O nosso trabalho publicado a semana passada na revista científica Scientific Reports, do grupo Nature, demonstrou pela primeira vez que era possível “biomarcar”, através da observação do comportamento da pupila, a nossa reação (ao nível do sistema nervoso) à autenticidade das emoções (expressas vocal e não-verbalmente) dos outros. A reação às expressões emocionais dos outros está relacionada com uma capacidade cognitivo-emocional: a empatia. A empatia cognitiva uso-a quando eu entendo (ou “adivinho” corretamente) o que o outro está a sentir, pensar, etc. A empatia emocional uso-a quando “automaticamente” fico triste se vejo alguém chorar, ou contente se vejo alguém sorrir, i.e. numa espécie de contágio emocional.
Pessoas que registam altos traços de um certo tipo de psicopatia (normalmente associada com alto narcisismo, insensibilidade, frieza, e outras características) tendem a ser menos capazes na empatia, principalmente na emocional. Ou seja, não tendem a “sentir” dor no sofrimento dos outros, e isso é um problema, claro. É um problema principalmente quando se encontram em situações de alto estatuto: diretores, CEOs, ministros, presidentes, etc. (E sabemos que os cargos de liderança apresentam uma média de traços de psicopatia ligeiramente superior ao da população geral.)
Na sequência do trabalho que temos feito no meu grupo de investigação sobre a fisiologia inerente às diferenças entre as pessoas no que toca às suas capacidades sócio-cognitivas, surgiram inevitavelmente questões sobre a sua potencial aplicabilidade. São questões que devem assaltar qualquer cientista, mesmo que a aplicabilidade seja longínqua ou pareça coisa de filme de ficção científica. De que formas concretas poderíamos usar o conhecimento gerado para o bem da sociedade? Uma resposta imediata é o uso clínico destes biomarcadores de forma a diagnosticar, prognosticar e monitorizar pessoas que sofrem de sintomas socias, como na esquizofrenia e autismo, e daí os nossos atuais estudos com estas populações (em pareceria com a CUF, Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e a clínica CADIN).
E fora do âmbito clínico, será que o desenvolvimento de biomarcadores fisiológicos que testam a empatia das pessoas pode servir como instrumento, à la testes psico-técnicos, para o recrutamento profissional? De forma a que pessoas que quisessem candidatar-se a cargos de liderança (pelo menos no setor público) tivessem que ser testadas e admitidas na condição de terem um grau de empatia suficiente para o cargo? Ainda está em vias de ser conseguida a precisão de biomarcadores de empatia, mas seria uma avenida a explorar tendo em vista a proteção preventiva da sociedade de líderes autocráticos e genocidas, ou simplesmente que não se parecem mover com as preocupações dos seus liderados?
É uma ideia por enquanto futurista, mas que – com o desenvolvimento destes instrumentos de medição fisiológica de respostas emocionais e cognitivas, atualmente, para a prática clínica, judicial, para o (neuro)marketing, e até para recrutamento em cargos profissionais mais técnicos em que a segurança é a prioridade (ex, astronauta, militares, etc) – será, decerto, um dia, discutida também para os cargos de liderança. Os recursos humanos de empresas públicas e privadas já usam baterias de testes no seu dia-a-dia, na sua maioria na forma de “jogos” e questionários, e mais raramente na forma de biomarcadores psicofisiológicos (raramente, provavelmente porque o seu desenvolvimento é mais complexo e mais recente). São já muito ubíquos os testes não-psicofisiológicos de inteligência (nas várias facetas, verbal, matemática, etc), de velocidade de reação, de atenção, de flexibilidade cognitiva, de criatividade, de memória, etc, em várias profissões nas quais são relevantes para um bom desempenho. (As vertentes psicofisiológicas destes testes ainda estão em desenvolvimento, mas crê-se que seriam mais objetivas, precisas e menos manipuláveis.) Como a empatia, são capacidades que nascem connosco e que, até certo ponto, podem ser treinadas. Os pilotos que pilotam os nossos aviões só o fazem porque passaram uma série de testes de capacidades cognitivas e emocionais, para nossa segurança. E os nossos líderes, governantes, chefes de departamento tem o poder de definir a nossa qualidade de vida, de gerir ou desviar bens comuns, ou até de nos obrigar a guerrear – deviam ser testados para a sua capacidade empática nas entrevistas de trabalho, ou submissões de candidatura? E se sim, preferiríamos que isso fosse feito com testes de “jogos” e questionários versus testes de biomarcadores fisiológicos, e porquê? Nas nossas consultas de medicina de trabalho, já somos testados para biomarcadores fisiológicos que podem contraindicar determinados trabalhos. (O sistema nervoso gera o nosso comportamento, como o sistema circulatório o nosso risco de enfarte.) Gostaríamos então de ver os nossos futuros líderes a ter que “passar” testes de empatia?
É verdade que a democracia nos protege de líderes perigosos, se tivermos a sorte de que exista na nossa sociedade, mas depois, mesmo assim, é preciso ter mais sorte. Como se viu nos EUA, onde os sistemas legislativos e judiciários são dos mais protetores da democracia, possíveis traços altos de psicopatia conseguiram manipular a dita e passar por entre as brechas.