“Digo sempre que fui o primeiro trabalhador do conhecimento cujo trabalho foi ameaçado por uma máquina”. A frase é de Garry Kasparov, que se tornou campeão do mundo de xadrez em 1985 e dominou o jogo de forma categórica na década seguinte, ao ponto de ainda ser considerado por muitos como o melhor jogador de todos os tempos. Mas a partida que cravou ainda mais o seu nome na história só aconteceria em 1997, contra o supercomputador Deep Blue, criado pela IBM.
Naquela partida, a máquina superou um grão-mestre e deixou o mundo de boca aberta. De repente muitos começaram a olhar para o potencial da inteligência das máquinas – tinha quase tanto de espetacular, pelas oportunidades que abria, como de ameaçador, pelas consequências negativas das máquinas serem melhores do que os humanos em tarefas específicas.
Na semana passada, Garry Kasparov voltou à sala onde tinha defrontado o Deep Blue para participar numa conferência sobre Inteligência Artificial (IA). Numa entrevista à revista Wired, o russo de 56 anos falou sobre o seu caso particular de alguém que viu-se ‘varrido’ pela inteligência artificial e partilhou as perspetivas que tem relativamente ao futuro da tecnologia. Se mostra ser um otimista em alguns aspetos, noutros há claramente um tom fatídico que é difícil de ignorar.
“Durante várias décadas temos treinado as pessoas para agirem como computadores e agora estamos a queixar-nos que esses trabalhos estão em perigo. Claro que estão. Temos de procurar oportunidades para criar trabalhos que vão destacar as nossas forças. A tecnologia é a principal razão pela qual tantos de nós ainda estão vivos para se queixarem sobre tecnologia. É uma moeda com dois lados. Penso que é importante que, em vez das queixas, vejamos como podemos avançar mais rápido”, disse no evento da Associação para os Avanços da Inteligência Artificial, que se realizou em Nova Iorque, EUA.
“Todas as tecnologias destroem empregos antes de criarem empregos. Quando olhas para as estatísticas, apenas 4% dos trabalhos nos EUA requerem criatividade humana. Isto significa que 96% dos trabalhos, eu chamo-os de trabalhos zombie, estão mortos, só ainda não o sabem”, acrescentou.
Garry Kasperov considera que perder para o Deep Blue, em 1997, foi uma “experiência desagradável”, mas admite que ajudou-o a perceber o futuro da colaboração entre humanos e máquinas. Por exemplo, o russo está a trabalhar com a empresa de inteligência artificial Deep Mind, detida pela Alphabet, para ajudá-la a melhorar a eficácia de um sistema de IA generalista em jogos de xadrez.
“Eu posso olhar para os jogos do AlphaZero e perceber potenciais fraquezas. E acredito que fez algumas avaliações imprecisas, o que é natural. Por exemplo, valoriza mais o bispo do que o cavalo. Tem informação de mais de 60 milhões de jogos nos quais, estatisticamente, o bispo foi mais dominante em muitos mais jogos. Penso que deu demasiada vantagem ao bispo em termos de número. O que deves fazer, deves tentar que o teu motor [de jogo] fique numa posição na qual o AlphaZero vai cometer erros inevitáveis [baseados nesta imprecisão]”, explicou.
Depois de todos estes anos após a derrota com o Deep Blue, Kasparov diz ter feito “as pazes” com aquele momento e acredita que no futuro os humanos vão ter o papel de “pastores” de sistemas de inteligência artificial. “Tens de encaminhá-los [algoritmos inteligentes] numa direção ou noutra, e eles vão fazer o resto do trabalho. Pões a máquina certa no espaço certo para fazer a tarefa certa”, defendeu.
A entrevista à publicação norte-americana fica ainda marcada por uma tirada aos esforços que algumas empresas e instituições estão a fazer para criar Inteligência Artificial mais ética. “As pessoas dizem ‘Oh, precisamos de fazer IA mais ética. Que absurdo. Os humanos ainda têm o monopólio do mal. O problema não é a IA. O problema são os humanos a usar novas tecnologias para magoar outros humanos.”