A demonstração fez furor. No Sapphire, o evento anual da SAP que decorreu em Barcelona, uma dose generosa do espaço de exposição era ocupada pelo showcase ‘From Farm to Consume’. Por trás do nome pomposo estava a parceria da SAP com a Unilever que pretendia mostrar como a tecnologia pode ajudar em todos os processos da cadeia de valor, que vão desde a etapa inicial do cultivo dos produtos necessários para fabricar um gelado até à etapa final da aquisição e consequente degustação. Fizemos a tour e explicamos o que vimos.
Para começar, o visitante deveria deslocar-se a uma máquina com ecrã tátil (daquelas que podemos encontrar num restaurante de fast-food) da Lenovo e digitalizar o seu badge. A partir daí era identificado e bastava responder a umas breves questões para lhe ser sugerido o sabor do gelado que melhor se adaptava à sua personalidade (se não gostasse do resultado, podia sempre voltar atrás e fazer outra escolha).
Daí partíamos para diferentes estações que mostravam como as soluções da SAP poderiam aportar valor a toda a cadeia de valor através da disponibilização de múltiplos dados: meteorológicos na fase de cultivo para otimizar o processo; materiais, preços, potencial de reciclagem e hipotéticas coimas por não cumprimento de requisitos de diferentes fornecedores de copos para o gelado; alertas sobre problemas na maquinaria da fábrica; notificações sobre stocks e procura em tempo real para facilitar a gestão; rentabilização do espaço de armazenamento; e acompanhamento do item durante todo o processo logístico.

Quando chegámos à estação final estávamos num espaço que simulava uma loja. Voltámos a passar o badge numa máquina, aparece o nosso nome num ecrã e é-nos servido o gelado que selecionámos, com direito a mensagem personalizada.

E, sim, o sabor era muito bom – não fosse a Unilever detentora da Ben & Jerry’s (quem não é fã também podia optar por Magnum).
Da realidade aumentada ao blockchain, passando pelo metaverso
A liderar a tour pelo showcase estava Andre Bechtold, Senior Vice President e Head of Solution & Innovation Experience da SAP. A Exame Informática aproveitou para lhe roubar 27 minutos adicionais e fazer uma entrevista sobre, primordialmente, tendências tecnológicas e inovação relacionada com os centros de experiência que a empresa alemã tem um pouco por todo o mundo.

Exame Informática: Têm uma nova parceria com a Lenovo. Pode explicar em que consiste?
Andre Bechtold: Sim. Fizemos um pré-anúncio, ainda não o oficial, de uma parceria com a Lenovo. Eles estão a investir muito no retalho com terminais de check-out e outra eletrónica de hardware para lojas modernas de retalho. Fizemos uma parceria com eles para integrar o nosso software (como o SAP Customer Checkout) nos dispositivos de hardware deles e também fazer a integração dos dados com as etiquetas dos produtos nas prateleiras. Por exemplo, se tiver um preço em promoção que quer aplicar a múltiplas lojas pode fazê-lo através do sistema ERP para as etiquetas das prateleiras eletrónicas da Lenovo. Fizemos uma integração fluída em pacote com a Lenovo. E o tópico do checkout é superimportante. Por exemplo, se for um viajante e estiver num aeroporto ou terminal de comboio, basta digitalizar um código de barras e seguir caminho, porque temos uma solução de checkout ligada à gestão de dinheiro no ‘backend’.
Lidera a área de Experience Centers (centros de experiência de inovação) da SAP. Pode explicar o que são? E quão importantes são para fomentar a inovação da empresa e para fortalecer a relação com os clientes?
Os Experience Centers já existem há alguns anos. Contudo, eram um conjunto algo aleatório de diferentes showcases e não era especificamente vocacionado para clientes ou virado para a engenharia de produtos – servia mais para mostrar a clientes o que a SAP fazia além do que eles já sabiam. Agora mudámos de direção. Criámos uma nova estratégia para os Experience Centers com os quais queremos inspirar os nossos clientes, mostrar o que é possível com SAP e como podemos dar suporte à transformação de negócio deles ou criar novos modelos de negócio, ajudando no caminho para a sustentabilidade. Ou seja, refletir de uma forma digital toda a cadeia de valor de qualquer indústria específica dos nossos clientes e depois ir para os processos específicos e mostrar as soluções que podem suportar essa jornada. Não só soluções SAP como todo o ecossistema de produtos dos parceiros podem ser integrados. Falamos a linguagem do cliente. Se for um cliente da indústria automóvel, tudo no Experience Center vai ser da indústria automóvel, como as imagens, os conteúdos das demonstrações, as necessidades estratégicas prioritárias… Damos muita atenção à especificidade do cliente e, em cima disto, temos exemplos muito tangíveis do mundo real em Experience Labs de referência, como, por exemplo, em Walldorf, Nova Iorque, Bangalore ou Washington. Construímos lojas de retalho do futuro em que tudo corre em software SAP e de parceiros, temos engenharia de produtos, soluções de gestão, comunidades de start-ups… Criamos inovação que mostramos a clientes e também aprendemos quais poderão ser as melhores práticas e pacotes de integração feitos por parceiros que um cliente pode implementar de forma mais rápida no futuro. Acho que é uma oportunidade única para mostrar que funciona num sistema real, é ‘à prova do futuro’, podemos entregar em conjunto com parceiros e também podemos ter o feedback dos clientes e reformular a prioridade do ‘roadmap’ das equipas de desenvolvimento de produto, porque estão connosco nestas discussões.
Referiu algumas das diferentes cidades onde existem Experience Centers. É possível identificar diferentes pontos fortes para as várias regiões na forma como criam inovação ou resolvem problemas? Ou é relativamente igual devido à globalização?
Temos 26 Experience Centers e agora com o conceito digital é igual em todos. Aplicamos a inspiração na jornada de inovação a que aludi antes nos 26 centros. A abordagem dos Experience Labs é que se foca em diferentes processos de negócio relativos a indústrias específicas baseada na localização. Um exemplo: em Nova Iorque falamos muito de retalho de moda, porque a indústria da moda é forte e muitos clientes estão localizados aí. Está sempre intimamente ligado com o grande mercado mais próximo da área. Temos por exemplo, distribuição para grossistas na Alemanha com gestão de armazéns; em Bangalore, são processos de manufatura. Diria que na localização dos Labs nos focamos mais nas comunidades em desenvolvimento que existem e quais os maiores mercados-alvo na área, e depois fazemos a localização baseada nestes factos e na analítica prévia. Também podemos mostrar algo como as lojas de retalho numa abordagem de metaverso, mas acho que esta experiência física que permite ver num ambiente real como um processo corre no sistema quando alguém tira algo de uma prateleira, o que isso espoleta automaticamente no sistema, é uma experiência única.
O Experience Center de Barcelona, que tivemos oportunidade de visitar, já trabalha com o metaverso. Qual será o impacto dessa ferramenta no mundo profissional por oposição à aparente fraca adesão no mercado de consumo?
A experiência no Experience Center de Barcelona ainda está a ser reformulada para ter novos tópicos. Mas o metaverso é uma área importante para a SAP, principalmente na área B2B industrial, em aspetos como manutenção inteligente e planeamento de construção. Por exemplo, tornar os edifícios mais sustentáveis, reduzir custos de manutenção, etc. Acho que há casos de estudo superrelevantes no metaverso. Por exemplo, pense no planeamento de um armazém e nas várias escolhas, como janelas, e simular num ambiente virtual como o sol bate e onde guardar os diferentes itens, gerir os aspetos relativos à temperatura e reduzir os custos de refrigeração… Tudo coisas que se podem fazer facilmente hoje num ambiente virtual e para fazer isto precisa de dados SAP. No passado falámos muito de gémeos digitais e agora também há formação, especialmente se não tiver um funcionário qualificado. No nosso caso ‘From Farm to Consume’ há empregados sazonais e é preciso treiná-los para lidar com maquinaria complexa ou usar robótica – formar num ambiente virtual é um enorme benefício. E a Web3 também é um tema que irá mudar, com a IA generativa, mas que se mantém relevante. Em relação ao mercado de consumo, vamos ver o que acontecerá com o metaverso. Será como os NFTs? Haverá valor no final ou será um hype que depois esmorece? Acho que, numa perspetiva de negócio, é preciso olhar para ele de forma cautelosa e encontrar a forma certa de utilizar a tecnologia e investir nela, mas julgo que também não é preciso investir em tudo.
Na sua opinião, quais serão as grandes tendências tecnológicas dominantes no futuro? A Inteligência Artificial está com todo o ‘buzz’, mas há ainda, na vossa área, blockchain, low-code, etc.
O blockchain já está a ser muito utilizado, especialmente na rede de negócios de indústrias como a cadeia de abastecimento, seguros, finanças, logística… Do ponto de vista tecnológico, o blockchain está a funcionar, mas não significa que seja como cripto, pode ser para muitas outras coisas, como temas de licenciamento (contratos inteligentes, gestão de risco, etc.). Depois a IA generativa, que não é nova, já existia, mas a OpenAI e o ChatGPT tornaram-na acessível ao consumidor e penso que isso é chave, porque agora, para a SAP, temos de torná-la ‘consumível’ para o nosso utilizador profissional para que ele possa ganhar benefícios dela. E já está em todo o lado, temos vários casos de uso, em que tentamos automatizar coisas e eliminar fluxos de trabalho manuais com base em tecnologia de IA. Também vemos como estes modelos de linguagem aprendem tão depressa que quem está a começar agora também poderá competir daqui a um ano com o ChatGPT, porque essa é a lógica da tecnologia. É um tema que vai permanecer, sem dúvida. Como usar e qual será a regulamentação com que se terá de lidar é uma oportunidade para a SAP, mas também uma zona negra para muitas empresas. No passado, a automação era sempre encarada como um risco para trabalhadores de colarinho azul. Penso que a IA é uma grande oportunidade para a comunidade de software, pois reduz em muito o investimento que empresas de áreas específicas teriam de fazer. Também para a área jurídica. Mas há o outro lado. Sabemos que se criarmos ‘fake news’ ou ‘deepfakes’ poderão ter um impacto na Bolsa, por exemplo. É possível fazer coisas perigosas com ela. É preciso encontrar uma forma de a gerir, mas também é uma grande oportunidade e penso que vai acelerar a grande ritmo, porque todas as comunidades estão a investir nela. Em relação à Realidade Virtual, há casos, mas, pessoalmente, não sou um crente. Vimos com o pós-Covid que as pessoas gostam de se encontrar pessoalmente. Na SAP temos iniciativas de regresso ao escritório para socializar, em que as ideias se desenvolvem mais rapidamente. Não acredito que vejamos um mundo de RV em que tudo corra lá. Pode ser uma melhoria em relação ao mundo físico, mas não em todos os aspetos.
Será a Realidade Aumentada uma alternativa? Uma espécie de meio caminho?
Sim, é uma boa alternativa, sem dúvida. Nos Experience Centers temos essa discussão. As pessoas de vendas dizem que devemos ter casos de Realidade Virtual e eu digo: chegam com 5 executivos clientes, na casa dos 60 anos, para uma sessão de 20 minutos com um grande headset de RV, em que está a suar depois de 5 minutos e em que é preciso 10 minutos de explicação prévia – irá gerar frustração… Com Realidade Aumentada é um pouco mais fácil, porque os óculos são mais leves e é algo em cima de informação. Por exemplo, num aeroporto, é preciso uma pessoa a digitalizar e outra a levar a bagagem, pelo que é possível reduzir o tempo com os óculos de RA a fazer a digitalização apenas com o olhar e depois gerir a bagagem. Portanto, poderá reduzir esforços manuais e tornar as coisas mais fáceis, mesmo que não seja um funcionário muito qualificado.
Há pouco referiu a Inteligência Artificial e a necessidade de regulamentação. A SAP sendo uma empresa alemã cai sob a alçada da União Europeia, que costuma ser mais rígida nesse campo. Isso poderá ser um obstáculo na velocidade da inovação quando comparado com outros países?
O maior problema que temos na Europa é o volume de investimento. Os chips da Nvidia usados para treinar estes grandes modelos de linguagem são muito caros. Portanto, se for uma pequena start-up e tiver de investir 100 milhões nestes equipamentos para treinar os modelos terá de ter muitos parceiros de investimento. E isto é algo que os EUA estão a fazer muito melhor, com apoio governamental. Do ponto de vista regulatório, acho que às vezes é preciso facilitar um pouco as coisas, mas, sinceramente, não sei se isto é a principal razão pela qual estamos atrasados. A nível de investigação, realizada nas universidades, temos uma fundação muito boa em IA. Muitos europeus acabam é por se deslocar para os EUA por causa do investimento. Diria que isso é o maior bloqueio ao impulso europeu da IA. Na Alemanha temos um modelo de linguagem quase tão grande como o ChatGPT. É muito mais técnico, não é acessível a um consumidor normal. É quase tão bom, mas agora está grandes dificuldades em conseguir investimento para o treinar para o patamar seguinte. O investimento é um problema maior do que a regulamentação. Normalmente, quem se queixa muito da regulamentação são as pessoas que querem abrandar os líderes para recuperar terreno; depois de o recuperarem, já não falam de regulamentação.