“A Rússia e a China estão agora mais alinhadas do que em qualquer outro momento desde a década de 1950”

“A Rússia e a China estão agora mais alinhadas do que em qualquer outro momento desde a década de 1950”

A mentira, a desinformação, a propaganda e a reescrita da História há muito que fazem parte da vida de quem governa. Xi Jinping, o Presidente da China, decidiu que a resistência do seu país ao Japão começou em 1931 e não em 1937. O fundador da principal dinastia norte-coreana, Kim Il-Sung, assumiu-se como obreiro da derrota nipónica na II Guerra Mundial e afirmou que foi também ele, praticamente sozinho, quem humilhou os EUA no conflito coreano. Com Putin, os russos voltaram a viver sob o culto da personalidade e sob a doutrinação patriótico-militar. Em A Dança dos Ossos (edições Zigurate), Katie Stallard, antiga repórter e correspondente da Sky News, atual editora da revista New Statesman e investigadora do Wilson Center, em Washington, explica como os mitos sobre o passado podem ser usados para manter e justificar o poder em Moscovo, Pequim e Pyongyang. Um best-seller que ajuda a compreender como um triunvirato de autocratas se apresenta como guardião da paz e deseja moldar a ordem internacional.

Os vencedores são aqueles que acabam quase sempre por escrever os livros de História. Será essa a única razão pela qual Putin, Xi e Kim tentam fabricar narrativas sobre o passado dos seus países?
Em primeiro lugar, deixe-me dizer que a tentação de reescrever a História não é exclusiva dos regimes autoritários. Há muitos líderes eleitos de forma democrática que também recorrem a uma versão seletiva da História e apelam a mitos gloriosos sobre o passado para atingir objetivos políticos e conquistar o apoio popular. A diferença nestes três países – Rússia, China e Coreia do Norte – é que os respetivos líderes levaram isso ao extremo, exibindo uma capacidade notável para forjar essas narrativas históricas e silenciar as vozes críticas.

Com que objetivos?
Putin, Xi e Kim veem a História como um aspeto absolutamente crucial para garantirem a sobrevivência dos seus regimes. A par da repressão e das formas tradicionais de segurança, eles recorrem ao passado para explicar porque devem estar no poder. Putin conta com uma versão distorcida da História para justificar sua invasão da Ucrânia, ao enquadrar a guerra atual, e a sua ampla batalha contra o Ocidente, numa continuação da Grande Guerra Patriótica, como a II Guerra Mundial é conhecida na Rússia. Xi invoca o “século de humilhação” que a China sofreu – desde as Guerras do Ópio do século XIX até à invasão japonesa no início da II Guerra Mundial – para recordar aos seus compatriotas como o país sofreu antes de o Partido Comunista Chinês chegar ao poder. Quanto a Kim Jong-un, apela para a História gloriosa (e em grande parte fictícia) do seu avô, Kim Il-Sung, para justificar a continuidade da dinastia familiar no governo de Pyongyang. Como George Orwell escreveu em 1984, e Putin, Xi e Kim entendem-no de forma clara: “Quem controla o passado controla o futuro.”

Qual deles é o melhor mentiroso e o mais eficaz a censurar, a controlar a informação e a moldar a sua própria imagem?
Quando comecei a trabalhar neste livro [2019], tive algumas dúvidas em incluir a Rússia – onde a internet ainda era genericamente livre e alguns meios de comunicação social podiam operar de forma mais ou menos independente – a par do regime norte-coreano. Só que, nos últimos anos, temos assistido à chamada “norte-coreanização” da Rússia, com o Kremlin a instituir um regime de censura muito mais rigoroso e a acabar com a imprensa livre. Estes líderes e as suas burocracias estão a aprender uns com os outros as diferentes formas de gestão da informação, a manipulação de tecnologias-chave e o lançamento de campanhas de propaganda eficazes.

Quanto ao mais eficaz…
Até agora, diria que Putin provou ser o ator mais perigoso dos três, na medida em que tenta subjugar a Ucrânia e mudar as fronteiras da Europa pela força. No entanto, cada um deles faz um uso bastante poderoso das suas versões da História para explicar às opiniões domésticas porque devem recorrer a reivindicações territoriais e enfrentar os supostos desafios que lhes são colocados pelo Ocidente. Por exemplo, esta estratégia poderia ser uma componente essencial para Pequim justificar uma operação militar futura contra Taiwan, ou um novo ataque da Coreia do Norte contra a sua vizinha do Sul.

Tendo em conta a sua experiência como repórter, considera que russos, chineses e norte-coreanos acreditam nas narrativas com que são diariamente confrontados?
É importante não confundir convicções genuínas com as opiniões que as pessoas expressam publicamente sob regimes autocráticos. Ao trabalhar na Coreia do Norte, por exemplo, fui acompanhada o tempo todo por dois guias e entendi que as pessoas com quem conversei enfrentariam sérias repercussões se dissessem algo indevido. Mesmo enquanto entrevistava uma senhora que chorava por aparente gratidão à família Kim, percebi que me era impossível saber o que ela estava a pensar. Se se consegue exigir que as pessoas repliquem, em público, o discurso oficial, isso demonstra a força do regime e torna muito mais difícil que se conheça aquilo em que elas acreditam. Daí que as manifestações espontâneas de descontentamento sejam tão perigosas para este tipo de governantes. Por exemplo, os milhares de russos que, em Moscovo, no início de março, colocaram flores no túmulo de Alexei Navalny.

São muito raras as iniciativas em que se possa avaliar o grau de descontentamento…
Na Rússia, é muito difícil avaliar. As sondagens do independente Centro Levada demonstram que Putin tem sido relativamente bem-sucedido em cimentar a narrativa (falsa) de que a Rússia está a travar uma guerra justa e de legítima defesa contra a Ucrânia e o Ocidente em geral. É impressionante que mais de 70% dos entrevistados, em janeiro, tenham dito que o país estava “no caminho certo” – o maior índice em décadas.

Ou seja, reescrever a História pode compensar. O seu livro tem bons exemplos, alguns excêntricos.
O caso mais ridículo é o da família Kim, na Coreia do Norte. Os cidadãos são levados a acreditar que Kim Il-Sung, o avô do líder atual [Kim Jong-un], libertou a península coreana do domínio colonial japonês, embora tenha passado a fase final desse período na União Soviética [1939-1945] e nunca esteve em combate. Ou que ele defendeu o país no início da Guerra da Coreia, em 1950, para evitar a invasão da Coreia do Sul – quando, de facto, foi ele quem iniciou o conflito [cujas tropas chegaram a conquistar Seul]. A história do nascimento do segundo Kim, Kim Jong-Il, é particularmente absurda já que a mitologia oficial alega que aconteceu no interior de uma humilde cabana de madeira, anunciada pela aparição de uma nova estrela brilhante no céu. Na verdade, o seu aniversário é celebrado na Coreia do Norte como o Dia da Estrela Brilhante. Apenas o burro, a vaca e os três reis magos parecem faltar. Na realidade, ele nasceu [em 1941] numa base do Exército Vermelho, na União Soviética.

Nos últimos anos, temos assistido à chamada ‘norte-coreanização’ da Rússia, com Putin a instituir um regime de censura muito mais rigoroso e a acabar com a imprensa livre

Podemos afirmar que este eixo de autocratas gosta de estudar História?
Sim, é muito importante entender como esses líderes veem a História e seu próprio lugar nela. Com Putin e Xi, ambos septuagenários, esta será uma questão especialmente delicada. Um e outro têm de começar a pensar nos seus legados. O perigo maior é terem o desejo de ser recordados como grandes líderes – no panteão dos czares e das grandes figuras históricas do passado. Para Putin, tal significa usar o conflito ucraniano para tentar assumir-se como o supremo unificador das terras russas. Para ele, a Ucrânia é uma prioridade e uma questão que não deve ficar para as futuras gerações.

Logo no primeiro capítulo do seu livro, cita Václav Havel [antigo dissidente antissoviético e Presidente da República Checa]: “Como o regime é refém das suas próprias mentiras, tem de falsificar tudo. Falsifica o passado. Falsifica o presente e falsifica o futuro.” Estas palavras traduzem o que está a acontecer em Moscovo, Pequim e Pyongyang?
A descrição de Havel do comportamento dos cidadãos sob o regime autoritário checo [1948-1989] é elucidativa. Ele fala de um comerciante que colocava, todos os dias, um cartaz numa janela com o slogan – “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!” Não que esse indivíduo acreditasse na mensagem; achava apenas que era a forma mais adequada de manter o negócio sem ter problemas com as autoridades. A lição de esperança que podemos tirar é a de que estes líderes supostamente todo-poderosos nunca são tão invulneráveis quanto podem parecer, os seus regimes apresentam-se como modelos de estabilidade até que, de repente, deixam de o ser.

“História é História, verdade é verdade, e ninguém pode mudar a História ou a verdade”, afirmou Xi Jinping há uma década. Pode explicar-nos aquilo a que o Presidente chinês chama “niilismo histórico”?
Após assumir a liderança do Partido Comunista Chinês (PCC), em 2012, ele alertou sobre os perigos do “niilismo histórico” no país. Basicamente, significava desafiar a versão da História do partido. E advertiu os seus pares para o que ocorrera na União Soviética: o falhanço na defesa dos mitos fundadores da URSS – permitindo-se, em vez disso, um exame crítico do passado sob Mikhail Gorbachev – conduziu ao colapso do regime soviético. Na primavera seguinte, um comunicado secreto (conhecido como Documento nº 9) circulou entre os funcionários do PCC, listando o “niilismo histórico” como uma das sete “falsas tendências ideológicas” que poderiam ameaçar o domínio do partido. Como resposta, os dirigentes foram incentivados a travar uma “luta perpétua, complexa e dolorosa” e a fazer do trabalho ideológico uma prioridade máxima. Em suma, Xi vê o controlo sobre a História como uma questão existencial para o PCC.

Sobre a parceria “sem limites” entre Rússia e China, podemos dizer que Xi é já o (único) vencedor?
Por enquanto, com esta parceria, têm os dois mais a ganhar do que a perder. Putin ganha apoio económico e cobertura diplomática para a sua guerra, além de um fornecimento constante de tecnologia de uso duplo, que é muito necessária no campo de batalha. Xi ganha ao garantir uma fonte fiável de energia para alimentar a economia chinesa, acesso à tecnologia militar russa e o apoio de um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU com direito a veto. Putin é o diabo que ele conhece e de que, aparentemente, gosta. A consideração mais importante para ambos é, acima de tudo, manterem uma parceria que lhes permita desafiar os EUA. A Rússia e a China estão agora mais alinhadas do que em qualquer outro momento desde a década de 1950, e essa relação tende a reforçar-se enquanto cada um estiver focado numa maior rivalidade com o Ocidente.

Até que ponto os protetores de Kim Jong-un, em Moscovo e Pequim, podem confiar no atual líder norte-coreano? Pyongyang ainda pode ser um pesadelo estratégico para todos nós?
Kim deve estar encantado com o desenrolar dos acontecimentos a nível mundial. Ao estreitar os laços com a Rússia e ao fornecer munições e outro material de guerra contra a Ucrânia, assegurou uma fonte valiosa de rendimentos e, em simultâneo, garantiu um novo ponto de equilíbrio face à China. Embora a Coreia do Norte permaneça dependente de Pequim para a sua sobrevivência económica, ele pode agora demonstrar ao seu homólogo chinês que já conta com outros amigos poderosos. E claro que vai prosseguir o desenvolvimento dos seus arsenais, por saber que nem Pequim nem Moscovo se juntarão aos esforços ocidentais para o sancionar na ONU. Um Kim Jong-un mais audacioso pode representar um enorme pesadelo estratégico, sobretudo se ele decidir testar os limites de uma nova administração dos EUA.

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