“O povo português é muito sóbrio, elegante, contido. Não está muito na sua natureza autopromover-se. E, no mundo em que vivemos, se não nos autopromovemos não existimos”

Foto: José Carlos Carvalho

“O povo português é muito sóbrio, elegante, contido. Não está muito na sua natureza autopromover-se. E, no mundo em que vivemos, se não nos autopromovemos não existimos”

Chega à entrevista depois de correr uns bons quilómetros junto ao hotel. Aos 44 anos, Guillaume Kientz passaria facilmente por um universitário francês, mas o seu currículo desmente essa sensação. Afinal, poucos podem incluir no currículo terem comissariado exposições best-seller do Museu do Louvre. Durante nove anos, Kientz foi curador de arte espanhola e latino-americana na instituição museológica mais conhecida do mundo. Aí, organizou O México no Louvre: obras-primas da nova Espanha em 2013, evento pioneiro que sinalizou a abertura do museu em explorar arte produzida nas margens da cena europeia dominante. Ou ainda Velázquez L’Expo em 2015, um sucesso de visitantes, e Greco, primeira grande retrospetiva dedicada a El Greco em França, em 2019. Estas credenciais ajudaram Guillaume Kientz a ser escolhido, em 2020, para o cargo de diretor e CEO da Hispanic Society Museum & Library, em Nova Iorque, fundada em 1904, cujas ligações ao nosso país estão a estreitar-se pela sua mão: Maria Cortez Lobão que, juntamente com o marido João, criou a Fundação Gaudium Magnum e uma nobilíssima coleção de pintura dedicada a mestres antigos, foi por ele convidada para ser vice-presidente da Hispanic Society. E, alinhada com as comemorações dos 500 anos do nascimento de Camões, a Hispanic Society programou para este ano várias exposições dedicadas ao poeta e um simpósio internacional. Uma relação transatlântica aqui revelada.

A Hispanic Society Museum & Library é quase desconhecida entre nós. Qual é a sua missão?
A Hispanic Society é a mais antiga e mais importante instituição mundial dedicada ao estudo das artes e culturas de Espanha e Portugal, das suas antigas colónias na América do Sul, e das Filipinas. Temos mais de 750 mil obras, compreendendo livros raros, manuscritos, desenhos, têxteis, desenhos, pinturas… Em Espanha, é muito conhecida porque temos grandes salas decoradas por [Joaquín] Sorolla. Mas até nos EUA éramos pouco conhecidos, vistos mais como um centro de investigação. Agora, estamos a transformá-la radicalmente em algo mais envolvente, abrangente, inclusivo. E Portugal fez parte da missão da Hispanic Society desde o início. Na nossa fachada, vemos Camões, Fernão de Magalhães e Vasco da Gama.

Qual é a origem desta ligação a Portugal?
O nosso fundador, o colecionador e filantropo Archer M. Huntington [1870-1955] tinha uma paixão pela Península Ibérica e pelo tremendo impacto que as suas linguagens e culturas tiveram em todo o mundo. Desde cedo, colecionou obras espanholas e portuguesas. E eu fui curador no Louvre durante perto de dez anos, onde militei a favor de Portugal, país que admiro. Um dos meus triunfos e orgulhos desse tempo é que antes as pinturas portuguesas estavam catalogadas como sendo de Espanha. E eu disse: “Isto está moralmente, e factualmente, errado.” Essa catalogação foi corrigida. Parece um pequeno pormenor mas é algo importantíssimo.

Como foi possível haver uma identificação errada das obras portuguesas, num museu com a magnitude do Louvre?
Em parte, é porque, por vezes, os países são conceitos teóricos. Por exemplo, Baltazar Gomes Figueira [pai de Josefa de Óbidos] foi um pintor ativo em Sevilha, portanto poderia ser erradamente identificado como um artista sevilhano e de ascendência hispânica. Outras vezes, é porque a equipa responsável por garantir a rotulagem das obras não é a mesma que as acompanha. E como não existe um departamento separado dedicado à pintura portuguesa no Louvre, no contexto de uma doação ao departamento de pintura hispânica, esta é assumida como espanhola. Por estas razões, fiz um ponto de honra em designar as coleções como sendo de Espanha, de Portugal e da América.

Conheceu obras marcantes de pintura portuguesa no Louvre?
Com o apoio de um amante de arte franco-português, Philippe Mendes, conseguimos receber a doação de uma pintura de Josefa de Óbidos [Maria Madalena Confortada pelos Anjos] em 2015. Fiquei muito feliz por ver que a pequena semente que plantei foi desenvolvida pela minha sucessora no museu, que organizou, em 2022, a exposição A Idade de Ouro do Renascimento Português e foi responsável pela maior aquisição que o Louvre empreendeu de uma pintura portuguesa do século XVI, Ressurreição de Cristo [executada por volta de 1540 na Oficina Real de Lisboa] em 2023. Essa compra foi de enorme importância para o conhecimento da arte portuguesa dos séculos XV e XVI fora de Portugal. Eu tive a oportunidade de conhecer em profundidade a pintura portuguesa quando, em 2010, visitei a exposição Primitivos Portugueses (1450-1550) [no Museu Nacional de Arte Antiga]. Foi uma revelação. Pensei: “Temos de fazer alguma coisa, o mundo tem de conhecer esta arte, o Louvre precisa de educar os seus 9 milhões de visitantes e dar-lhes a conhecer mais sobre a arte portuguesa.”

A Hispanic Society tem um acervo substancial de obras produzidas em Portugal?
Tem um bom acervo de arte portuguesa, e o mais substancial existente nos EUA: belos desenhos de Domingos António Sequeira, arte decorativa, livros raros, manuscritos, mapas, desenhos… Mas não temos pintura. Recentemente, adquirimos a um negociante espanhol, no Salon du Dessin de Paris, um desenho de Cyrillo Volkmar Machado [1748-1823] que me interessou muitíssimo, dado ser o primeiro pintor a dedicar-se especificamente à história da arte portuguesa. Também recebemos mais dois desenhos em doação: uma obra de Fernão Gomes [1548-1612, autor do retrato mais reconhecível de Camões] doado por Philippe Mendes e uma de Amaro do Vale [morto em 1619], oferta da Fundação Gaudium Magnum. E há a possibilidade de virmos a receber uma pintura e outros desenhos em breve. Mas quando assumi a direção da Hispanic Society, os amigos colecionadores, curadores, diretores de museus e marchands em Portugal conheciam a minha coleção melhor do que eu. Este desconhecimento não é um problema de falta de qualidade. A pintura portuguesa não está no radar, é apenas isso.

Grande escala, produção artística generosa, influência política: a vizinha Espanha estende uma longa sombra sobre nós?
É uma pergunta a que não sei se posso responder. Mas uma questão importante prende-se com a língua: o espanhol tem-se afirmado crescentemente no mundo, devido aos muitos países colonizados e à emigração. Outra questão relaciona-se com o temperamento: o povo português é muito sóbrio, elegante, contido. Se não estou errado, não está muito na sua natureza autopromover-se. E, no mundo em que vivemos, se não nos autopromovemos, não existimos. E no século XIX França apaixonou-se por Espanha. Penso que Portugal não obteve a exposição que poderia ter tido num tempo em que a Revolução Industrial e a globalização se impuseram. Espanha teve esse foco apontado sobre si; Portugal não.

Se apoio pessoas que atiram tinta ou sopa de tomate a pinturas? Claro que não. Mas estes atos iconoclastas dizem algo sobre a valorização que eles fazem dos museus. É o sítio certo, mas a atitude errada

Qual é o papel dos museus no futuro? Podem sobreviver sem acertarem contas com o passado, a falta de diversidade, a disparidade de género?
As pessoas estão a pedir coisas diferentes e, por vezes, conflituantes aos museus. Pedem que estes sejam atentos ao seu tempo e às questões importantes e por vezes controversas, mas também lhes exigem que sejam um escape da realidade quotidiana, que os inspirem através da beleza, que lhes permitam desligarem-se das notícias. Há que encontrar um equilíbrio. Creio que o mais importante não é propriamente acertar contas com o passado, porque é passado, mas sim ser honesto sobre o passado, entender que este moldou o que somos, e participar no diálogo. Porque esta não é uma questão moral: é uma questão histórica. Avaliarmos o passado através dos valores do presente é problemático. Mas é igualmente problemático idealizar o passado: este transforma-se em nostalgia e induz à crença de que “antes era melhor”. Não era melhor: era diferente.

Acredita no dever ou na eficácia de resguardar obras problemáticas para os olhos atuais?
Na Hispanic Society, não podemos ignorar a importância de temas como a colonização ou a escravatura, pois são consubstanciais com o que temos e o que somos. Penso que é muito preguiçoso e errado culpar as coleções [dos museus]. Durante muito tempo, os museus narravam apenas certas histórias e algumas partes da História. É justo reconhecer que há mais histórias para contar, perspetivas diferentes. Mas somos todos resultado desta História complexa. Para o caso, dou um exemplo: em 2021 fizemos a exposição Gilded Figures: Wood and Clay Made Flesh [Figuras Douradas: Madeira e Argila Feitos Carne, em tradução livre] e apercebemo-nos de que todas as esculturas religiosas representavam pessoas brancas. Temos duas abordagens possíveis: queremos ser políticos ou queremos ser culturais? Eu acredito que os museus devem ser culturais – o que não quer dizer que aquilo que partilhamos não tenha uma dimensão política. Neste caso, ou íamos a correr comprar esculturas que representassem populações indígenas ou escravizadas ou negras, e isso seria igualmente errado; ou fazíamos o que é mais inteligente e justo, que era reconhecer que termos predominantemente pessoas brancas porque isso servia para impor um cânone ocidental branco no mundo que Espanha acabara de conquistar.

Como se posiciona face às ações dos ativistas climáticos que têm “atacado” obras de arte nos museus?
Quero manter-me otimista. Se eles escolhem os museus como lugares para fazer ouvir a sua voz, isso significa que os museus ainda são relevantes. Se apoio pessoas que atiram tinta ou sopa de tomate a pinturas? Claro que não. Mas estes atos iconoclastas dizem algo sobre a valorização que eles fazem dos museus. É o sítio certo, mas a atitude errada. Os museus têm feito um grande esforço para reduzir a sua pegada de carbono. Na Hispanic Society reutilizamos as caixas de transporte, esforçamo-nos por fazer exposições baseadas na nossa coleção de maneira a reduzir deslocações, somos conscientes e cuidadosos. Fechar ou atacar museus não resolve a grande crise climática: há outras ações reais que podem ser tomadas, e que não me cabe a mim apontar. Estamos todos do mesmo lado, os museus são um recurso vulnerável. Uma pintura, um desenho, é um corpo vivo, que se deteriora, que envelhece, que está sempre em perigo.

Tudo parece girar em torno da arte contemporânea nas últimas décadas. Como é que Goya, Velázquez ou Caravaggio podem ser sedutores para os novos públicos?
Eu não acredito em arte contemporânea. Acredito em arte do passado, arte do presente, e em arte que há de ser do futuro. Essas categorias são feitas para sustentar o mercado, para estratégias de marketing. Eu cheguei à arte ibérica e hispânica através dos meus estudos em Roma sobre um artista, Jusepe de Ribera, que tem a mesma história de um Basquiat. As lutas, as dúvidas, os medos… Os entusiasmos vividos na arte do passado não são diferentes dos vividos pelos artistas do presente. Quero abolir essas classificações que me parecem preguiçosas. E não gosto daquilo que muitas instituições chamam de “diálogo entre arte contemporânea e os mestres antigos”: raramente é um diálogo, é um confronto. E tudo aquilo de que não precisamos na nossa sociedade é de mais confronto.

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