O autor de “Moneyball” e “The Big Short” foi inspirado, ao mesmo tempo, pelo desporto juvenil e pela crise financeira. Ao ver a fúria descontrolada dos pais dos jogadores com os árbitros dos seus filhos e as gritantes falhas de regulação e na crise de 2008, Lewis percebeu que os EUA e o mundo tinham um problema com árbitros. Quase uma década mais tarde, como um bom jornalista em 2019, decidiu fazer um podcast sobre isso.
Chama-se “Against the Rules” (contra as regras) e explora várias situações em que o nosso desdém pelos árbitros tem aumentado, acabando por se tornar num perigo para a sociedade. À primeira vista, pode parecer aborrecido, mas estes casos estão por todo o lado. O primeiro episódio chama-se “Ref, You Suck!” e lida com uma realidade que conhecemos bem em Portugal: o ódio aos árbitros (nós de futebol, no podcast, o basquetebol). Todos os dados sugerem que os árbitros são cada vez melhores e que há cada vez menos erros cometidos. Na NBA há até uma espécie de VAR, essencialmente para situações nos últimos 2 minutos do jogo ou avaliação de conduta antidesportiva. Ainda assim, os jogadores parecem cada vez mais descontentes com a arbitragem. Porquê?
“Como é que te sentiste quando o árbitro tomou aquelas decisões?”, pergunta Lewis ao seu filho de 11 anos, jogador de basket. “Muito zangado”, responde o miúdo.
“E sentes-te melhor agora?” “Não.”
“Como é que te sentes?” “Parece que alguém te está sempre a bater no ombro e a dizer falta, falta, falta, falta…”
O podcast salta das experiências pessoais para as evidências científicas. Lewis fala com Dacher Keltner, professor em Berkeley, acerca de uma experiência que ele fez: colocar estudantes da universidade a tentar atravessar a estrada e observar o comportamento dos condutores, classificando-os conforme o valor de mercado dos carros que conduzem. Os resultados? Os carros mais baratos pararam todos (!) na passadeira, enquanto 45% dos carros mais caros ignoravam o peão e aceleravam. Este estudo inspirou muitos outros com conclusões semelhantes (por exemplo, os ricos tendem a tirar mais doces grátis das taças).
O que é que isto tem a ver com basket? A tensão com os árbitros na NBA vem essencialmente das maiores estrelas do desporto. Há uma desigualdade profunda dentro do campo. Isto lembra-lhe alguma coisa acerca do futebol português? A divisão entre os “grandes” e as outras equipas não funciona um pouco assim? No caso da NBA, a maior objetividade na tomada de decisões enfureceu as estrelas, os treinadores e os fãs, porque lhes retirou poder e privilégio.
“A vida americana tem pelo menos uma coisa em comum com o basket: a autoridade dos seus árbitros está a ser atacada. E quanto tem um árbitro fraco, tem um grande problema, porque um árbitro fraco pode ser comprado, intimidado ou ignorado”, explica Lewis. “Um dia, acorda num mundo que é não apenas injusto, como manipulado. Incapaz de se tornar justo, porque quem beneficia da injustiça tem o poder para a preservar.”
Num outro episódio, Lewis concentra-se na regulação financeira e no drama das dívidas estudantis. Numa das passagens, é referido que as empresas que gerem essas dívidas, têm um limite de 7 minutos para os telefonemas dos seus clientes, por vezes, desligando propositadamente as chamadas. É a “regra dos 7 minutos”. Trabalhadores pobres endividados que tinham de tramar outros trabalhadores pobres endividados para não perderem o bónus salarial.
Há episódios sobre avaliação de obras de arte, setor financeiro, agências de rating, gramática, jornalismo, redes sociais e acerca do perfil ideal para ser árbitro. O problema é transversal: precisamos cada vez mais de árbitros e é cada vez mais difícil encontrá-los e deixá-los fazer o seu trabalho. Como confessa o filho de Lewis na sua mensagem aos árbitros, há cada vez mais gente a pedir-lhes: “não escolham lados, a não que seja o meu lado.”
Em baixo, segue o excerto de uma entrevista que a VISÃO fez a Michael Lewis acerca do seu novo livro, “O Quinto Risco”, mas que não coube na versão original impressa. É uma passagem apenas dedicada ao podcast.
Porque decidiu fazer este podcast sobre árbitros?
Decidi fazê-lo porque as pessoas que gerem a empresa de podcasts, Jacob Weisberg e o Malcolm Gladwell são meus amigos e achei que seria divertido fazer algo com os meus amigos. Eles são os meus editores. A minha vida toda é um desporto individual, escrever livros. Depois, a questão era sobre o que fazer. Eu estava muito interessado naquilo que aconteceu às figuras de autoridade na vida americana, que estão a ser atacadas há décadas. Esta autoridade tem sido atacada nas últimas décadas. Por onde quer que olhasse, via este comportamento louco em relação aos árbitros, estas pessoas que estão lá para garantir a aplicação da justiça. No primeiro episódio, mostro que os árbitros estão muito melhores do que antes, porque treinam melhor, têm melhor tecnologia, cometem menos erros… É claro que a arbitragem é melhor e, ao mesmo tempo, as pessoas ficam cada vez chateadas com os árbitros. É um mistério que tem de ser explicado. Acho que o podcast funciona como uma longa explicação.
Porque é assim?
É no interesse de quem minar a autoridade dos árbitros? Há várias respostas, mas a principal tem a ver com uma resposta às desigualdades. Quando tem pessoas em posições muito privilegiadas e com muito muito poder, a última coisa que quer é um árbitro honesto, porque significa que não podem passar por cima das pessoas que não têm poder. É esse o início da resposta.
A inspiração não foi a forma como seu filho se comportava nos jogos de basket?
[risos] Bom, foi antes disso. A inspiração foi anterior. Tenho duas filhas, uma de 21 e outra de 17 e ambas são jogadoras de softball [parecido com o basebol]. Costumava treinar a equipa delas e o maior problema nos jogos eram os pais que ficavam chateados com os árbitros. Comportavam-se mal e eram expulsos de jogos. Eu não queria acreditar que estava num jogo de uma miúda de 9 anos e os pais estavam a ser expulsos dos jogos devido às coisas que diziam ao árbitro. Porque é que as pessoas acham que os árbitros estão sempre contra eles? Podem achar que o árbitro é OK, mas um lado dirá sempre que o árbitro estava totalmente contra ele e o outro lado pode dizer o mesmo. A psicologia disto era bizarra. Os árbitros estão a tentar fazer o seu trabalho, podem cometer erros, mas são aleatórios. Quem pense nisso, sabe que é esse o caso. Mas as pessoas acham que estão a ser vítimas de uma grande injustiça. Depois da crise financeira, quando estava a escrever “The Big Short”, ficou claro para mim que muitos dos problemas que levaram à crise financeira tiveram a ver com os árbitros terem sido corrompidos ou impedidos de funcionar. Se houvesse um forte árbitro financeiro, os reguladores, não teria havido crise. Comecei a perceber que o problema dos árbitros é mais sistémico do que pensava.
Também reflete a crise nos media.
As pessoas já não aceitam os media como árbitros. Os media eram um elemento neutro, mas agora as pessoas têm dificuldades em achar que alguém é neutro.
Aquilo que explica no podcast ajuda a explicar a ascensão de Donald Trump?
O declínio do árbitro é também um declínio da confiança na sociedade. Se for forte, o árbitro é uma fonte de confiança, leva as pessoas a pensarem que o jogo “foi justo”. Mas as pessoas sentem que hoje o jogo não é justo e a sua incapacidade de aceitar qualquer tipo de árbitro torna Donald Trump possível. Aquilo que ele explora é um ambiente de desconfiança. Toda a sua vida foi vivida sem confiar em ninguém. Pessoas que sentem estar a ser vítimas de muitas decisões erradas respondem à sua mensagem. As duas coisas estão muito relacionadas.

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