hormonas de crescimento”…
Quando os mitos se instalam, é muito difícil desmontá-los. Isto é quase como se tivéssemos um nutricionista particular que olha para o nosso perfil e nos diz: “Agora vai comer esta quantidade, desta fonte, desta maneira.” E nós não tomamos hormonas para crescer. É a mesma coisa com os peixes.

São dietas otimizadas?
São dietas otimizadas. Tudo o que implica a utilização de substâncias que possam gerar alguma dúvida é altamente controlado. A origem dessas substâncias é controlada, tal como a sua administração. E a qualidade do pescado é controlada à hora da extração.

Não estivéssemos nós na União Europeia…
Exatamente. Não vamos ingerir nada que saia daquilo que é contemplado dentro da legislação e da regulamentação, que garantem a saúde humana e a qualidade do próprio pescado. Esta noção da utilização de determinadas substâncias, como as hormonas, os antibióticos ou outras coisas… Ainda bem que existem estas dúvidas, mas há muitos cientistas, muitos veterinários, a acompanhar tudo o que é produção e investigação, precisamente para garantir que, no momento do consumo do pescado, não estamos a comprometer a nossa saúde.

Portugal está mais atrasado do que os outros no setor da aquacultura? A Grécia, por exemplo, que é um país da nossa dimensão, tem uma produção incomparavelmente maior. E estamos a acelerar este setor?
No Algarve, já se começa a ver algum desenvolvimento nesse sentido. Mas há toda uma parte burocrática associada à instalação deste tipo de operação, além de que são necessários investimentos importantes. Diria que esses são os dois fatores que mais condicionam. Embora haja sempre quem esteja disponível para investir, a parte da implementação da operação tem de obedecer a uma série de burocracias…

Que em Portugal são particularmente pesadas?
Não quero dizer que são pesadas, mas há todo um mapa de processos que pode, em alguns casos, ser desencorajador. Mas penso que também essa é uma matéria que já começa a ser mais trabalhada, precisamente porque se quer investir muito nas questões do mar e da sustentabilidade. Já há esforços para tentar ultrapassar estas questões e tentar fomentar a instalação destas operações. É muito importante para nós, dada a costa que temos.

Mas a nossa costa e o nosso mar são bons para esta atividade?
Depende das espécies, mas, muitas vezes, a costa atlântica não é fácil. E esse é um fator que pode ser desencorajador, na hora de montar uma operação. É por isso que estamos a ver mais investimento a sul. Mas creio que, a seu tempo, vamos conseguir ultrapassar estes desafios.

E para podermos continuar a alimentar este apetite português por peixe?
Português e não só. A nível de exportação também será importante para o País.

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