Quase um quarto de século depois de ter criado a ExperimentaDesign, Guta Moura Guedes quer provar que a cultura é um dos pilares principais da sustentabilidade. Aos 58 anos, vive uma nova fase, como diretora artística da Terrafoundation, uma plataforma internacional, cujo trabalho arrancou agora na Comporta. Acredita ainda que a sua intervenção naquela região, entre Troia e Sines, pode ser replicada noutros pontos do País e do mundo. “Nunca quis fazer coisas pequenas, porque me interessa que o impacto seja grande”, vai avisando.
Hoje, todos os seus caminhos vão dar à Comporta?
Não [risos]. Continuo com trabalho ligado ao resto do mundo, mas a Comporta tem a beleza acrescentada de ser um sítio complementar àquilo que estou habituada a trabalhar, que são as cidades. Estou convencida de que o arco que vai de Troia a Sines pode tornar-se um case study de uma tipologia de cidade para o século XXI: uma cidade espalhada no território, em que a Natureza é uma parte importante.
Cresceu numa cidade pequena, rodeada de Natureza. É esse o seu elemento?
Fiz meio mundo em muitas cidades diferentes, e as minhas favoritas continuam a ser as mais pequenas. Ter crescido em Torres Vedras marcou-me, quer pela qualidade urbana quer pelas relações sociais. Tínhamos a agricultura em cima de nós e as montanhas. Tendo a gostar de cidades cuja escala não é avassaladora e onde reconheço que a Natureza está presente.
Como a Guta entra na vida da Comporta?
Por um acaso. A minha praia era uma praia pequena: Ribeira d’Ilhas, na Ericeira. Lembro-me de chegar à Comporta e dizer: “Isto não é uma praia, não se vê o mar, são só dunas e arrozais.” Mas comecei a ir bastante à Comporta, porque tenho lá uma casa, e aproximei-me dos sítios e das pessoas.
Aquilo que está a acontecer na Comporta tem a velocidade e o impacto de um tsunâmi. Era muito difícil pedir a um autarca, que estava lá há 20 anos, que antecipasse o que estamos a ver
A Comporta já era como é hoje?
Apanhei-a no princípio de uma transformação enorme, e a transformação interessa-me. Aquele é um território em mudança, e é um território com um ecossistema particular. Temos o Atlântico, os arrozais, com a permanência da água doce e a contaminação dos forasteiros, que agora fazem parte do território. A Comporta começou a interessar-me pela conjugação destes fatores.
Sem fazer juízos de valor?
Nenhuns. O meu trabalho é muito sobre a construção de caminhos e pouco sobre o comentário. Interessa-me refletir sobre os assuntos e propor soluções. Há, no entanto, mudanças que nos preocupam. O que me preocupa na região da Comporta, e é por isso que pode servir como case study e ser replicada, é o facto de ser um ecossistema natural frágil. Em muitos países europeus, temos más experiências com desenvolvimentos económicos em regiões que eram de uma beleza extrema.
Vai-se a tempo, na Comporta?
Ainda podemos contribuir para que a mudança aconteça sem trazer impactos negativos. A mudança traz dinâmica económica e desenvolvimento social, mas temos a obrigação de criar uma estrutura que a torne positiva para todos. Hoje, qualquer investidor sabe que, se não cuidar do ecossistema natural e social, a galinha de ovos de ouro morre. Além disso, muito se alterou no século XXI relativamente aos fluxos turísticos ou mesmo às nossas necessidades. Queremos silêncio, tranquilidade, qualidade de vida, quando há 20 anos queríamos animação, festa e um consumo insano de recursos, sem pensarmos no impacto.
Do que se fala quando se fala na Terrafoundation?
Fala-se de uma plataforma internacional, sediada em Portugal, que começou na Comporta e é dedicada à ideia de provar que a cultura é um dos principais pilares da sustentabilidade. A cultura só entrou na noção de sustentabilidade em 2010, por decisão da UNESCO, e nós queremos colocá-la como um dos seus protagonistas. Queremos dizer: a cultura está aqui para ajudar a produzir soluções para temas ligados a questões sociais, de desenvolvimento económico e ambientais.
É um conceito de cultura abrangente, portanto.
A cultura é inerente à nossa espécie, é o que nos diferencia dos outros animais. Pode ser a cultura de um país, de uma região, a produção de um artista, aquilo que se faz na televisão, uma miríade de coisas. Há uma agenda política na Terrafoundation, que diz: vamos pôr a cultura ao serviço da Humanidade. Esta ideia de serviço às vezes é malvista pelos colegas culturais, como se eles se sentissem usados, mas a cultura pode ser utilizada para a construção de uma sociedade melhor.
Daí o vosso projeto Fazer Bem, com mulheres?
O Fazer Bem fala de empoderamento feminino, design, artesanato e trabalho comunitário. É o projeto que vai direto a uma das nossas linhas de ação, o impacto social, e que tem também um bocadinho de sustentabilidade, porque insistimos nos materiais naturais. Quisemos apresentá-lo logo em agosto, no warm up inicial (e a ideia de warm up, aquecimento, não é por acaso), para mostrar um pouco do nosso ADN.
A Estação Meteorológica, que também apresentaram nessa altura, é um projeto mais complexo.
É um trabalho sobre alterações climáticas, que não é original nosso. Fomos convidados pela Artangel, uma associação cultural sediada em Londres, que trabalha acima de tudo com artistas e lançou uma rede de 29 estações meteorológicas com um princípio simples: vamos falar sobre o que estamos a assistir, ou seja a alterações climáticas profundas (ainda há uns dias, vimos as cheias na Líbia…), mas, em vez de cientistas, colocamos artistas no terreno.
O objetivo é chamar a atenção?
O primeiro papel é chamar a atenção dentro da própria comunidade cultural internacional, dizer aos criadores: há este tema, discursem sobre ele. Depois, tem resultados, e é essa a beleza da arte e da cultura, que podem não ser imediatamente claros como números. Nós escolhemos um meio artístico que tem uma comunicação direta com todos, a música. Para o nosso cérebro, é mais fácil descodificar o som do que a imagem. Por isso, propusemos trabalhar a música e a palavra, no sentido poético, e estamos a fazer residências artísticas desde o início do ano, convidando músicos e poetas a produzirem obras sonoras. O primeiro relatório, feito por rappers e sound designers lisboetas, já está no Spotify.
E estruturas físicas?
A Comporta não tem nenhum equipamento cultural. No warm up, reinventámos estruturas e anunciámos que queremos fazer um pavilhão temporário, para os artistas trabalharem e onde as pessoas poderão ouvir os seus relatórios. Podemos vê-lo como duas cápsulas, que vão ficar pousadas na duna, onde foi a inauguração da Terrafoundation. Uma duna que pedimos à Câmara Municipal de Grândola para utilizar, onde fizemos a emissão de dois weather reports e um concerto de música clássica, área em que estamos a trabalhar em parceria com o Centro Europeu de Música. Esse dia foi para dizer: esta duna vai ser devolvida às pessoas.
Elas já sabiam da vossa existência?
As pessoas do Carvalhal e de Grândola foram, obviamente, as primeiras a ser convidadas. A duna é pequena, tem casas em redor, e estava tanta gente que houve quem assistisse ao concerto do seu terraço.
Sente que a Comporta precisava desta intervenção?
As câmaras locais já faziam um trabalho na área da cultura, da ação social. Nós estamos a complementá-lo, mas nenhuma outra instituição está tão atenta aquele ecossistema, à comunidade. E sabemos que temos mais sítios assim no mundo e em Portugal. Se pensarmos na Beira Interior…
Já está com a ideia de replicar!
A rede serve precisamente para isso [risos]. Nunca há medo em replicar, porque aquilo que for replicado noutro sítio é diferente, embora beneficie do trabalho anterior. A Comporta tem problemas estruturais que afetam outras partes da Europa. Vivemos em cidades desenhadas, há centenas de anos, com sistemas de conexão viários insustentáveis, e a Comporta é um exemplo típico disso. De repente, há todo um investimento na área do turismo, e as infraestruturas não respondem. Não podemos estar sempre a andar de carro, mas não há espaço para os peões ou para as bicicletas.
Não há porque temos os arrozais.
Não há porque não o planeámos, não sabíamos. Às vezes não há sequer tempo para se perceber o que aí vem, é como num tsunâmi. Ora, aquilo que está a acontecer na Comporta tem a velocidade e o impacto de um tsunâmi. Era muito difícil pedir a um autarca, que estava lá há 20 anos, que antecipasse o que estamos a ver. Seguramente não foi por mal, mas mal será se agora não se redesenhar aquilo. Não há justificação para que façamos erros como os que aconteceram no Algarve.
A Guta vê-se como uma fazedora?
Completamente. Era incapaz de estar apenas no lado de quem providencia boas ideias. As boas ideias não são tão raras quanto isso, somos uma espécie muito criativa, mas falta saber implementá-las. As ideias interessam-me brutalmente, por alguma razão passei os primeiros anos da minha vida a ler e a estudar, e não a agir. Era uma miúda calmíssima, que só lia e tinha vergonha de tudo e de todos.
Quando começou a agir?
Com o nascimento do meu primeiro filho, senti-me não só uma supermulher mas também senti que nunca mais podia deixar de ser a supermulher. Como sou absolutamente viciada em Biologia e em Genética, sei que tudo isto é muito químico.
Por falar em genética, sabemos que a sua mãe usava saltos altos e que o seu pai era advogado, mas não sabemos muito mais.
A maior sorte da minha vida é ter nascido daquelas duas pessoas. Duas pessoas extraordinárias, completamente opostas; ele muito racional, intelectual, visionário, e ela muito pragmática, fazedora, mas também emoção, coração. Sou 50% de cada um deles, sou um catamarã. Os dois também têm muita coisa em comum: eram hippies, foram à boleia para Amesterdão… O pai escreveu o hino do PS, era um revolucionário de todo o tamanho. Portanto, cresci numa casa cheia de artistas e de livres-pensadores, habituada a poder pensar e a fazer tudo. E com música o tempo todo, quer do lado dos Moura Guedes quer do lado dos Gatos.
Ah, o famoso avô Gato, dos carrilhões do Convento de Mafra.
Esse meu avô dizia-nos “Agora, venham”, e pegava na chave da torre norte, a do carrilhão com melhor som. Subíamos aquela coisa enorme para vê-lo tocar o carrilhão, que se toca literalmente aos murros e aos pontapés.
Essa imagem é linda. Mais poética só a da avó que dormia no seu quarto e chorava, vestida de lilás.
Quando o meu avô Gato morreu, a minha avó Estela passou a viver connosco. O meu quarto era lilás, a minha cor favorita, e essa minha avó dormia com uma camisa de noite também lilás, num divã, aos pés da minha cama. Ela quis ficar no divã, e eu tinha a sensação de me deitar numa cruz. Era uma família extraordinária, fora da caixa.
Sentiu o peso de também ter de ser extraordinária?
Não [risos]. Até nisso os meus pais foram maravilhosos. Nunca houve qualquer exigência em relação a mim ou aos meus três irmãos, a não ser sermos boas pessoas. Os meus filhos também me dizem: a mãe ensina-nos tanta coisa, mas não nos ensinou a ser competitivos. Nunca me passou pela cabeça.
Mas a Guta parece competitiva.
Ah, eu sou muito competitiva, e os meus filhos também o são, porque sempre lhes disse: “A vossa competição é convosco, não é em comparação com”. A área social e a cultura podem estimular uma ideia de causa e, quando isso acontece, a competitividade está relacionada com a eficácia dessa causa.