“As pessoas com fibromialgia têm, em regra, um predomínio de emoções negativas, uma característica de personalidade que precede os sintomas da doença”

“As pessoas com fibromialgia têm, em regra, um predomínio de emoções negativas, uma característica de personalidade que precede os sintomas da doença”

Está na nossa oralidade: isto “dá-me urticária”, aquilo “revolve-me as entranhas” ou “dá-me a volta ao estômago”. No entanto, não é fácil, para médicos, doentes e comunidade, aceitar as doenças ou os sintomas psicossomáticos. José António Pereira da Silva, 65 anos, médico, professor catedrático de Reumatologia na Universidade de Coimbra e diretor científico de MyFibromyalgia.org, publicou, juntamente com uma vasta equipa de investigadores, um estudo que sugere existir uma relação estreita entre a fibromialgia e traços de personalidade com tendência aumentada ao stresse, à ansiedade e à depressão. A investigação teve destaque na prestigiada revista científica Nature Reviews e tem dado que falar.

Como é que se interessou pela ligação entre o corpo e a mente?
Há muitos anos que o faço e acredito que qualquer médico encontrará evidência dessa ligação nos seus doentes. Há pessoas que sempre resistiram a provações múltiplas por causa de uma doença e, finalmente, parece que desistem, até os medicamentos deixam de fazer efeito, porque o doente deixou de combater, aceitou a morte. Lembro-me de uma paciente assim – na sequência do falecimento de uma filha, ela achou que não tinha o direito de lhe sobreviver e desistiu. Pelo contrário, a felicidade melhora o bem-estar e diminui os marcadores biológicos e a evolução da doença – não é só uma questão de bem-estar, modifica-se a própria fisiologia.

A doença mental é também uma área muito estigmatizada. Não há muito tempo, chamavam-se “histéricas” às mulheres…
É um estigma que faz pensar e sentir ao comum dos mortais, e infelizmente a alguns médicos também, que os sintomas que não têm uma origem física clara são provavelmente inventados pelo doente e desprovidos de relevância. Há muito sofrimento que não tem uma doença física identificável. Como a fibromialgia, algumas doenças mentais, a influência negativa que a personalidade mais stressada tem na evolução do cancro, da insuficiência cardíaca, do enfarte do miocárdio, do funcionamento do intestino, do estômago… Se a cabeça não tem vontade, o corpo também não. Se a cabeça se agita demasiado, o corpo desgasta-se. Se a cabeça estiver ávida de vida, feliz, o organismo tende também a harmonizar-se.

Mas o que é isso de ser feliz?
O que diz a investigação é que a felicidade consiste na existência de um predomínio de emoções positivas sobre as negativas, ainda que a origem dessas emoções possa variar muito de uma pessoa para outra. Não basta ter coisas boas na vida, é preciso saber usufruir delas, valorizá-las. Uma dimensão também muito importante tem que ver com a noção de serviço, sentido de vida, propósito, reconhecer valor no que faço. Um outro pilar fundamental reside na relação com os outros: as pessoas mais felizes tendem a ter um maior número de amigos e relações mais estáveis, produtivas e respeitosas, retirando delas muita satisfação. Os estudos também referem uma relação com a transcendência, a espiritualidade, que para uns será a religião, para outros um ideal de sociedade, por exemplo.

Vamos então à sua investigação. É reumatologista.
Como reumatologista, verifiquei que a fibromialgia tem uma relação muito forte com o bem-estar emocional ou a falta dele. Na generalidade, os doentes reconhecem que passam bem pior quando estão mais tensos, angustiados ou tristes e, pelo contrário, sentem francas melhoras em alturas mais felizes e tranquilas de vida. Ora, as pessoas com fibromialgia têm, em regra, um predomínio de emoções negativas, uma característica de personalidade que precede os sintomas da doença.

Então reuniu uma equipa…
Da minha observação e das minhas leituras surgiu o conceito de que os doentes com fibromialgia não se limitam a amplificar a dor (o que está bem estabelecido como um mecanismo essencial da doença), mas têm uma grande tendência para “amplificar” todas as coisas más da vida. É sabido que são mais sensíveis ao frio, aos ruídos, aos odores, que tendem a sentir nos acontecimentos correntes uma tonalidade mais negativa, uma carga de “ameaça”. Tudo o que percebemos como ameaça é gerido pela salience network, uma entidade do sistema nervoso central que funciona como a nossa central de alarme. Este sistema neuronal serve o objetivo nuclear da sobrevivência: identifica qualquer sinal de ameaça e põe em curso uma resposta imediata, que pode envolver todo o corpo. Das conversas longas com doentes, retirei a convicção de que existe neles uma perceção acentuada de ameaça e de risco, e uma perceção diminuída de conforto e satisfação com a vida. Esta perceção mantém a central de alarme em atividade permanente e daqui resulta a amplificação da dor, dos cheiros, dos ruídos e demais estímulos. Toda a vida é afetada por este viés negativo, resultando na emergência e na manutenção dos sintomas da doença, quer de ordem psicológica quer de ordem física.

O viés negativo não poderá ser consequência da doença?
Não parece ser assim. A esmagadora maioria dos doentes reconhece que já tinha estes traços de personalidade muito antes de ter dores, desde a infância, em muitos casos. É, naturalmente, compreensível que sofrer dores e cansaço permanentes causa tensão psicológica. A nossa proposta é que o inverso é igualmente verdadeiro.

Como foi elaborado o modelo que agora publicou?
Fizemos uma pesquisa muitíssimo detalhada de toda a evidência científica e validámos e refinámos os nossos conceitos com o auxílio de uma rede internacional de investigadores destacados nesta área, incluindo psicólogos, reumatologistas e investigadores de neurofisiologia. Fomos expondo os conceitos à crítica interpares e chegámos a um modelo para a interpretação desta doença – chamamos-lhe o modelo FITSS (Fibromyalgia Inbalance of Threat and Soothing Systems), que está publicado numa revista de grande impacto internacional [Nature Reviews Rheumatology]. Este conceito continuará exposto à crítica interpares, inspirando mais investigação e uma forma nova de abordar estes doentes por parte dos clínicos, baseada na compreensão holística da pessoa.

As conclusões da vossa investigação causam polémica?
Sim, bastante. Por um lado, pela dificuldade em abandonar os conceitos prévios que essencialmente excluíam as óbvias dimensões psicossociais da fibromialgia. Por outro lado, há quem tema que, ao destacar a importância destas dimensões, possamos aumentar o estigma dos doentes. Alguns investigadores defendem que as alterações que se verificam no sistema nervoso central, relacionadas com a dor, são primárias, autónomas, a causa primeira da doença. Sucede que estas alterações estão no centro da salience network, também envolvidas na modulação e na governação das emoções.

O que não quer dizer que a dor não exista.
Absolutamente! As dores e o cansaço são indesmentivelmente reais, ainda que a sua causa não seja óbvia. O facto de haver uma conotação psicológica não deve de forma nenhuma levar as pessoas, muito menos os doentes, a achar que isto as torna responsáveis ou culpadas. Nenhum de nós é autor da sua maneira de ser e de sentir nem pode mudá-la do dia para a noite. Não somos quem queremos e não nos fizemos. A nossa forma de gerir o stresse e as emoções é, em boa medida, resultado dos nossos genes e das nossas experiências de vida, sobretudo dos primeiros anos de vida. Todos nascemos equipados para identificar a ameaça, mas temos de aprender que a segurança, o amor, a empatia também existem. E se algumas pessoas, por infelicidade, não tiveram esse ensinamento, se sofreram ambientes agressivos ou de negligência e abandono, não aprenderam a reconhecer a segurança, e assim se criam as condições para o tal enviesamento.

Nenhum médico dirá a um doente: ‘Você tem diabetes, faça o favor de produzir insulina.’ Não há psicologia num vazio biológico. Eu sou, em boa medida, a emanação da minha bioquímica

Como é que os doentes encaram estas conclusões?
As pessoas estão, em geral, disponíveis para aceitar uma dor passageira ou uma indisposição, quer sejam provocadas por um fator psicológico ou de stresse. Já é mais difícil aceitar-se a ideia de que se vive num stresse mais ou menos permanente porque tudo incomoda, tudo preocupa. Isso já remete para a maneira de ser da pessoa e menos para a circunstância pontual. Esta sensação de culpa pessoal faz com que, penso eu, os próprios doentes tenham tanta dificuldade em aceitar o modelo no início, e isso é um dos maiores obstáculos a que possam controlar e vencer a fibromialgia. É necessário perceber que é tão natural ser tenso e preocupado como diabético ou hipertenso – é a roleta genética.

Há também uma componente genética na dimensão psicológica.
Absolutamente. As nossas emoções e os nossos pensamentos não são senão resultado dos processos químicos e elétricos que decorrem no nosso cérebro e que são, em boa medida, regulados pelos genes. Tal como no resto do organismo. A depressão e a tristeza são consequência de um défice de serotonina, tal como a diabetes é muitas vezes devida à falta de insulina. Nenhum médico dirá a um diabético: “Você tem falta de insulina, faça favor de produzir mais.” O que justifica então dizer-se a uma pessoa com fibromialgia que o problema “está só na sua cabeça”, como quem diz, “trate você disso”? Não há psicologia num vazio biológico. Todos somos, em boa medida, a emanação da nossa neuroquímica. Acontece que os acontecimentos de vida podem mudar o funcionamento do cérebro, modelando o efeito dos genes. E há também atividades voluntárias que podemos fazer e que treinam o cérebro. Uma pessoa com depressão ou fibromialgia que se envolva em atividades com tonalidades emocionais positivas fará aumentar os níveis de serotonina no seu cérebro. Quando nos apaixonamos, o que acontece é um surto de oxitocina no cérebro. Somos química, portanto, em todas as dimensões, físicas e emocionais. Doenças com conotação psicológica merecem o mesmo respeito e cuidado que qualquer outra doença de base química como a diabetes ou a hipertensão arterial.

O que caracteriza a fibromialgia?
O sintoma principal consiste na dor generalizada, definida como dor que afeta múltiplas áreas do corpo ao longo dos últimos três meses, não necessariamente ao mesmo tempo. De acordo com os critérios mais recentes, basta que a isso se junte ou uma perturbação do sono ou fadiga, considerada moderada ou grave. Mas estes doentes normalmente têm muito mais sintomas: enxaquecas, cólon irritável, bexiga irritável com sensação de infeção urinária frequente, dor durante a relação sexual, por vezes uma sensação de queimação na pele que aumenta ao toque, não é raro que as pessoas sintam um aperto no peito que se traduz em falta de ar, e é também frequente que tenham, no passado ou no presente, depressão, ansiedade, crises de pânico. Este sofrimento, já se si notável, é muitíssimo agravado pela invalidação ao nível da família, do trabalho, dos serviços sociais ou dos serviços de saúde. Estes doentes têm também extrema dificuldade em ver a sua incapacidade reconhecida, sob a forma de baixa médica ou reforma por incapacidade, porque o médico não tem prova do sofrimento nem de doença que o justifique. As análises são todas normais, as radiografias também…

As ressonâncias magnéticas não mostram a dor?
Vê-se que as áreas que modulam a dor estão, de facto, hiperativas. Há estudos muito claros que demonstram que o doente sente efetivamente a dor que descreve sentir: isso é indesmentível. Contudo, estes achados não têm ainda uma definição suficiente para constituir prova da doença.

Estão agora abertos novos caminhos para o tratamento e a cura?
Atualmente, há alguns medicamentos capazes de ajudar na fibromialgia e todos eles atuam sobre o humor. O seu efeito, contudo, é limitado. É muito mais eficiente a longo prazo que o doente aceite abraçar um projeto de transformação pessoal, que permita alterar, por dentro, aquele desequilíbrio emocional que descrevi e evitar as suas consequências. Costumo aconselhar: mais prazer e menos dever, mais satisfação, menos obrigação, mais você e menos os outros. E isso pode conseguir-se com apoio profissional e determinação.

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