Mesmo que descubra a mais gravosa da violações, a Autoridade Nacional das Comunicações (Anacom) pouco ou nada poderá fazer para punir um operador que tem tarifários que não respeitam o regulamento Europeu da Neutralidade da Internet. Em outubro do ano passado, a Anacom enviou para o governo uma proposta de regime sancionatório para operadores de telecomunicações que não respeitam a neutralidade da Internet – mas o processo não avançou desde essa data. A inexistência de um regime sancionatório começou por fazer sentir-se pela primeira vez em março, quando a polémica em torno dos tarifários Smart Net, WTC e Yorn ainda estava confinada a Portugal. Hoje, com os tarifários da Meo a serem usados na troca de argumentos entre políticos americanos, a Lei das Comunicações Eletrónicas ainda não dispõe de um regime sancionatório para operadores que não tratem em regime de igualdade os diferentes serviços e conteúdos disponíveis na Internet. Ao que a Exame Informática apurou, esse regime sancionatório ainda não foi aprovado pelo Ministério do Planeamento e das Infraestruturas.
A Anacom confirma também que tem vindo a analisar os tarifários Smart Net, WTC e Yorn, no âmbito dos diferentes tarifários de zero rating (oferta de tráfego ilimitado a determinadas apps, para gerar atrativos para os consumidores ou na sequência de acordos comerciais entre operadores e fornecedores de conteúdos) que existem no mercado. Não existe qualquer decisão sobre as práticas de zero-rating até à data – até porque a entidade reguladora tem um poder sancionatório limitado, devido a inexistência de um regime sancionatório para os operadores que não respeitam a neutralidade da Internet em Portugal.
É possível que a inexistência desse regime sancionatório seja desconhecida nos EUA. O que não impediu um político americano de usar o tarifário Smart Net, da Meo, como um exemplo da falta de neutralidade na Internet em Portugal. Tudo começou a 27 de outubro com um tweet do congressista Ro Khanna. A troca de argumentos haveria de continuar em vários sites especializados até chegar a Adit Robertson, redatora da equipa do The Verge, que escreve um editorial a negar que Portugal seja um exemplo de falta de neutralidade e diz que não é muito diferente do que operadores americanos e europeus já fazem.
Ro Khanna, começou por reiterar a oposição ao desmantelamento das leis de neutralidade da Internet nos EUA, ao publicar no Twitter uma imagem com os tarifários Smart Net da Meo (atualmente detida pelo grupo Altice). Em Portugal, a polémica já não é propriamente nova: em março, começaram a circular diferentes acusações nas redes sociais contra o tarifário Smart Net da Meo que depressa se estenderam aos tarifários WTF, da Nos, e Yorn, da Vodafone, que também disponibilizam tráfego ilimitado para algumas apps, sites ou redes sociais, em detrimento de todos os outros serviços concorrentes que operam na Internet (depois de superarem limites de tráfego pré-estabelecidos, os consumidores poderão ter de pagar valores acrescidos para poderem continuar a navegar na Net).
Em março, a Autoridade Nacional das Comunicações (Anacom) anunciou que iria analisar o caso – mas os resultados dessa análise às práticas de zero-rating ainda não são conhecidos, como já fez saber a entidade reguladora. O que não impediu o congressista Ro Khanna de chegar a uma conclusão mais heterodoxa: «Portugal não tem Neutralidade da Net, e por isso acabou com uma Internet distópica à maneira dos operadores de cabo», reiterou o congressista no Twitter.
Em contrapartida, Adit Robertson não tem pruridos em fazer um texto com o título: «Se Portugal é um pesadelo da Neutralidade da Internet, então nós já estamos a viver esse pesadelo». A redatora do The Verge recorda que os tarifários da Meo «não parecem radicalmente diferentes daqueles que os operadores fazem noutros locais. Filosoficamente, é parecido com o zero-rating, em que os operadores disponibilizam tráfego sem custos para apps como a Netflix. Na verdade, a Meo já disponibiliza um zero-rating mais avançado para as suas apps de entretenimento e armazenamento, dando-lhes uma potencial vantagem ainda maior».
Além de reiterar o respeito pelo regulamento europeu da Neutralidade da Net, a Meo lembrando que nenhum app ou serviço da Internet está bloqueado ou tem acesso restringido a determinados tarifários.
«As ofertas Smart Net correspondem apenas a plafonds de tráfego adicionais para determinados conjuntos temáticos de aplicações que mais não são do que o reflexo das preferências dos consumidores portugueses. Estas ofertas são benéficas para os consumidores na medida em que lhes permite uma maior personalização dos pacotes de acordo com os seus perfis de consumo. A Meo orgulha-se de ter sido pioneira no lançamento deste tipo de ofertas em Portugal, havendo múltiplos exemplos de ofertas análogas noutros países como Espanha, Alemanha ou Bélgica, por exemplo», acrescenta a operadora da Altice, por e-mail.
A Meo revela ainda disponibilidade para expandir as condições que distinguem o Smart Net a apps e redes sociais. «Os fornecedores que pretendam ver os seus serviços e aplicações abrangidos por estas ofertas deverão entrar em contacto com a Meo», acrescenmta a operadora.
O zero-rating é uma prática que está longe de ser consensual – e nem o regulamento da Neutralidade da Internet na UE que entrou em vigor em novembro de 2015 sanou as dúvidas quanto à possível ilegalidade. O Regulamento da UE não proíbe a prática e essa é a razão por que a Anacom teve de analisar os tarifários da Meo, Nos e Vodafone que oferecem tráfego ilimitado para algumas aplicações. De resto, tudo leva a crer que essa será a regra a seguir com os eventuais casos de zero-rating que surjam entretanto. Pelo menos, foi isso que a Fátima Barros, anterior presidente da Anacom, fez saber numa pequena entrevista, em junho de 2016 para a Exame Informática, sobre a aplicação do regulamento europeu da neutralidade da Internet.
Nessa entrevista que foi concedida quando ainda não era conhecida a polémica em torno dos tarifários Smart Net, WTF e Yorn, a antiga responsável da Anacom recorda que o zero-rating «não tem de pôr necessariamente em causa a neutralidade da Internet, porque os consumidores têm opções. Mas há situações em que pode criar limitações».
Fátima Barros reiterou nessa ocasião que «o regulamento não proíbe o zero-rating», mas também confirmou que a prática de não contabilizar o tráfego para alguns serviços abre portas a situações de distorção da concorrência: «imagine que há um programa de música e que o meu plano de dados acaba – mas permite-me continuar a usar aquele programa de música (em detrimento da concorrência). Isso é proibido, porque implica a discriminação das outras aplicações. Mas antes de ser alcançado esse limite, não é necessariamente proibido».
O caso Smart Net ainda está em aberto, mas não restam muitas dúvidas: perante a legislação europeia em vigor, a Anacom terá sempre de proceder a uma análise casuística de cada tarifário de zero-rating. Em contrapartida, nos EUA esse tipo de fiscalização está em vias de desaparecer. Ajit Pai, líder da Federal Communication Commission (o equivalente à Anacom nos EUA), já começou a trabalhar para desmontar o regulamento que tornou os EUA um dos países com leis mais restritivas no que toca a práticas que discriminam velocidades, tráfego, marcas, apps, endereços, ou conteúdos, pondo em causa a neutralidade da Internet.
* Com Nelson Marques