O comentário político em Portugal rendeu-se à argúcia de António Costa na gestão da crise política ligada às carreiras dos docentes. Mesmo quem acha que a ameaça de demissão foi uma encenação, elogia a estratégia do primeiro-ministro e critica a ingenuidade do PSD e do CDS. Uma análise que parte do princípio que o PS obterá ganhos eleitorais ao passar uma imagem de “guardião das contas”. Agora que crise foi enterrada pelo chumbo do diploma, será útil perceber que impacto é que ela pode ter tido na imagem dos socialistas.
Em primeiro lugar, sabemos que a perceção sobre a economia penalizou mesmo o PS nas últimas eleições. E isso aconteceu por várias vias. Como escreveu Pedro Magalhães a seguir às legislativas anteriores, o número de pessoas que achavam que a economia tinha piorado nos últimos 12 meses tinha caído bastante em relação a 2011. Não é muito surpreendente: o escrutínio de 2011 foi feito poucos meses depois da chegada da troika a Portugal e já com uma série de medidas de austeridade no terreno. Ainda assim, muitas pessoas sentiriam que o país estava melhor (ou não tão mau).
Mas essa era apenas a ponta o icebergue dos problemas do PS. Mais preocupante para as suas aspirações eleitorais é o facto de, mesmo entre aqueles que diziam que a economia tinha piorado ao longo de 2015, mais de metade achavam que o governo anterior, liderado por José Sócrates, era “muito” ou “extremamente responsável” pela pobre situação económica desse período, como se pode ver neste gráfico de Pedro Magalhães.

Mais: os portugueses achavam que Pedro Passos Coelho era mais competente do que António Costa na gestão da economia. Se considerarmos todo o eleitorado, essa diferença é de 14 pontos percentuais. Outro gráfico, do mesmo post de blogue:

Em resumo, quando o assunto era economia, os portugueses confiavam muito mais no PSD do que no PS. “Mesmo entre aqueles que não se aperceberam de qualquer melhoria, o crescimento do PS foi impedido pela perceção de que o seu anterior governo tinha responsabilidades na má situação económica e de que a Costa e faltava competência nesse domínio”, escrevia o investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa.
Mudar de conversa
Três anos depois, será que isso mudou? O Governo parece apostar claramente nisso. Ao posicionar-se como o agente responsável na discussão sobre o descongelamento das carreiras dos professores – tão responsável que até estava disposto a demitir-se -, procura roubar à direita a bandeira do rigor das contas e colar-lhe um rótulo de irresponsabilidade. Ainda é cedo para saber se funcionou, mas pedimos a Pedro Magalhães para voltar a refletir sobre o tema.
“Este governo conseguiu presidir à continuação da retoma económica, cumprindo os acordos com os partidos à esquerda e apresentando um défice mais baixo. É uma combinação muito potente para as pessoas”, explica à VISÃO. Esse mesmo PS que “presidia ao governo quando o país chegou à bancarrota”, consegue governar com partidos à esquerda depois de, em 2015, “se dizer que o Executivo não se aguentava ou que podia haver outra bancarrota”. “Os partidos de centro-direita ficaram sem armas políticas. Já não são donas do tema da [responsabilidade orçamental] e quanto mais visibilidade ele tem, pior.”
Daí que o ângulo de ataque da oposição esteja a ser, na economia, a falta de investimento, degradação dos serviços públicos e episódios de má gestão do Estado (temas, curiosamente, que normalmente são agarrados pela esquerda). Em relação ao episódio dos professores em concreto, faltam mais dados para perceber o impacto pode ter. Até agora, foi apenas publicada uma sondagem da Aximage que concluía que a maioria dos inquiridos apoiava a oposição do PS à medida (57% vs. 33%), ainda que houvesse maior divisão na avaliação da ameaça de demissão de António Costa (49% acham que agiu bem, 44% mal).
A crise explodiu no dia em que o ICS e o ISCTE terminavam o trabalho de campo para a sua mais recente sondagem, mas em breve também terão mais dados para avaliar esses efeitos. “Não consigo dizer se o PS retira benefício. Mas pode já dizer-se que o PS e o Governo tinham um grande interesse em mudar de conversa. O tema que estava a dominar [as notícias] era o familygate, ao mesmo tempo que se observava uma erosão lenta, mas continuada, da popularidade do primeiro-ministro e da intenção de voto no PS”, refere Pedro Magalhães. “Era muito importante mudar a agenda. E o tema das relações familiares desapareceu.”
Contudo, não é possível assegurar que venha daí um ganho eleitoral. É verdade que a literatura económica tende a concluir que em democracias mais desenvolvidas o desequilíbrio orçamental é penalizado, mas não é possível tirar conclusões sem fazer mais perguntas. A avaliação do mérito do rigor orçamental muda consoante a solidez da economia? Quanto tempo demora até os eleitores “perdoarem” um partido que ficou ligado a uma crise grave? E mesmo que encontre respostas a estas perguntas, elas terão flutuações enormes, dependendo dos países, sistema partidário, líderes e contexto económico e político.
Além disso, embora os governantes possam ser eleitoralmente crucificados devido a uma crise, um tempo de crescimento não lhes garante uma canonização. Longe disso. “O drama dos governos que presidem a uma crise económica é o de enfrentarem a inevitável punição dos eleitores em torno de um assunto que é visto como importante por quase todos. Mas os governos que presidem a uma situação económica positiva enfrentam outro drama, certamente preferível, mas igualmente inescapável: o assunto perde importância, e só é fácil convencer os que já são fiéis”, referia o mesmo Pedro Magalhães, num texto de análise a uma sondagem do ICS intitulado “O eleitorado e a economia: muita vingança, pouca recompensa”.
De facto, ao olhar para 2018 – um ano de crescimento económico, descida do desemprego e do défice -, 20% dos portugueses acharam que a economia “piorou” ou “piorou muito”. 40% considera que ficou na mesma. Dessa mesma sondagem do ICS:

Feridas que demoram a sarar
Isso não significa que o tema não tenha valor eleitoral. Aliás, temos até algumas pistas que nos levam a concluir que sim. “O Governo decidiu usar a bandeira da disciplina orçamental. Ninguém à direita diz algo diferente e, mesmo à esquerda, não parecem querer assumir-se como inimigos desse objetivo perante o seu eleitorado potencial”, aponta Pedro Magalhães à VISÃO.
É um sinal de que todos eles identificam ganhos (ou potenciais perdas) caso se posicionem bem/mal neste terreno. Além disso, estes temas não existem no vácuo. A cobertura que os media fazem do assunto condiciona a forma como são recebidos pelos portugueses e, neste caso, ela colocou PSD e CDS sempre à defensiva, posicionando António Costa como o ator responsável.
Isto não quer dizer que o PS tenha conseguido mudar a sua identidade perante os eleitores. Como lembra Pedro Magalhães no texto que escreveu há três anos, pode demorar muitos anos até este tipo de “cicatrizes” desaparecer da pele dos partidos. No Reino Unido, a crise financeira de 2008 fez o Labour sangrar durante muitos anos. “Em 2015, muitos eleitores ainda culpavam o Labour por uma economia débil”, apontava uma análise do Institute for Public Policy Research. “Se identificavam uma melhoria da economia, davam crédito aos conservadores. Mas o Labour não recebia qualquer crédito, apenas uma parte da culpa.”
Resta saber se o PS de António Costa ainda carrega esse peso às costas ou se, pelo contrário, os portugueses já se esqueceram.
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