São mares nunca antes navegados. Perante um impasse político para subir o teto da dívida do governo federal, os Estados Unidos estão em risco de entrar pela primeira vez na sua História em incumprimento. A concretizar-se poderá ser um terramoto para a economia e para os mercados norte-americanos, com ondas de choque no resto do mundo, incluindo Portugal.
Os últimos desenvolvimentos não são motivo para otimismo. Terça-feira, a reunião de duas horas entre a Casa Branca e Kevin McCarthy, líder republicano da câmara dos representantes, acabou sem acordo, provocando uma reação negativa das bolsas. “Teremos de ver algum movimento ou alguma mudança fundamental naquilo que eles estão a fazer”, afirmou Garret Graves, um dos negociadores republicanos. Isto significa que a votação terá de ser feita para a semana, mesmo em cima do limite mais citado de dia 1 de junho, momento a partir do qual poderá deixar de ser possível ao governo americano pagar certas despesas.
Já hoje, McCarthy disse que ia enviar negociadores do seu partido para tentar chegar a acordo com a Casa Branca. “Não vamos entrar em ‘default‘”, garantiu o republicano. “Estamos ainda muito longe numa série de temas. Acho que podemos fazer progressos hoje.”
A possibilidade de um default está a provocar grande nervosismo entre os investidores, onde estes desenvolvimentos se refletem quase imediatamente. “Já se percebem os sinais de alarme nos mercados”, afirmou Janet Yellen, secretária de Estado do Tesouro, acusando os republicanos de tornarem o incumprimento um resultado “quase certo”.
Os republicanos estão a ser pressionados por Wall Street. “As minhas mensagens estão a arder”, admitiu o congressista Patrick McHenry, referindo-se a mensagens de investidores.
Mas afinal o que preocupa tanto Wall Street? O que é o teto da dívida e porque é tão preocupante para os mercados, a economia americana e o resto do mundo?
O que é teto da dívida?
É um limite ao endividamento do governo federal norte-americano. Ele foi criado originalmente em 1917 e estabelece uma linha vermelha aos montantes que pode pedir emprestado (por exemplo, emitindo dívida) para pagar as suas despesas. Estamos a falar de gastos com salários dos trabalhadores do governo federal, apoios sociais ou compra de equipamento militar.
Ele tem sido aumentado ao longo das décadas e está neste momento em 31,4 biliões de dólares (cerca de 29 biliões de euros). Na verdade, até já foi ultrapassado em janeiro, mas foi possível o Tesouro encontrar mais liquidez até estar decidida essa atualização.
Para aumentar o teto da dívida, é necessária a aprovação do Congresso norte-americano, onde não está a ser possível chegar a acordo, uma vez que os democratas perderam o controlo da Câmara dos Representantes. Caso não seja possível aumentar esse limite, o Governo pode ficar sem dinheiro para fazer pagamentos no início de junho, o que constituiria um default (incumprimento), o primeiro da História dos EUA.
Eu já não ouvi falar disto?
Sim. O teto da dívida já foi aumentado 78 vezes desde a década de 40. O momento de que talvez se esteja a lembrar é 2011, quando as negociações foram também muito complicadas, temendo-se, tal como agora, que os Estados Unidos pudessem mesmo entrar em default. As negociações demoraram tanto tempo que, em agosto desse ano, levaram a agência de notação financeira S&P a cortar o rating dos EUA, tirando-o de AAA.
Esta situação tem alguns paralelos com essa. Estávamos a meio do primeiro mandato de Barack Obama (Joe Biden era o Vice-Presidente) e os republicanos tinham acabado de conquistar o controlo da Câmara dos Representantes, após as eleições intercalares de 2010. Na altura, o movimento Tea Party tinha ganhado influência junto do GOP, empurrando-o para visões muito mais conservadoras de gestão das contas públicas, nalguns casos com posições próximas dos libertários. Hoje, a radicalização do Partido Republicano tem outra natureza.
Porque é que existe um problema?
Uma vez que não existe uma maioria democrata no Congresso que permita aprovar a subida do teto da dívida, a Casa Branca tem de negociar com a liderança republicana, que pretende cortes em rubricas na despesa em troca da sua aprovação.
Seria sempre uma negociação sensível em qualquer contexto. Não só porque os republicanos assumem a sua desconfiança pelo agravamento da despesa (pelo menos quando estão na oposição), como é uma oportunidade para um partido longe do poder avançar com a sua agenda. Contudo, a enorme influência do “trumpismo” no GOP torna as coisas ainda mais complicadas. Apesar de ter perdido a eleição de 2020 e de muitos dos candidatos que apoiou em 2022 terem acabado derrotados, o peso de Donald Trump no Partido Republicano é maior que nunca. E o ex-Presidente não quererá dar uma bolha de oxigénio àquele que poderá ser o seu adversário nas eleições de novembro de 2024.
Em que ponto estão as negociações?
Os dois lados estão numa espécie de jogo de ver quem pisca primeiro os olhos. Nenhum quer ser culpado por um incumprimento que atire a economia para o charco. Os republicanos tinham proposto aceitar uma subida em troca de manter os níveis de despesa em departamentos cruciais do Estado, limitando depois o seu crescimento a 1% durante o resto da década.
São condições difíceis de engolir para Joe Biden, cuja agenda assenta em medidas com custo significativo, como é o caso do perdão da dívida estudantil ou a transição energética no campo automóvel. Abdicar dessas medidas é esvaziar o entusiasmo da sua base e perder armas no combate aos descontentamento popular, tornando também menos provável uma reeleição no próximo ano.
Recorde-se que, enquanto Donald Trump foi presidente, o Congresso aprovou três subidas do teto da dívida. Nenhuma delas exigiu cortes na despesa.
O que pode significar para os EUA?
É difícil de responder, uma vez que nunca aconteceu. Pagamentos seriam interrompidos a trabalhadores, pensionistas, empresas e outras organizações que dependam de dinheiro público. Se isso significar também incapacidade de pagar juros – violando o seu compromisso com os credores – estaríamos perante um default, com consequências potencialmente desastrosas.
Já houve alguns acontecimentos em que é debatível se realmente houve um incumprimento (1814, durante a guerra com o Reino Unido, ou em 1933, quando Roosevelt recusou pagar aos credores em ouro, conforme o acordado). Mais recentemente, em 1979, os EUA falharam mesmo um pagamento de 122 milhões de dólares, justificado na altura com um problema tecnológico. Alguns investidores esperaram dez dias para receber, mas todos acabaram por ser pagos e com juros.
Nenhum desses episódios é comparável. Ser incapaz de cumprir obrigações da dívida por tempo indeterminado poderia representar um choque dramático para a dívida norte-americana, que todos os dias negoceia montantes de cerca de 500 mil milhões de dólares.
Caso se falhe apenas um pagamento, as agências de rating talvez o classifiquem como “default seletivo”. Além do previsível downgrade do governo americano, é possível que haja um efeito-dominó, com outras agências que dependam de fundos do governo federal, de hospitais a empresas do ramo militar. Pode até chegar a outros Estados, como Israel, em que parte da dívida tem garantia dos EUA, antecipa o “New York Times”, citando a Moody’s.
A consequência mais imediata seria o agravamento dos juros que os EUA pagam para se financiarem, o que acabaria por contagiar o que empresas e famílias pagam junto de instituições financeiras. Se pedir emprestado fica mais caro, as consequências económicas são previsíveis. Estimativas apontam para quebras do PIB, destruição de emprego e colapso do mercado de capitais.
A Casa Branca prevê que mesmo um default de curto prazo teria um impacto negativo, penalizando em 0,6% o PIB e destruindo 500 mil postos de trabalho. Se o incumprimento fosse mais prolongado do que apenas um “blip” temporário, os efeitos poderiam ser destruidores: quebra de 6% do PIB e oito milhões de americanos perderiam o emprego. Um impacto semelhante ao da crise financeira de 2008. Na sua última estimativa, o UBS prevê que o S&P 500 poderia afundar 20%.
São tudo conjeturas. Todos consideram que haveria consequências sérias, mas existem dúvidas sobre a dimensão do desastre. Em última análise, o Tesouro poderia escolher continuar a pagar juros, abandonando outros gastos, mas politicamente poderia ser difícil de justificar.
Que impacto pode ter no resto do mundo?
A primeira é relativamente fácil: quando a maior economia do mundo espirra, o resto do mundo constipa-se. Uns Estados Unidos em recessão são um problema para todos.
Nos mercados financeiros, os títulos de dívida norte-americana são pilares centrais. Os títulos do Tesouro americano são usados como colateral para empréstimos e como um ativo de refúgio para muitos investidores. Se forem desestabilizados, isso provocará réplicas noutras regiões. Poderia também intensificar um efeito recente de perda de peso do dólar, o que influenciaria provavelmente o preço de bens energéticos e outras matérias-primas. A moeda norte-americana é tão influente que países chegam a ter de fazer pagamentos com ela em vez da sua, frequentemente desvalorizada.
Outro dos principais efeitos tem a ver com perda de confiança, podendo afetar o investimento e o comércio internacional. Num cenário mais negativo, o mundo poderia mesmo mergulhar numa recessão. “A economia mundial, já confrontada com uma incerteza tão grande, poderia dispensar” negociações intermináveis sobre o limite da dívida, avisou Kristalina Georgieva, num fórum em Doha.
Após a dura crise pandémica, a que se seguiu uma recuperação manchada por problemas nas cadeias de abastecimento, choque no petróleo e gás, invasão da Ucrânia pela Rússia e uma inflação galopante que começava agora a resolver-se, esta crise ameaça colocar a economia mundial novamente na estaca zero.
“Se a confiança nos títulos [do Tesouro] ficar fragilizada por algum motivo, isso provocaria ondas de choque pelo sistema… e teria consequências enormes para o crescimento mundial”, alertou Maurice Obstfeld, ex-economista-chefe do FMI e atual investigador do Instituto Peterson, citado pela Associated Press. “A economia mundial está num momento bastante frágil. Acrescentar-lhe uma crise sobre a credibilidade das obrigações dos EUA é incrivelmente irresponsável.”
Portugal pode ser afectado?
Por maioria de razão, Portugal seria obviamente um dos países afetados. A União Europeia tem ligações comerciais e financeiras estreitas com os Estados Unidos, o que significa que seria um dos blocos mais afetados. E, claro, uma Europa em crise é uma crise em Portugal.
A economia portuguesa tem apresentado bons números nos últimos meses, mostrando-se como uma das mais dinâmicas da UE – essencialmente graças ao turismo -, o que tem levado organismos internacionais como o FMI e a Comissão Europeia a reverem em alta as estimativas de crescimento, fixando-as agora em 2,6% e 2,4% (o Governo antecipava 1,8%). Um choque relevante traduziria-se num dinamismo muito menor da atividade, com tradução num mercado de trabalho que já dá sinais contraditórios (mais desemprego, mas também mais emprego). Ou seja, podemos esperar mais gente sem trabalho.
Basta pensar no preço das matérias-primas. O recuo observado na energia tem sido um dos principais fatores por trás do alívio sentido na inflação. Um novo agravamento iria sentir-se imediatamente no bolso dos portugueses.
No capítulo dos mercados financeiros, Portugal tem sempre uma posição frágil, enquanto um dos países mais endividados do mundo, com uma dívida ainda em três dígitos do PIB. No entanto, por via do crescimento da economia, da inflação elevada e do conservadorismo orçamental do Governo, a dívida pública tem caído rapidamente e o País não tem sido tão apertado como outros no spread dos seus títulos. Mas é como um barco em alto mar. Se a violação do teto da dívida é um tsunami, pode valer de pouco termos coletes salva-vidas. Uma renovada vaga de pressão num contexto de juros já elevados pode naufragar as contas portuguesas.