O responsável máximo da Reserva Federal dos Estados Unidos estava a ser pressionado pelos congressistas norte-americanos. “Não há nada mais insidioso que um país possa fazer aos seus cidadãos do que depreciar a sua moeda”, acusava um representante republicano. Na mão tinha um exemplar do Wall Street Journal, onde se podia ler na capa: “Cresce o medo da inflação”. E exigia explicações do banco central. “Uma dinâmica de inflação pode materializar-se muito rapidamente e ser muito dolorosa de erradicar quando se instala”, avisava o congressista.
Esta troca de argumentos podia perfeitamente ter ocorrido em 2021, mas ela já tem dez anos, tendo colocado frente-a-frente Ben Bernanke, presidente da Fed entre 2006 e 2014, e Paul Ryan, um “falcão dos défices”, que seria escolhido por Mitt Romney para candidato à vice-presidência nas eleições de 2012. Tal como hoje, muitos políticos e economistas temiam naquela altura que os estímulos monetários e orçamentais colocados no terreno no pós-crise financeira fizessem sobreaquecer a economia, arriscando provocar uma escalada descontrolada dos preços. Na verdade, desde essa audição, a inflação americana esteve mais anos abaixo de 2% do que acima.
Essa foi apenas uma das várias ocasiões das últimas décadas em que o medo de uma subida repentina de preços não se concretizou. Avisos semelhantes foram feitos em 2017, quando Donald Trump e o Congresso controlado pelos republicanos aprovaram um corte de impostos drástico – que beneficiou essencialmente as empresas e os contribuintes mais ricos – apesar de o desemprego estar já em níveis muito baixos. Mais uma vez, *som de grilos*.
Um português ou americano com 30 ou menos anos viveu sempre num mundo de preços controlados. Não que isso tenha eliminado este fantasma da nossa imaginação coletiva. Tem dado jeito, por exemplo, para continuar a vender revistas:
Hoje, ouvimos novamente muitos dos mesmos argumentos desde que Joe Biden apresentou o seu programa de estímulo de 1,9 biliões (!) de dólares. Praticamente a dimensão da economia italiana. Os bancos centrais deixaram os juros em mínimos e mantiveram os seus mega-programas de compra de ativos, sendo agora acompanhados pela injeção de biliões de euros de estímulo à economia pela via orçamental, através de apoios sociais, ajudas às empresas e investimento público. Não poderá a inflação explodir?
O principal defensor desta tese é Larry Summers, ex-secretário de Estado do Tesouro, que antecipa três cenários, todos com a mesma probabilidade de se concretizarem: a economia cair numa situação de crescimento anémico com inflação (“estagflação”); a Fed ser obrigada a subir os juros para combater a subida dos preços, provocando uma recessão; e, por último, apenas com 33% de hipóteses de concretizar, um crescimento rápido com inflação controlada. “Esta é a política macroeconómica menos responsável que já tivemos nos últimos 40 anos”, afirmou Summers. E ele não está, de todo, sozinho nos seus receios e interrogações. Mas não faltam economistas muito vocais na outra trincheira. Até o presidente da Fed se envolveu. É hoje o debate mais animado da macroeconomia.
Na edição desta semana da VISÃO, exploramos os motivos que podem levar a um regresso em força da inflação, mas também os fatores que podem esvaziar o balão do preços e condenar os arautos de uma espiral inflacionária a voltar a falhar. À primeira vista, pode parecer uma discussão reservada para geeks de folhas de cálculo, mas dependendo de quem tenha razão a saída desta crise pode ser mais rápida ou mais dolorosa.
No artigo publicado na VISÃO, apoiámo-nos na opinião de três economistas, a quem decidimos fazer uma pergunta mais provocadora. O facto de tantas previsões sobre a inflação terem falhado significa que subidas descontroladas dos preços deixaram de ser um risco real para economias avançadas, como Estados Unidos e Portugal? Talvez já tenha reparado que os exemplos dados têm normalmente muitas décadas (República de Weimar) ou vêm de países em desenvolvimento (Zimbabué e Venezuela). Será que “resolvemos” a equação da inflação?
“É uma possibilidade”, responde Maria Demertzis, vice-diretora do think tank Bruegel. “O que temos visto nos últimos 30 anos é que fomos capazes de gerir as expetativas, através da credibilidade [dos bancos centrais]. Eu acredito numa meta de inflação de 2%, porque o banco central diz que é 2%.”
Demertzis escreveu recentemente sobre o tema, concluindo que não identifica riscos de inflação nos EUA ou na zona euro. “Os mercados não acham que o grande apoio orçamental nos EUA irá gerar um impacto inflacionário. Na Zona Euro, espera-se que a inflação acelere este ano por motivos de curto prazo e que estão relacionados com a reversão de fatores deflacionários [por exemplo, descidas temporárias do IVA na Alemanha]. Não houve anúncios recentes de estímulo orçamental na Zona Euro e não há razão para acreditar que os riscos inflacionários se materializem.”
Faz sentido continuar a apontar para imagens de crianças a brincar com notas na Alemanha dos anos 20? “Alemanha de Weimar, Hungria pós-II Guerra, Zimbabué de Mugabe e Venezuela Bolivariana têm em comum a completa falta de independência do banco central e a utilização excessiva de senhoriagem para financiar os gastos do Estado. Penso que estamos muito longe de arranjos institucionais deste género em qualquer democracia desenvolvida”, nota Miguel Faria e Castro, economista da Reserva Federal de St. Louis. “Aqui penso que é importante distinguir cooperação voluntária do banco central com autoridade orçamental (que está a ocorrer e deve ocorrer durante grandes crises, com precedentes nas guerras mundiais) e perda de independência do banco central. São colapsos institucionais desse género que, historicamente, semeiam inflação descontrolada. Não há dúvida que a independência dos bancos centrais das autoridades orçamentais é absolutamente fundamental e é provavelmente a lição mais importante de política macroeconómica no período pós-Bretton Woods.”
Alemanha de Weimar, Hungria pós-II Guerra, Zimbabué de Mugabe e Venezuela Bolivariana têm em comum a completa falta de independência do banco central e a utilização excessiva de senhoriagem para financiar os gastos do Estado. Penso que estamos muito longe de arranjos institucionais deste género em qualquer democracia desenvolvida
Miguel Faria e Castro
Se quisermos mergulhar numa explicação mais técnica, Miguel Faria e Castro também nos pode ajudar: “Milton Friedman famosamente disse algo como “inflação é, sempre e em qualquer lugar, um fenómeno monetário”, querendo implicar que há uma correlação muito próxima entre massa monetária e inflação, e esta última deriva do crescimento da primeira em excesso, do crescimento do produto ou da atividade económica. [Thomas] Sargent e [Neil] Wallace refinaram esta ideia, mostrando que “inflação persistentemente elevada é, sempre e em qualquer lugar, um fenómeno orçamental”. Portanto, se flutuações em torno do alvo de inflação podem ser atribuídas à conduta de política monetária, grandes aumentos de inflação encontram-se historicamente associados a situações de interferência governamental na conduta da política monetária, o que tende a ocorrer em países e eras de grandes crises e/ou fracas instituições.”
Ricardo Reis tem mais dúvidas que a equação da inflação esteja totalmente resolvida. Para o professor da London School of Economics, só porque não nos confrontámos recentemente com esse problema, não significa que ele não possa surgir se decidirmos mexer em alguns dos fatores que mantiveram a inflação galopante como uma memória distante. “Não, não deixou de ser um “problema”. Simplesmente, a política monetária, apoiada nos grandes avanços da teoria macroeconómica das últimas três décadas, e num apoio institucional forte nas economias avançadas em torno de bancos centrais independentes, tem feito um trabalho extraordinário em manter a inflação estável”, responde por email.
Os seus receios são uma Fed mais permissiva com alguma inflação momentânea, o desejo de usar os bancos centrais para atingir mais objetivos para além da estabilidade de preços e o nível de dívida pública. Podemos “facilmente ver o “problema” a re-aparecer”, tendo em conta que “(i) a Reserva Federal mudou o seu mandato em Setembro reduzindo o ênfase na inflação como objetivo, (ii) o consenso institucional em torno do controlo da inflação está cada vez mais fraco, substituído por um desejo em usar o banco central para combater as alterações climáticas ou a desigualdade, (iii) a dívida pública está no nível mais alto de sempre (já acima de 1945).”
Não, não deixou de ser um “problema”. Simplesmente, a política monetária, apoiada nos grandes avanços da teoria macroeconómica das últimas três décadas, e num apoio institucional forte nas economias avançadas em torno de bancos centrais independentes, tem feito um trabalho extraordinário em manter a inflação estável
Ricardo Reis
Para já, o debate é essencialmente norte-americano, mas é difícil encontrar maior medo da inflação do que nalguns dos países que integram a Zona Euro (*cof cof* Alemanha *cof cof*). O debate tem sido menos intenso no espaço comunitário porque o estímulo orçamental foi, até agora, bastante inferior ao dos Estados Unidos. Contudo, isso não significa que não possamos entrar em terreno bastante desconfortável. Neste momento, o BCE dá uma ajuda preciosa aos países, permitindo que se endividem a juros muito baixos (Portugal agradece) sem comprometer o seu mandato de estabilidade dos preços. Mas isso pode não se verificar para sempre.
“Imaginem um cenário de inflação em que o BCE tem de parar a compra de ativos e aumentar juros. Teria um conflito entre estabilizar os preços, o seu mandato principal, e preservar a União”, antecipa Demertzis. Além disso, algumas das políticas do BCE já foram desafiadas no Tribunal Constitucional alemão. Este cenário de necessidade de controlar a inflação seria uma boa razão para o voltarem a fazer, desta vez talvez com mais argumentos. “É embaraçoso, mas é possível.”
Imaginem um cenário de inflação em que o BCE tem de parar a compra de ativos e aumentar juros. Teria um conflito entre estabilizar os preços, o seu mandato principal, e preservar a União
Maria Demertzis
É até possível que tenhamos alguns meses de nervosismo pela frente, com a inflação a dar alguns sinais de movimento na zona euro, puxada pelos bens energéticos. Vítor Constâncio já avisou que poderemos ter picos temporários. Responsáveis alemães, como Axel Weber, estão atentos. “Subidas da inflação que não sejam compensadas por aumentos correspondentes nas taxas de juro da política monetária podem colocar em risco a estabilidade da moeda”, avisou o ex-governador do banco central alemão e hoje presidente do UBS.

Ao mesmo tempo, as yields da dívida norte-americana e europeia dão alguns sinais de ligeiro agravamento. Preocupante? “Economicamente não são números relevantes. Está a pedir-me para explicar ruído. Não consigo”, sintetiza Demertzis.
Faria e Castro também considera esses movimentos “perfeitamente normais”, refletindo “expetativas fortes de crescimento”. “Penso que a principal razão pela qual estes movimentos “assustam” os mercados é porque passámos uma década inteira com movimentos muito anémicos de uma “yield curve” bastante deprimida. É possível que, em vez de um novo normal, estes últimos 10 anos tenham sido apenas um período de transição, e estamos agora de facto a regressar ao “balanced growth path”. A “yield curve” [representação gráfica das taxas de juro dos títulos de dívida com diferentes maturidade] comportou-se de forma semelhante durante o período da Grande Moderação (entre a era Volcker e a crise financeira).Portanto, em princípio, estes movimentos parecem-me saudáveis.”

Porém, reconhece que é possível fazer uma interpretação menos benigna, vendo estas subidas, embora ainda ligeiras, como um reflexo de “expectativas de inflação elevada no longo prazo”, mas “isto não parece ser totalmente consistente com os movimentos de preços de outros ativos e derivados que se relacionam com expectativas de inflação”.
Também aqui, Ricardo Reis é mais cauteloso. Estes sinais “devem ser levados a sério”. “Os investidores nos mercados financeiros põem hoje uma probabilidade relativamente alta na inflação subir para os 3-4%. Os mercados estão muitas vezes errados, mas às vezes também estão certos.”
Mistérios por desvendar
Um dos problemas com a inflação é que nós não sabemos *exatamente* a partir de que ponto é que ela começa a subir. A água ferve a 100º, mas a Economia não é uma ciência exata. Não é por falta de esforço. Os bancos centrais dedicam muito tempo e recursos a tentar responder a essa pergunta. Recentemente, têm assumido que esses cálculos têm limitações. Em especial no que diz respeito à famosa NAIRU (Non-Accelerating Inflation Rate of Unemployment), a taxa de desemprego que não provoca uma subida dos preços. Teoricamente, se descer abaixo desse nível, a inflação começa a mexer. Como a NAIRU não é observável, a Fed tem de a estimar, procurando agir antes de o desemprego chegar ao ponto em que faça acelerar os preços. O problema é que essa aceleração parece nunca chegar.
Este diálogo, de 2019, entre a democrata Alexandra Ocasio-Cortez e o presidente da Fed, Jerome Powell, é interessante.
AOC: A taxa de desemprego caiu três pontos desde 2014, mas a inflação não está mais alta hoje do que há cinco anos. Dado este facto, concorda que a estimativa da Fed para a taxa de desemprego mais baixa e sustentável era demasiado alta?
Powell: Absolutamente.
Esta reflexão é decisiva se quisermos pensar nos limites para os gastos do Governo que está agora a ser debatido nos EUA. A partir de que ponto é que o estímulo da economia é excessivo e acaba a gerar inflação descontrolada? Sabemos pouco sobre isso.
“Não existe forma de sabermos antes quão grande pode ser a dívida pública antes de a inflação se tornar um problema”, escreve David Andolfatto, vice-presidente da Fed de St. Louis.
O cronista Noah Smith descreve a situação da seguinte forma: “quando o governo pede mais e mais dinheiro emprestado à Fed e gasta esse dinheiro, é como se o nosso país estivesse a atravessar um corredor infinito até um buraco invisível. Sabemos que o buraco está algures à nossa frente, mas não fazemos ideia quanto temos de andar para cair nele”. Mas quando caímos numa situação de hiperinflação é absolutamente destrutivo.
Smith cita o mesmo Sargent já referido por Faria e Castro, apontando para o paper “The Ends of Four Big Inflations”, como um dos dos mais importantes estudos para compreender o fenómeno, mas que não nos dá todas as respostas. Como saber que estamos perto? O nível de défice orçamental é relevante? Ou apenas quando é financiado pelo banco central? O tipo de despesa faz diferença? Porque é que o Japão não tem inflação?
O que sabemos é que a nossa confiança e aquilo em que acreditamos é muito importante para o comportamento dos preços. A nossa convicção sobre a evolução de longo prazo da inflação está ligada à nossa opinião sobre a capacidade do banco central e, subjacente a isso, a confiança no processo político que garante essa capacidade à autoridade monetária. Um pouco o que dizia antes Demertzis: eu confio na meta de 2%, porque o banco central me diz que a inflação será 2%.
Será que essa convicção pode mudar? Talvez. Estamos num momento de grandes mudanças na forma como olhamos para a economia e para as contas públicas, com cada vez mais debate sobre a necessidade (ou não) de relativizar os perigos dos défices e da dívida. O mainstream económico já estava a mudar a Covid-19 parece ter acelerado essa transformação. Além disso, teorias mais radicais têm-se tornado mais populares, principalmente à esquerda, como é o caso da Modern Monetary Theory ou MMT, que argumenta que Estados que controlem a própria moeda não têm limites financeiros para aquilo que podem gastar (isso não significa que não existam outros limites, mas fica para um próximo post!).
O coração do debate
Quanto ao debate sobre se os estímulos monetários e orçamentais podem puxar pela inflação, o artigo da VISÃO aborda melhor esse problema. Mas deixo aqui as respostas completas dos três economistas com quem falámos a duas perguntas: (1) A argumentação de Larry Summers de que enfrentamos um sério risco de inflação faz sentido? (2) Que motivos existem para que as suas previsões não se concretizem?
RICARDO REIS
1 – Sim, faz sentido. Não quer dizer que seja o cenário mais provável, e aliás acho que não é. Mas é um argumento logicamente correto e coerente. Por um lado, há um pacote orçamental gigantesco, muito acima do que seria preciso para apenas recuperar a atividade económica para a sua capacidade produtiva e que, por isso, terá tendência a levar a um aumento dos preços. Por outro lado, um banco central dos mais “pomba” de que há memória no que diz respeito ao que afirma ser a sua tolerância para com inflação alta nos próximos anos, e com uma dívida tão alta (e de tão curta duração) que qualquer aumento de taxas de juro teria um grande impacto orçamental.
Há um pacote orçamental gigantesco [e] um banco central dos mais “pomba” de que há memória no que diz respeito ao que afirma ser a sua tolerância para com inflação alta nos próximos anos
2 – As expectativas da inflação estão baixas e fixas perto de 2% há mais de duas décadas. Mesmo que a inflação suba para 3 ou 4%, se as pessoas continuarem a acreditar que vai baixar para 2% rapidamente, e a decidirem preços e salários com essas expectativas dos 2%, então essa âncora das expectativas garante que a inflação não subirá muito. Para além disso, se quando a inflação subir aos 4%, a Reserva Federal reagir agressivamente e reafirmar a sua independência, então com a subida das taxas de juro, a inflação permanecerá sob controlo.
MIGUEL FARIA E CASTRO
1 – Teoricamente há risco de sobreaquecimento. Convém lembrar que nos encontramos em mares nunca antes navegados, com um balanço do banco central sem precedentes históricos (quase 35% do PIB, sendo que esteve quase sempre abaixo dos 5% até 2008), e prestes a incorrer num estímulo orçamental sem precedentes. Esta combinação de política monetária acomodativa e enorme estímulo orçamental conduz, à luz de qualquer teoria macro que eu conheço, a produto acima do potencial (“sobreaquecimento”), o que gera inflação. Há, contudo, três pontos que convém realçar: (i) não é óbvio para mim que essa inflação seja descontrolada, dado que inflação descontrolada tende a surgir, historicamente, em contextos muito específicos de perda de independência do banco central que não me parece ser o caso actual dos EUA (ou de qualquer outra economia desenvolvida), (ii) muitos dos que defendem que há possibilidade de inflação descontrolada também defendiam que existia esta possibilidade quando a Fed começou a levar a cabo políticas não-convencionais, como QE, em 2008, e essa inflação nunca se realizou. Penso que a principal razão por trás destas “previsões falhadas” é o facto de estas pessoas recearem que se repita uma situação como a estagflação dos anos 70 nos EUA. Mas a situação hoje é bastante diferente daquela dos anos 70: (a) a Fed é muito mais independente, e a sua independência é relativamente consensual de um ponto de vista político; (b) a estrutura da economia é bastante diferente, sendo que estamos hoje a partir de uma situação em que a inflação se tem encontrado estagnada por uma década por diversas razões; (c) os próprios choques a que a economia se encontra sujeita são diferentes, sendo que nos anos 70 tínhamos um claro choque negativo de oferta (o choque petrolífero), enquanto que actualmente é mais provável que choques negativos de procura predominem. (iii) a Fed adotou, como parte do seu novo framework, uma política de average inflation targeting, permitindo desvios temporários simétricos da inflação do seu alvo. Isto quer dizer que poderá permitir alguns aumentos acima dos 2%, mas se se tornar claro que a inflação está a ficar fora de controlo, voltará a intervir para a controlar. Como disse acima, estamos com inflação estagnada há uma década, e portanto não é claro que alguma inflação acima do alvo seja necessariamente uma coisa má.
Estamos com inflação estagnada há uma década, e portanto não é claro que alguma inflação acima do alvo seja necessariamente uma coisa má
2 – Por um lado, a situação da pandemia traduziu-se parcialmente num choque negativo da oferta agregada. Com a normalização e o levantamento do confinamento, será de esperar que a oferta se volte a expandir, o que puxa a inflação para baixo. Por outro lado, a taxa de participação no mercado de trabalho caiu consideravelmente e ainda está longe do que era antes da pandemia (61.4% vs. 63.4%). Isto leva várias pessoas a julgar que ainda existe bastante “slack” no mercado de trabalho, e que há espaço para aumentar bastante o emprego antes que isso comece a causar inflação.
MARIA DEMERTZIS
1 – Se me perguntar se o estímulo orçamental faz sentido nos EUA, sim faz. Ainda estamos a meio da pandemia. Os EUA não têm um Estado Social, portanto os números têm de ser grandes. O estímulo tem de ser dirigido, mas acho que os 1,9 biliões são bastante dirigidos: ou vai para despesas relacionadas com a pandemia ou vai para pessoas vulneráveis. O outro argumento é que se me der um cheque extra eu não o vou gastar. Portanto, de onde vem a pressão inflacionista? Só viria de quem precisa de o gastar para comprar comida, roupa para as crianças… isto é simplesmente manter o pagamento de despesas. Custa-me perceber de onde viria esta inflação.
[O desenho do estímulo e a natureza desta crise impedem que o crescimento da inflação seja sustentado?]
2 – Sim, porque é que seria sustentado? Vamos imaginar que há inflação. A Fed passou a ter objetivos de inflação média, o que significa que se a inflação esteve abaixo do objetivo por muito tempo, pode tolerar que ela esteja algum tempo acima. Há espaço. Portanto tudo aponta para que não seja um problema.
A Fed passou a ter objetivos de inflação média, o que significa que se a inflação esteve abaixo do objetivo por muito tempo, pode tolerar que ela esteja algum tempo acima
Independentemente de quem tenha razão neste debate – e poderá demorar um par de anos até termos um veredicto – a verdade é que uma grande fatia da população nunca sentiu na carteira o peso da inflação. Quem esteja na casa dos 30 e viva na zona euro ou nos EUA apenas se lembra de uma vida de preços controlados. “Há cinco anos, ainda usava os mesmos modelos e explicava a narrativa do ‘medo da inflação’. Olhei para os meus alunos e lembrei-me de que eles nunca tinham visto inflação na sua vida”, conta Demertzis. “A geração mais jovem terá um condicionamento diferente. E o medo da deflação – que, na minha opinião, é mais grave – vai mudar a forma como olham para os preços.” 2021 e a Covid-19 podem marcar o curso deste debate.