Hoje, um utilizador que queira migrar os livros que tem no Kindle, da Amazon, para o Nook, da Barnes & Noble, ou para o iPad, da Apple, depara-se com duas opções: 1) procura na Internet um programa que desbloqueie os sistemas de gestão direitos de autor de obras em formato eletrónico (DRM, de Digital Rights Management); ou 2) solicita à Inspeção-Geral de Atividades Culturais (IGAC) os meios que permitem a desbloquear os sistemas de DRM para situações em que a cópia é legal e está contemplada pela lei. A primeira opção, provavelmente mais popularizada, é ilegal à luz da lei portuguesa e pode ser punida com uma pena de um ano de prisão; a segunda é legal, mas tem um forte constrangimento: mesmo que os portugueses aderissem em massa a esta opção, dificilmente conseguiriam obter os meios necessários para desbloquear o DRM das respetivas bibliotecas. E isto porque apenas um produtor de conteúdos forneceu esses meios à IGAC e está em conformidade com a lei que é aplicada aos produtores de filmes, DVD e livros desde 2004.
Questionada sobre este assunto, a IGAC confirma o desrespeito generalizado pela lei 50/2004, que procedeu a adoção de uma diretiva europeia que reforça os direitos de autor em suporte digital: «Desde 2004 até hoje, existe registo de um depósito de um meio de descodificação ou desencriptação e desde a mesma data até hoje há registo de um pedido de beneficiário para usufruir de tal meio», refere num e-mail enviado para a Exame Informática.
No mesmo e-mail, a IGAC reitera não estar em posição de comentar a viabilidade da lei que exige que todos os consumidores portugueses solicitem à entidade que inspeciona as atividades culturais os meios necessários para fazer uma cópia de uso privado de um DVD ou de um CD. «As questões sobre a avaliação ou exequibilidade de medidas previstas na lei entram no domínio legislativo e a IGAC, enquanto órgão de execução, limita-se a aplicar a lei, pelo que se abstém de considerações que escapam ao seu âmbito de atribuições», refere a IGAC.
Paula Simões, dirigente da Associação Ensino Livre (AEL), conhece bem as cláusulas da versão portuguesa da lei do DRM e garante que «a lei não é cumprida nem é fácil de cumprir a lei». Em fevereiro, a AEL solicitou uma audiência com o secretário de estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, na sequência de um pedido de esclarecimento apresentado por vários deputados na Assembleia da República.
No pedido de audiência, a AEL recorda que a lei, além de não ser respeitada pela população e pelos autores, tem implicações ao nível das compensações que são (ou podem vir a ser cobradas) no âmbito das taxas da cópia privada: «A taxa da cópia privada é uma compensação equitativa por um suposto prejuízo, resultante da diminuição do direito exclusivo do autor. No caso das obras digitais, enquanto os detentores de direitos puderem exclusivamente decidir sobre a utilização legal que da obra faz o cidadão como têm feito nos últimos nove anos através das medidas tecnológicas de proteção, o direito exclusivo permanece intacto, pelo que não pode haver lugar a compensação. Acresce a isto, que a AEL acredita que a taxa que a AGECOP (Associação para a Gestão da Cópia Privada) vem recolhendo, desde 2004, altura em que a neutralização de medidas tecnológicas de protecção passou a ser ilegal, mesmo para a realização das utilizações livres, em CD, CDR, CDRW, DVD, DVDR, DVRW e MiniDisc, e cujos valores podem ser confirmados nos Relatório e Contas, é indevida».
À AEL nunca chegou, até à data, a luz verde para audiência com o secretário de Estado da Cultura.. mas pelo meio, o processo conheceu novo episódio: PCP e BE apresentam projetos de lei que visam acabar (ou reduzir) as penas previstas para quem contorna os sistemas de DRM sem recorrer à IGAC. Num primeiro momento, os projetos de lei são aprovados na generalidade. Em outubro, na discussão da especialidade, os mesmo projetos de lei são chumbados com os votos contra dos deputados do CDS e do PSD. Na origem deste chumbo estará o compromisso dos deputados da maioria que suporta o Governo em esperar por uma nova lei de direitos de autor e da cópia privada que chegou estar agendada para o início de 2013, mas que nunca deu entrada na Assembleia da República.
Apesar do chumbo, há deputados da coligação PSD/CDS que não se reveem na lei do DRM. «Parece-me evidente que a lei não funciona. A intenção é boa, mas não é praticável. Até porque facilmente se encontra no Google algo que permite quebrar os sistemas de DRM», explica Michael Seufert, deputado do CDS.
Seufert é uma das vozes que defende a necessidade de mudança do DRM, mas lembra que há o compromisso com o Governo de esperar pela nova lei dos direitos de autor. Caso se mantenha a atual situação, «o grupo parlamentar do CDS poderá ponderar avançar, autonomamente, com uma proposta de alteração à lei». O deputado do CDS-PP considera que o problema está na arquitetura da lei: «até porque a IGAC não persegue os infratores. Ou seja, há uma banalização da infração e isso tem efeitos a outros níveis».
Mesmo entre os representantes de autores, a lei é alvo de críticas. Paulo Santos, presidente da Associação Portuguesa de Defesa de Obras Audiovisuais (FEVIP), aponta uma justificação para o facto de os produtores de filmes e vídeos desrespeitarem a lei atual: «Os produtores de filmes são quase todos estrangeiros e não acredito que estejam dispostos a isto (a fornecer os meios necessários para a IGAC), porque não é viável e só Portugal tem esta lei iníqua».
Paulo Santos recorda que a mesma lei proíbe os utilizadores de procurarem meios alternativos para contornar o DRM, mas as entidades que representam os direitos de autor também não abrem processos contra esses utilizadores que desbloqueiam, com meios próprios, DVD ao abrigo dos usos previstos pela lei para a cópia privada (migração de conteúdos para novas plataformas, arquivos públicos e todas exceções previstas pelo artigo 75ª do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos).
Na indústria discográfica, também há quem questione da viabilidade da lei. «A forma encontrada pelo legislador está completamente desligada da realidade. A tecnologia (do DRM) está patenteada e é dominada por empresas que não estão sedeadas em Portugal e que não estão interessadas em entregar essa tecnologia a uma entidade administrativa deum País periférico, que tem um peso reduzido em termos de faturação», comenta Eduardo Simões, diretor-geral da Associação Fonográfica Portuguesa (AFP).
Rui Miguel Seabra, presidente da Associação Nacional de Software Livre (ANSOL), diz simplesmente que a atual lei «não tem cabimento», uma vez que ameaça com um ano de prisão quem ousa quebrar o DRM, mas não prevê qualquer punição para as empresas que não depositam os meios que desbloqueiam os sistemas anticópia na IGAC. «É uma grande discrepância: os titulares dos direitos de autor impõem as os limites que quiserem e podem ir além da lei sem serem punidos. Inclusive até podem impor um número de cópias limitado, como o iTunes. Estamos numa situação estranha: a lei não protege os cidadãos do vigilantismo previsto pelo DRM, mas também não há conhecimento de que alguém que tenha sido processado por migrar uma biblioteca do Kindle para o Nook», refere Rui Miguel Seabra, repetindo um exemplo que tem sido dado pela ANSOL quando se trata de ilustrar as limitações da Lei do DRM.
Rui Miguel Seabra recorda ainda outro efeito produzido pela lei: «O DRM afeta o software livre, uma vez que, na prática, torna ilegal qualquer aplicação de software livre que permita fazer cópias de conteúdos».
O software e os jogos de computador não estão sujeitos ao artigo da Lei 50/2004 que exige a entrega dos desbloqueadores de DRM na IGAC para uso da população. O que não impede Luís Sousa, presidente da Associação Portuguesa de Software (ASSOFT), de lembrar que o DRM tende ter um valor cada vez mais relativo para autores de conteúdos e produtor de software: «É uma lei que foi criada por alguém que queria fazer as coisas bem, mas que simplesmente não é aplicável… e se calhar nem os autores nem os utilizadores estarão para aí virados. Aparentemente, o mercado já resolveu esta questão… e o melhor é mesmo não nos preocuparmo-nos com uma lei que é mais ou menos obsoleta. Até porque todas as grandes empresas já começam a apostar cada vez mais em formatos abertos que têm menos limitações para os consumidores».
Hugo Séneca