“A normalidade não existe, é apenas a média estatística de todas as posições humanas, daquilo que é mais frequente. Somos todos divergentes, somos todos diferentes em algo, somos todos estranhos”

“A normalidade não existe, é apenas a média estatística de todas as posições humanas, daquilo que é mais frequente. Somos todos divergentes, somos todos diferentes em algo, somos todos estranhos”

Leitora compulsiva desde a infância, escreveu os primeiros contos com apenas cinco anos. A adolescência despertou-a para os transtornos mentais e, agora, olha o cérebro de frente, piscando o olho à chama criativa, mas sem elogiar a loucura. Nascida há 72 anos em Madrid, a escritora Rosa Montero já publicou 19 romances, dois ensaios biográficos, contos infantis e compilações de entrevistas. Às livrarias portuguesas, acaba de chegar O Perigo de Estar no meu Perfeito Juízo (Porto Editora, 240 págs., €16,65), uma viagem por estudos científicos e dados concretos, com observação da sua própria experiência (que inclui ataques de pânico), e desses “loucos” e “estranhos” autores dedicados ao mundo das palavras. Vinte anos depois, Rosa Montero regressa ao terreno que sustentou A Louca da Casa, um dos seus livros mais conhecidos, para mais um “artefacto literário”, uma análise na defesa do valor de ser diferente. Jornalista do diário espanhol El País desde 1976, Rosa Montero conta com, entre as muitas distinções que obteve, o Prémio da Associação da Imprensa de Madrid (2005) e o Prémio Nacional das Letras Espanholas, atribuído, em 2017, pela “sua longa trajetória no romance, jornalismo e ensaio.” Nesta entrevista à VISÃO, realizada na Póvoa de Varzim, onde esteve para participar no Correntes d’Escritas 2023, explica o que a escrita e a instabilidade mental têm em comum e como a literatura permite costurar-se, conhecer-se, manter-se de pé – ou, em linguagem clara e direta, não enlouquecer.

Qual é, afinal, o perigo de estar no seu “perfeito juízo”, como escreveu Emily Dickinson?
Dos 55 anos da sua existência, Emily Dickinson não saiu de casa nos últimos 15 ou 20 anos. Ficou fechada, a escrever. Publicou apenas sete poemas, e deixou mais de 1400, perfeitamente escritos e passados a limpo. Isso converteu-a num dos poetas mais importantes dos Estados Unidos da América. Agora, sabemos, é quase certo, que foi violada pelo pai e, provavelmente, pelo irmão. Isso contribuiu para o seu transtorno mental. O poema [Eu Creio que Fui Encantada, traduzido no livro de Rosa Montero] fala disso, de uma infância obscura e tenebrosa, e de como uma menina infeliz descobriu a magia da poesia, através de Elisabeth Barrett Browning, uma autora britânica vitoriana.

O normal, a realidade, era-lhe demasiado doloroso…?
Concordo com o que diz Emily. Em 2018, uma investigação do departamento de Psicologia da Universidade de Yale, que é uma das melhores universidades do mundo, afirma que a normalidade não existe. É apenas a média estatística de todas as posições humanas, daquilo que é mais frequente.

O que quer dizer com isso – muitas pessoas não encaixam nesse perfil?
Todo o mundo. É impossível que haja um homem, ou uma mulher, que cumpra a média estatística em todos os parâmetros, em todas as circunstâncias da vida. Somos todos divergentes, somos todos diferentes em algo, somos todos estranhos. Emily Dickinson sentia-se esmagada por uma suposta normalidade que era verdadeira, e, no seu caso, ainda mais grave, ligada à violência.

Estranho é ser normal, portanto?
O verdadeiramente estranho é o normal, e o normal é estranho. Há pessoas mais estranhas, outras menos, algumas estranhíssimas, mas até entre essas há um outro milhão igual. Há cerca de 20 anos, uma amiga de uns amigos, que parecia uma mulher muito sensata, razoável e inteligente, contou-me que guardava as unhas quando as cortava. Quando se separou do marido enviou-lhe uma caixa delas. Foi tão estranho que o escrevi num artigo no El País, mas cinco ou seis leitores escreveram-me a dizer que faziam o mesmo. No livro, digo que – verdade número um – somos todos iguais. No fundo, dentro de cada um de nós, somos iguais. Mas – verdade número dois – somos todos diferentes, em pequenas coisas, na maneira de olhar o mundo. E isso é precioso. Encanta-me ver essas diferenças.

Podemos, então, dizer que O Perigo de Estar no meu Perfeito Juízo é o livro da sua vida?
Sim, responde a perguntas com as quais me debato desde pequena, que perturbam, assustam, geram curiosidade, e, às vezes, fascinam. Estiveram sempre aí. Já escrevi sobre elas em A Louca da Casa, mas não desta maneira, de frente. Muitas personagens dos meus romances têm transtornos mentais. No último, A Boa Sorte, a coprotagonista acabou no psiquiatra. São temas muito meus.

Por tudo isso, por estar tão familiarizada com os temas das doenças mentais, foi fácil escrevê-lo?
Não, nada. Reuni tanta informação, três cadernos enormes, cheios de notas, várias cartolinas, e uma lista com 83 temas que nada tinham que ver uns com os outros. Fiquei desesperada. Acabei por tomar uma decisão, que salva o livro. Não analisar tudo com a razão, mas com a consciência. Fechar os olhos e escrever como um romance. Na escuridão. Deixar-me levar por aquilo que contam os personagens, pelo ritmo interno, pela música.

Como se fosse uma investigação?
Tem esse lado quase de detetive, de procura da verdade, de Sherlock Holmes, de ir buscar esta peça e ver se coincide com a outra. O maravilhoso é, no final, conseguir as respostas. É o livro da minha vida, pela sensação de conquista, intelectual e emocional. Porque entendo uma parte do mundo, que antes não entendia. De repente, está aí a serenidade de compreender, de maneira suficiente, como funciona a cabeça.

Precisamos da Arte para sobreviver. Que vamos fazer com as feridas da vida se não tentar convertê-las em luz, para que não nos destruam?

No fundo, escreve, como diz Clarice Lispector, que também cita, “como se fosse salvar a própria vida”?
Sim, escrever é uma forma de sobrevivência, porque nos salva, mas salva-nos de uma maneira especial. Desde que me lembro como pessoa que escrevo. A princípio era um jogo, agora é um esqueleto, que me mantém inteira, de pé. É uma maneira de estar. Mais do que salvar, dá-nos vida, permite-nos viver. O escritor Augusto Monterroso escreveu aquele que é um dos contos mais pequenos da história: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.” Pois, no meu caso, quando cheguei, a literatura já lá estava.

E se não pudesse escrever?
Ficaria louca. De alguma maneira descoser-me-ia, perderia pedaços, mas pior seria não ler. Antes de mais, os escritores são leitores apaixonados. Se há um livro para ler, nem tudo está perdido.

De alguma maneira, o risco de transtorno bipolar, de suicídio, é maior nos escritores?
Sempre se pensou isso, convém não dramatizar. Sou completamente contra a ideia, absurda, de que há que sofrer para ser escritor. Isso é utópico, uma mentira. Não é preciso sofrer para nada nesta vida. A obra nasce da dor da perda, mas só porque a vida é pura perda. Imaginemos o homem, ou a mulher, mais feliz da Terra, sabendo que vai morrer, e os seus entes queridos também, já tem dor suficiente para meia biblioteca. Na verdade, há uma tendência para o suicídio nos escritores, dizem os dados, mas há outras profissões com maior índice, e não consideramos que sejam dramáticas. Os dentistas, por exemplo, suicidam-se mais do que a média, e nunca dizemos que têm uma vida torturada.

A Arte é essencial à vida?
Precisamos da Arte para sobreviver. Como diz a frase maravilhosa de Georges Braque, que tenho tatuada: “A Arte é uma ferida feita de luz.” Que vamos fazer com as feridas da vida se não tentar convertê-las em luz, para que não nos destruam?

A Louca da Casa faz agora 20 anos…
É verdade. Pediram-me um prólogo para a edição especial que sairá, em breve, em Espanha, e, ao escrevê-lo, dei-me conta, com verdadeira surpresa, que, efetivamente, 20 anos separam estes dois artefactos literários [A Louca da Casa e O Perigo de Estar no meu Perfeito Juízo]. São difíceis de definir… Um ensaio? Nem por isso. Uma autobiografia? Pouco fiável. Uma história de outros autores? Ficção? Bem, tudo isto. São livros de maturidade, não poderia ter escrito nenhum deles antes.

Como olha para o feminismo, hoje?
Ainda há muito a fazer, mesmo no mundo ocidental. Não podemos desesperar, porque se olharmos a História, de um ponto de vista amplo, a verdade é que é tudo muito rápido. Em quatro gerações, mudou-se de maneira radical uma situação cultural e social da mulher que durava há dois milénios. No início do século XX, as mulheres não podiam ir para a universidade, nem votavam na Europa. Foram enormes conquistas em pouco tempo. Um grande número de homens deu-se ainda conta de que o feminismo é também uma luta deles. Se não mudarmos todos, o mundo não poderá mudar. Por exemplo, na manifestação do 8 de março, em Madrid, em 2019, uma das maiores de sempre, segundo números da polícia, estavam 370 mil pessoas e 40% eram homens!

Como vê a subida da extrema-direita nos países europeus?
A democracia perdeu a credibilidade. Os meus romances futuristas de Bruna Husky [a trilogia Os Tempos do Ódio, O Peso do Coração e Lágrimas na Chuva] partiram disso, há 15 anos, da ignorância, do dogmatismo e do totalitarismo que observava na sociedade. Vem da crise económica de 2008, que se superou de uma maneira fictícia, com 25% da população mundial empobrecida e na miséria. Essas pessoas perceberam que os filhos iam ser ainda mais pobres, e viram outros a não pagar pela crise e ficar ainda mais ricos. Perderam a confiança, consideram que a democracia não os representa. E têm razão.

E o que os leva a acreditar que determinadas ideias são a solução para os seus problemas?
Acreditam na falsa pureza do dogma, em gente como Trump, que são antissistema e os vai representar. Aí está o maior erro. É preciso refundar e dar credibilidade ao sistema. A democracia é tão transparente que mostra falhas, como a corrupção, a injustiça, a hipocrisia. E os dogmáticos culpam-na por isso. É mais fácil acreditar quando não se está informado. Aconteceu o mesmo com o nazismo, subiu por causa da crise económica de 1929, um período onde se estava muito mal.

Na sua opinião, não aprendemos com a História?
Vamos ver. Não creio que a História se repita, sempre. Em todo o caso, é como uma espiral, podemos voltar a passar pelos mesmos sítios, mas noutro lugar, um pouco diferente.

Está otimista?
Não. Dizem que o pessimista é o que pensa que estamos no pior dos momentos possíveis e o otimista aquele que considera que podemos piorar muito mais.

Alterações climáticas, pandemia… e a Europa?
Uma porcaria, um fracasso. Sou europeísta, adoro a ideia de uma Europa unida. A supranacionalidade é um sonho, capaz de superar o nacionalismo horrível, pequeno e miserável, mas a Europa é um fracasso, uma catástrofe. Estamos divididos, somos estúpidos e egoístas, fracassamos com os refugiados, o tempo todo… Oxalá se consiga uma solução, não há outro remédio, mas, para já, não estamos a ter sucesso.

Nem a guerra da Ucrânia uniu os países europeus?
Uniram-se um pouco, mas não totalmente, frente a esta ameaça. Acredito que vamos ter uma guerra total e nós estamos, como no Titanic, a ver a banda tocar, enquanto o barco se funda. Espero estar enganada.

O jornalismo também está em crise?
Estamos a fazer a travessia do deserto, tem sido muito duro, com muitas dores de cabeça, por causa da adaptação às novas tecnologias. Isso destruiu dois terços dos jornais do mundo, mas as pessoas estão a habituar-se a pagar pelos digitais. É o único futuro. Os jornais em papel vão desaparecer, isso é claríssimo. Admito que possam sobreviver apenas em formato revista, aos fins de semana

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