Atualmente, Geoff Dyer vive na Califórnia, mas nasceu em Inglaterra, em Cheltenham, em 1958. Correndo o risco de fazermos uma generalização injusta, toda a sua escrita transpira um certo modo de ser inglês e de ver o mundo. Com muita ironia e, sobretudo, não abdicando de uma perspetiva sobre a arte, o estilo e a beleza. Esteve recentemente em Portugal, para participar no festival Folio, em Óbidos, e lançar Os Últimos Dias de Roger Federer e Outros Finais (Quetzal, 380 págs., €19,90). O livro (como, aliás, toda esta entrevista) está repleto de referências artísticas, literárias, musicais, filosóficas – e de humor. Inglês, naturalmente.
Os seus livros têm títulos curiosos: Mas é Bonito, Yoga para Pessoas que não Estão para Fazer Yoga e, agora, este Os Últimos Dias de Roger Federer e Outros Finais. Preocupa-se muito com os títulos?
Só posso responder de maneira aborrecida: depende. Às vezes, tenho o título antes de começar a escrever; outras vezes, o título só aparece depois. Este, Os Últimos Dias de Roger Federer…, pareceu-me que expressava todos os temas de maneira concentrada.
Neste caso, começou por querer escrever sobre a ideia dos últimos dias?
Sim, por acaso, este até surgiu bastante cedo. Achei que funcionava desde que tivéssemos, na capa, uma imagem que estivesse em desacordo com o título, ou seja, que não tivesse nada que ver com ténis.
O livro não tem nada que ver com ténis. Mas julgo que também joga ténis, não é?
Mais ou menos. Vivo o crepúsculo profundo da minha não-carreira [risos].
Federer também é uma referência, até ética, se quisermos, comparando com outros jogadores. Pensou nele como uma inspiração?
Sim, de duas maneiras, na verdade. Por um lado, é um tenista muito sério. Por outro, é dotado de um excelente sentido de humor. Tenho sempre a sensação de que, se Roger Federer e eu nos conhecêssemos, nos tornaríamos amigos.
Federer é ainda conhecido por outra qualidade, que provavelmente está um pouco fora de moda: é educado.
Bom, isso é um excelente ponto. Quando falo no seu sentido de humor, refiro-me a muito mais do que ser apenas engraçado. Ter sentido de humor é como ter uma visão do mundo completa, é quase uma filosofia. Além disso, Federer ainda combina o humor com a beleza. Gostamos de o ver jogar porque ele alia a estética à eficiência do jogo. É muito raro isso acontecer no ténis e no desporto em geral: em Federer, essa questão estética tem o seu apogeu na pancada de esquerda, que ele faz apenas a uma mão, de forma clássica. É essa ideia de estilo – na verdade, a expressão de toda a consciência de alguém – que, no meu entender, também se traduz na escrita.
A ironia e o humor são boas maneiras de encarar a realidade?
Quando se é inglês, isso é algo que se herda, e é também uma necessidade. Em Los Angeles, impressiona-me muito que as pessoas não tenham essa necessidade de ter sentido de humor. É que ter sentido de humor é totalmente compatível com ser uma pessoa séria. Foi G. K. Chesterton que disse que o oposto de ser engraçado não é ser pouco sério; o oposto de ser engraçado é, sim, não ser engraçado. Não quero ser um cómico, nem sequer gosto de romances humorísticos… Do que eu gosto é de fazer uma afirmação séria e, logo a seguir, enfraquecê-la com uma piada.
Às vezes, as últimas obras (livros, filmes ou discos…) não são propriamente as melhores. É triste ver um artista envelhecer e ser, digamos, menos criativo?
Isso é absolutamente verdade. Os últimos trabalhos de Beethoven e de van Gogh são incríveis, mas muitas vezes existe esse declínio de que fala. Escrevi este livro no início dos meus 60 anos; senti-me muito bem enquanto o escrevi, achei que podia estar iludido, mas hoje sei que este é o meu melhor livro, o mais engenhosamente estruturado que já escrevi. No entanto, ao ser lançado, saíram muitas críticas em Inglaterra e nos EUA, dizendo que é um livro sem estrutura. Agora, quem está errado? Eu ou os críticos literários?
Regressando à ideia das últimas obras: ontem fui ver o novo filme de Woody Allen, Golpe de Sorte…
Uau, o que a fez fazer isso?! Quero dizer, ele está em declínio há muito tempo…
Sim, são sempre as mesmas ideias, mas continua a ser bom, no sentido de ser uma fórmula que ele sabe fazer muito bem. Isso é necessariamente desinteressante?
A propósito disso, lembro-me do que Joseph Brodsky disse sobre Ezra Pound e de uma certa ideia revolucionária do que é a poesia modernista. Brodsky confessava-se muito seduzido por isso, até perceber que, afinal, a melhor poesia era muito, muito antiga. Estou cansado de Woody Allen, fiquei cansado logo depois de Manhattan… Claro que ele é fluente na linguagem e que é/era engraçado, mas, neste momento, para mim, é um cineasta desprovido de interesse.
Bob Dylan é uma das personagens do seu livro. Achou apropriado a Academia Sueca ter-lhe atribuído o Prémio Nobel da Literatura, em 2016?
Acerca desse assunto, penso várias coisas. Em primeiro lugar, creio que não existem prémios suficientes na Terra para dar a Bob Dylan. Quantos mais lhe dermos, melhor! E, depois, ainda julgo que é extraordinário que alguém não tenha ganho o Nobel por causa de romances com determinado formato. Também não entendo aquele argumento de que ele não precisava do dinheiro ou do reconhecimento… Albert Camus e Rudyard Kipling venceram o Prémio Nobel da Literatura quando eram muito jovens [44 e 42 anos, respetivamente], mas muitas vezes as pessoas recebem-no quando já passou o seu limite criativo. Fico muito contente que Bob Dylan o tenha ganho. Sabe, costumo brincar dizendo que esse era o ano em que eu iria ganhar e que, por causa dele, não ganhei [risos]…
Ainda sobre a estrutura do seu livro, que não tem capítulos nem uma narrativa contínua: não vai este tipo de estrutura mais ao encontro da forma como leem as novas gerações, já nascidas nesta era digital?
Fico feliz que pense isso! O meu livro não tem, de facto, a propulsão narrativa de certos livros, mas tem, pelo menos, a ideia de suspense, que é muito importante. Não aquele suspense que se sente ao ler um thriller, aquela versão hitchcockiana, com a corda a partir antes de eles chegarem ao topo. O tipo de suspense que me interessa é mais do género: “Meu Deus, será que ele perdeu a cabeça?” E que põe o leitor a perguntar: “Será que o escritor está tão demente que se esqueceu completamente do que, há pouco, estava a escrever sobre a outra pessoa?”
De certa maneira, também é uma leitura exigente.
Julgo que este tipo de leitura exige, pelo menos, uma certa fé e uma certa confiança por parte do leitor. Começo a escrever e falo sobre a primeira vez que ouvi a música de Gillian Welch. Conto essa história, suspendo-a e passo para outra coisa, para falar de Nietzsche em Turim e, depois, ainda volto a Gillian Welch. Espero que o leitor o sinta, mas considero que aqui há ação. É preciso é ser paciente e esperar para ver qual é a conexão. É também uma questão de entrega. Há diferentes tipos de narrativa: existem movimentos de ondas laterais, em que a narrativa se move de forma associativa, e existe aquilo a que Milan Kundera chamava narrativa “corrida de bicicleta”, na qual se começa num ponto e se vai o mais rápido possível. A verdade é que, se tivesse uma quantidade infinita de dinheiro, adoraria ter processado as pessoas que disseram que o meu livro não era estruturado. Sinto que poderia tê-lo provado num tribunal [risos].
Isso fá-lo ter uma perspetiva pessimista acerca da leitura nos nossos dias?
Não, nunca tenho o princípio de olhar à minha volta e dizer que o mundo está em queda. Mas estou consciente de determinadas coisas, porque ensino escrita na Universidade da Califórnia e observo-o: por vários motivos, a capacidade de resposta dos meus alunos aos textos diminui se eles apenas lerem nos ecrãs. O livro ficará na cabeça durante mais tempo se eles o lerem na edição em papel. Mas não me preocupo muito com isso. Sei que também o digo, porque sou um homem velho.
Não se interessa por esse maravilhoso mundo do digital?
Só acho que, quando apareceu o livro eletrónico, surgiram todos aqueles lamentos acerca do fim do livro e tal. E o que é que aconteceu? O conteúdo foi disponibilizado digitalmente e as editoras puderam dedicar-se ao objeto físico, o que foi ótimo. Pensaram: “O que podemos fazer para tornar este objeto especial, de maneira que as pessoas o desejem?”
Escrevendo sobre criadores de que gosta, é possível dizer-se que isso é uma atitude um tanto ou quanto narcisista ou, afinal, um escritor escreve sempre sobre si próprio?
Muitas vezes, pegamos em livros de não-ficção e verificamos que podem ser escritos por qualquer pessoa, desde que tenha um certo domínio do tema. Mas não são esses os livros de ficção que me interessam. Por exemplo, Mais um Dia de Vida, de Ryszard Kapuscinski, é um livro incrível e também é muito sobre ele. Outro bom exemplo são as obras de Annie Dillard: poderíamos dizer que são sobre o mundo natural, mas penso que o que têm de único e maravilhoso é a própria consciência da autora, o seu estilo, que, como disse há pouco, é parte dessa consciência.
Essa não é uma atitude demasiado narcisista?
É uma acusação razoável de se fazer. De certo modo, sim, mas eu diria que a retórica não é obrigatória para se ler um livro… Meu Deus, moro em Los Angeles e eu diria que tenho uma atitude muito menos narcisista, comparando com muitas pessoas que lá vivem. Além do mais, também faço por transmitir uma coisa que, para mim, é crucial: uma certa verdade universal, sendo absolutamente fiel às contingências das minhas experiências e aos caprichos da minha própria natureza. É por isso que, estranhamente, acredito que este relato feito por um inglês de 65 anos, alto e muito magro, vai tocar alguém que não é inglês, que não tem a mesma idade e que foi criado noutro lado.
Porque decidiu escrever uma biografia da sua infância? Não sei se lhe posso chamar “biografia”…
Sim, é uma espécie de mémoire. Acabei de escrever há umas semanas, sinto-me aliviado. Era algo que queria mesmo fazer, e a minha mulher acabou por me incentivar. Não houve nada de espetacular nem de dramático com a minha infância, mas senti que queria preservar esta experiência, até aos 18 anos. Só retrospetivamente entendi o processo pelo qual passei: até ir para Oxford, não tive qualquer contacto com a classe média. Havia, claro, os professores na escola, mas eram apenas os professores. Até ir para a universidade, não tinha qualquer consciência de classe; estava completamente fechado dentro da chamada classe trabalhadora.
Podemos então dizer que o seu “final” foi um final feliz?
Sim, mas de certa maneira o que também quero dizer é que essa Inglaterra desapareceu. Agora, as escolas estão subfinanciadas, as bibliotecas foram encerradas e todas as estatísticas são deprimentes. Revelam-nos uma Inglaterra com muito menor mobilidade social do que havia nas décadas de 60 e 70 do século passado… Bem, não preciso de lhe dizer como Inglaterra, enquanto país, está a ir pelo cano abaixo. Que bela maneira de terminarmos esta conversa [risos]!