A remuneração de €19 milhões do CEO da Stellantis, o português Carlos Tavares, foi um dos temas quentes na campanha das últimas presidenciais francesas. “É chocante e excessiva”, afirmou Emmanuel Macron. Num piscar de olho aos eleitores mais à esquerda, o Presidente francês defendeu a luta ao nível europeu por um limite às remunerações dos gestores, sob pena de a “sociedade poder explodir a qualquer momento”. Além de se ter tornado um assunto de debate político, o pacote salarial do líder da gigante automóvel foi também rejeitado pelos acionistas. Constituiu um dos exemplos cada vez mais frequentes de como pagamentos considerados altos levam à revolta de políticos e de investidores.
As críticas aos salários altos dos CEO não são novas. Ainda antes de a crise financeira de 2008 se abater com toda a sua violência, havia líderes europeus a propor um travão aos pacotes remuneratórios dos gestores de grandes empresas. Também em Portugal, o primeiro-ministro António Costa repudiou, em 2018, o valor que alguns CEO do PSI auferiam. Mesmo com os governantes a trazerem o assunto para o plano político, acabaram por não ser ainda implementadas medidas para se travar o crescimento das remunerações dos CEO, e estas não são sequer ainda uma estratégia consensual.
Apesar das preocupações sublinhadas por líderes políticos europeus, tem sido nos EUA que a desigualdade mais se acentuou. “Entre 1978 e 2020, o pagamento dos CEO com base na remuneração realizada cresceu 1 322%, ultrapassando de longe o crescimento do índice S&P (817%) e contrastando com a remuneração do trabalhador típico, que aumentou apenas 19% entre 1978 e 2020”, indica o último estudo do Economic Policy Institute, relativo ainda aos dados de 2020. Este centro de estudos explica o disparo nas remunerações dos CEO das cotadas norte-americanas com “o seu poder para ditarem a remuneração e porque uma parte muito maior da sua compensação (mais de 80%) está relacionada com ações, e não porque esteja a aumentar a produtividade”.
Este peso bastante elevado da componente de ações é uma forma de incentivar os gestores a criar valor para os acionistas, mas aumenta também a tentação de os CEO usarem estratégias artificiais para conseguirem insuflar o valor dos títulos e, dessa forma, engordarem os seus planos remuneratórios. Pior: como uma componente importante da remuneração é a atribuição de uma opção de compra das ações da própria empresa a preços favoráveis, pode levar os CEO a exercerem essa possibilidade antes de anunciarem programas de recompras de ações próprias por parte da empresa, numa estratégia quase a roçar o inside trading, que os beneficia.
Não obstante a crise pandémica, no ano passado, as cotadas do S&P 500 compraram 880 mil milhões de dólares (€830 mil milhões em ações próprias), segundo dados citados pela Standard & Poor’s. Foi um valor recorde, e neste ano prepara-se mais uma colheita generosa de recompras, apesar da perda de compra do cidadão comum, motivada pelo aumento da inflação. O setor petrolífero, por exemplo, vai usar o aumento dos lucros, conseguido graças à valorização do petróleo, para acelerar estes programas de recompra de ações próprias. Estes suportam o preço das ações – devido à pressão compradora – e faz com que as ações normais restantes valham mais, porque o capital da empresa fica repartido por menos títulos.
Uma análise do regulador norte-americano mostrou que poucos dias depois dos anúncios desses tipos de operações – que tendem a levar a subidas das ações – costumam ser a altura preferida para os CEO venderem os próprios títulos, aproveitando a valorização. Vendem em média cinco vezes mais ações nas sessões que se seguem a essa divulgação do que num dia normal.
Mas também nos EUA a pressão política e social para travar a escalada nas remunerações dos CEO tem crescido. Assim, começam a aparecer sinais por parte da administração Biden de uma possível adoção de medidas que possam moderar os ganhos dos executivos. A Casa Branca propôs, por exemplo, que se impeça os CEO de venderem as ações por um longo período após o anúncio dos programas de recompras. É o primeiro passo para se tentar refrear as elevadas remunerações de alguns CEO, mas podem estar outras opções em calha, como barrar as empresas com os maiores desequilíbrios salariais de concursos públicos e apoios estatais.
Revoltas acionistas
A apreensão sobre o valor e a forma como os CEO e outros administradores são remunerados não é apenas política e social. Se, há uns anos, os cheques aos gestores passavam quase sem oposição nas assembleias gerais de acionistas, agora há cada vez mais contestação por parte dos investidores. Um relatório divulgado recentemente pela As You Sow, uma organização que quer promover maior responsabilidade social das empresas, mostrou que 2022 iria bater recordes nos votos contra as remunerações dos CEO norte-americanos. Das 100 empresas que esta entidade considera terem os líderes executivos com ganhos mais excessivos, 16 pacotes remuneratórios foram rejeitados pelos acionistas. Na Europa, como vimos no caso da Stellantis, os acionistas também começam a revoltar-se perante valores que não consideram adequados.
“Nunca houve este número de votos contra as remunerações, nos oito anos em que realizamos este relatório”, observa Rosanna Landis Weaver. A autora deste estudo afirma que “a pandemia contrariou a noção de que o pagamento aos CEO irá subir ou descer, consoante o desempenho da empresa”, e considera “que alguns boards atuaram como se o pagamento pelo desempenho não contasse devido à Covid-19, e os acionistas rejeitaram de forma furiosa esses pacotes”. A responsável da As You Sow defende ainda que “é altura de mais acionistas se oporem às quantidades e não apenas às más práticas, já que o crescimento nos pagamentos aos CEO não é justificado e não é nos melhores interesses dos acionistas”.
Entre as empresas que viram os pacotes remuneratórios dos CEO chumbados estiveram gigantes como o JP Morgan ou a Intel. No entanto, a vontade expressa pelos acionistas nas assembleias gerais não é vinculativa. Ainda assim, são cartões amarelos que não deixam de ser embaraçosos para os envolvidos e que poderão fazer as comissões de vencimento e os próprios executivos refletir sobre como as remunerações são calculadas. A Electronic Arts, a General Electric ou a Norwegian Cruise Lines foram outras cotadas a sofrer a reprovação dos acionistas, devido aos valores propostos para premiar os CEO.
Na Europa, os investidores também começam a revoltar-se face aos pacotes remuneratórios considerados inadequados, apesar de os chumbos serem quase sempre não vinculativos. Além do caso da Stellantis, também no ano passado a mineira Rio Tinto não conseguiu o apoio da maioria dos acionistas para os salários e bónus de alguns dos seus executivos. Já os CEO da farmacêutica AstraZeneca e do banco italiano Unicredit têm conseguido a aprovação das remunerações muito à justa. Isto após duas das mais influentes entidades que aconselham o voto de grandes investidores terem recomendado o chumbo das propostas remuneratórias dessas empresas. Em Portugal, a questão das remunerações não aparenta agitar de forma significativa os acionistas, com os pacotes de compensação das administrações a não sofrerem grande oposição nas assembleias gerais.
Uma questão de criação de valor
Uma menor desigualdade entre as remunerações dos CEO e dos seus trabalhadores, bem como critérios mais sólidos para definir os pagamentos dos líderes executivos não são apenas uma questão de justiça social. Há indícios fortes de que as empresas, em que os presidentes-executivos tenham salários e bónus excessivos face ao que pagam aos funcionários e à evolução dos negócios, apresentam um pior desempenho que o mercado. Desde que a As You Sow publica o relatório com os 100 CEO com as remunerações mais excessivas – calculadas em modelos estatísticos que têm como base a evolução das ações nos últimos cinco anos –, em todas as edições as empresas demasiado generosas com o líder executivo rendem menos do que o S&P 500.
Investir nas 100 cotadas com os CEO com remunerações mais excessivas poderia ter-se traduzido, nos últimos sete anos, num desempenho 20 pontos percentuais abaixo em relação ao total do S&P 500 (isto dando o mesmo peso a todas as cotadas, em vez de as ponderar por capitalização bolsista), segundo a As You Sow. À medida que esta questão de desempenho abaixo do mercado pesar mais na tomada de decisão de grandes investidores, abre-se a porta para que os pacotes remuneratórios possam vir a ser alvo de maior escrutínio por parte do mercado. Aliás, há indicadores, como o do rácio entre os pagamentos aos CEO e aos funcionários da mesma empresa, começam já a fazer parte dos critérios de voto para algumas grandes gestoras de ativos.
É o caso, por exemplo, da Amundi. A maior gestora de ativos da Europa iniciou, em 2020, uma campanha para sensibilizar as cotadas em que investe, e que têm grandes disparidades salariais, a resolverem esse problema, sob pena de começar a votar contra as propostas de remuneração dessas administrações. “Um pay ratio justo pode indicar que uma empresa dá prioridade à criação de postos de trabalho bem remunerados e vê o investimento nos seus funcionários como essencial à saúde de longo prazo da empresa”, justificou a gestora no seu relatório anual sobre envolvimento com as cotadas em que ela investe. Apesar desta preocupação com as desigualdades e de escrutínio às remunerações, o antigo CEO da Amundi já teve de lidar com os reparos de alguns acionistas, após duas entidades que aconselham investidores terem recomendado a votação contra um bónus de dois milhões de euros, atribuído devido à falta de clareza dos critérios usados.
Tal como aconteceu com as questões ambientais – que em pouco tempo passaram de um tópico quase ignorado pelos investidores para um dos pontos cardeais das decisões de investimento –, há sinais de que as práticas salariais justas das cotadas começarão a ser mais levadas em conta pelos participantes nos mercados financeiros.
Artigo publicado originalmente na edição 458, de junho de 2022, da revista EXAME