“Tenho a minha caneta na mão e preparada para qualquer aumento de impostos que o Congresso possa sequer pensar em enviar-me. E tenho apenas uma coisa a dizer àqueles que querem subir impostos: força, façam o meu dia.”
A frase é de Ronald Reagan, dita para uma plateia de empresários, em 1985. Ela resume bem a alergia do Presidente dos EUA aos impostos. Em conjunto com Margaret Thatcher, Reagan foi a face mais visível de uma doutrina de diminuição da pressão fiscal sobre os mais ricos e as empresas, integrada numa corrente económica que defendia a necessidade de dar mais espaço aos mercados, com menos regulação e, teoricamente, menos despesa do Estado. Do lado dos impostos, a teoria era que aliviar os mais ricos ajudaria todos. Imagine uma torre de copos de champanhe: ao encher o copo do topo, o champanhe vai caindo para os copos de baixo. Funcionaria de forma semelhante com a riqueza, que escorreria via consumo, investimento e novas contratações. Foi a isso que se chamou economia “trickle-down” ou de gotejamento. Hoje, sabemos que não é assim que funciona. Quando o copo de cima fica cheio, os mais ricos simplesmente bebem-no e esperam que ele volte a encher.
A expressão “trickle-down” foi sempre mais usada pelos críticos do que pelos defensores de alívios fiscais. Os mais céticos – como o futuro presidente George H. W. Bush, adversário de Reagan nas primárias republicanas – chamavam-lhe mesmo “economia voodoo”. Aquilo que sabemos hoje mostra que talvez não estivessem longe da verdade. Diminuir os impostos dos mais ricos contribui para a desigualdade e não ajuda em nada o crescimento da economia.
O assunto é alvo de debate há décadas, mas ressurgiu com a publicação de um novo estudo, que utilizou um método inovador para enterrar a ideia. Julian Limberg e David Hope, do King’s College de Londres e da London School of Economics, olharam para os cortes de impostos que beneficiaram os mais ricos nos últimos 50 anos e concluíram que o “trickle-down” existe no mesmo sítio onde unicórnios cavalgam sobre arco-íris.
“Concluímos que grandes cortes de impostos para os ricos fomentaram as desigualdades de rendimento, quando medidas pela fatia de riqueza nacional pré-impostos detida pelo top 1 por cento. A dimensão do efeito é significativa: em média, cada grande diminuição de impostos resulta numa subida de 0,8 pontos da fatia do top 1%”, pode ler-se no estudo. “Se nos concentramos no desempenho económico, não encontramos efeitos significativos de grandes cortes de impostos. Mais especificamente, a trajetória do PIB per capita e da taxa de desemprego não são afetadas por reduções significativas dos impostos sobre os ricos, tanto no curto como no médio prazo.”
Reagan e Thatcher foram apenas os exemplos mais conhecidos de redução do esforço fiscal sobre os mais ricos, mas essa tendência foi comum a grande parte dos países desenvolvidos, com diminuições transversais das taxas marginais de impostos. Portugal, que não está incluído neste estudo, teve aliás uma das descidas mais agressivas desde a década de 1970, de quase 40 pontos percentuais, segundo os dados do World Inequality Database.
Hoje, sabemos que essas reduções têm sido acompanhadas de maior desigualdade. No entanto, com tantos impostos e tantas mudanças fiscais, pode ser complicado ter uma ideia mais geral de tendências. Limberg e Hope construíram um indicador sintético que representa uma espécie de esforço fiscal dos ricos. Se considerarmos as 18 economias analisadas no estudo, verificamos que esse esforço afundou a partir de meados dos anos 80 e continuou a cair, até estabilizar no pós-crise financeira de 2008.
Normalmente mais associada aos países anglo-saxónicos, a tendência foi generalizada nestes 18 países desenvolvidos: os ricos pagam menos do que há 50/40 anos. A ideia era que isto estimularia a atividade económica, acabando por beneficiar todos. Uma espécie de enchente que faria subir todos os barcos, os pequenos e os grandes.
Não foi isso que se verificou. Em resposta à EXAME, Limberg nota que, quando juntam as conclusões do seu estudo a outras análises, “é seguro dizer que [a economia “trickle-down”] é um mito”. “O nosso estudo não encontra nenhum apoio para essas ideias.”
Então, o que acontece quando se diminuem os impostos pagos pelos mais ricos? “O que acontece, essencialmente, é que a desigualdade aumenta: os 1% mais ricos da sociedade ficam ainda mais ricos”, explica.
Ainda que não tenham faltado críticos deste tipo de estratégia económica, ela manteve-se relativamente popular entre os governos até à grande crise financeira de 2008. O exemplo mais recente – tão recente, aliás, que não entrou no estudo – foi a reforma fiscal de Donald Trump, de 2017. A legislação foi “vendida” como positiva para a generalidade dos contribuintes norte-americanos, mas as análises mostram que os principais beneficiários foram os mais ricos e as grandes empresas.
A medida foi o culminar de sucessivos alívios de impostos sobre os mais ricos, que acabaram por distorcer o regime fiscal norte-americano. Segundo as contas dos economistas Gabriel Zucman e Emmanuel Saez, em 2018, pela primeira vez, os 400 norte-americanos mais ricos pagaram uma taxa média de impostos inferior (!) aos 50% mais pobres. Um sinal de que alguma coisa pode estar errada no sistema fiscal.
A consequência tem sido uma desigualdade crescente, especialmente visível nos Estados Unidos da América, com uma concentração de riqueza a que os economistas têm dado cada vez mais atenção, devido aos efeitos negativos que traz para a economia e a própria democracia. Os 1% mais ricos dos EUA já detêm 20% da riqueza do país, enquanto os 50% mais pobres ficam com 12 por cento. Há 40 anos, essa proporção era praticamente inversa.
Em Portugal, a história é menos linear. A fatia da riqueza dos 10% mais ricos disparou de menos de 30% no início da década de 1980 para perto de 40% no final dos anos 90, mas tem estado relativamente estabilizada desde essa altura. Embora o País continue a ter um dos níveis de desigualdade mais elevados da Europa, ele tem vindo a recuar nos últimos 20 anos.
Combater a Covid-19
Ok, descer os impostos dos mais ricos não ajudou. Mas, agora que eles já estão nesse nível, será que faz sentido agravá-los? Poderia ser uma fonte de receita para ajudar a pagar a despesa adicional criada pelo combate à pandemia?
“Embora não tenhamos olhado para os efeitos de aumentos de impostos – simplesmente porque quase não houve grandes subidas de impostos nos últimos 50 anos –, os nossos resultados sugerem que os responsáveis políticos não devem ficar excessivamente preocupados com as consequências económicas de aumentar os impostos sobre os mais ricos no pós-Covid-19”, aponta Limberg. “Impostos mais altos sobre os ricos podem ser uma boa forma de gerar receitas para pagar os custos provocados pela pandemia.”
O académico tem lembrado que, se olharmos para a História recente, verificamos que o período em que os ricos pagaram mais impostos foi também aquele em que se observaram níveis de crescimento mais elevados. O académico refere-se ao pós-Segunda Guerra Mundial, décadas de crescimento forte e níveis de desigualdade mais baixos.
Muitos responsáveis políticos começam a responder à pressão crescente criada pela maior atenção que o tema da desigualdade tem recebido, tornando-se um dos assuntos mais debatidos na arena económica. Algo que a pandemia intensificou, com a perceção de que existem dois grupos separados por um enorme fosso: os milhões de trabalhadores em setores afetados, que ficaram sem emprego ou sem salário; e um pequeno grupo de milionários que viu a sua riqueza disparar, apesar de a economia mundial estar a atravessar uma crise de proporções históricas. Desde o início da pandemia, os dez homens mais ricos do mundo viram a sua riqueza aumentar 400 mil milhões de dólares, enquanto os 651 multimilionários (billionaires) norte-americanos enriqueceram 1,1 biliões nesse período.
Ainda é cedo para perceber o que fará a Administração Biden nesta área, mas, enquanto candidato, prometeu uma reforma fiscal, incluindo aumentar as taxas marginais de impostos, agravar a carga fiscal sobre rendimentos de capital, dar mais poder ao Fisco e aumentar os impostos sobre as empresas. Com os democratas em controlo do Senado, algumas destas medidas têm maior probabilidade de serem colocadas no terreno, ainda que os processos negociais e legislativos tendam sempre a diluir a agressividade das propostas iniciais.
A Argentina, por exemplo, avançou com um “imposto sobre milionários”, aplicado sobre os 12 mil argentinos mais ricos e que terá como objetivo ajudar a pagar as medidas de combate à pandemia. No Reino Unido, foi criada uma Wealth Tax Commission, composta por académicos, funcionários do fisco e responsáveis políticos, que recomendou há poucas semanas a criação de um imposto extraordinário de 1% sobre a riqueza acima de um milhão de libras.
Em Portugal, a presidente do Conselho das Finanças Públicas tinha também assinalado essa possibilidade em setembro do ano passado, falando ao Expresso de “um tributo sobre determinado tipo de ativos financeiros, de natureza temporária e excecional e direcionado aos contribuintes que pudessem ajudar nesse esforço de solidariedade nacional”. Não há nenhuma indicação de que o Governo esteja a pensar nisso.
Um dos debates que ganharam tração nos últimos anos nota que os sistemas fiscais atuais têm muitas dificuldades – ou nem tentam – em tributar a riqueza, quando ela pode ser mais significativa para a desigualdade do que o rendimento. Essa tese ganhou força com a publicação de O Capital no Século XXI, por Thomas Piketty, em que o economista argumenta que a rentabilidade do capital tem avançado a um ritmo superior ao crescimento económico, agravando o fosso entre ricos e pobres.
À EXAME, Limberg diz que o seu estudo não discrimina entre impostos sobre o rendimento ou riqueza, mas, como os dois têm recuado, “aumentar ambos poderia ser uma opção interessante para os responsáveis políticos”.
Impopularidade inevitável?
Contudo, os defensores de medidas deste género têm sempre um obstáculo: quando se fala em aumentar impostos, a medida torna-se facilmente impopular, mesmo quando a maioria da população não é afetada pelo agravamento.
Numa entrevista concedida à EXAME em 2019, Pascal Saint-Amans, diretor do centro de política fiscal da OCDE e responsável por uma reforma do sistema tributário mundial, referia que medidas como um imposto sobre riqueza ou sobre as heranças “deviam ser medidas apoiadas pelos pobres e a classe média, mas eles são os principais inimigos dessas medidas, porque têm poucas posses e não as querem ver taxadas”. E acrescentava: “Ainda ninguém encontrou uma forma criar ou aumentar impostos sobre a riqueza sem ter pessoas nas ruas.”
Limberg sublinha que depende muito dos impostos. “Muitas sondagens recentes mostram que impostos sobre riqueza e sobre rendimentos de capital costumam ser bastante populares – mesmo entre eleitores conservadores”, observa, reconhecendo que, por outro lado, tributar heranças é mais impopular. O fator decisivo é ser capaz de mostrar que as medidas são “justas”. “Se quem propõe impostos mais altos sobre os ricos usar argumentos convincentes de que essas subidas poderão ajudar a restaurar a justiça orçamental no pós-Covid, esse apoio aumentará ainda mais”, recomenda.
A academia e a política parecem estar a mudar de opinião sobre os impostos. É possível que esta década traga mais novidades neste campo.
NOTA: Este artigo foi publicado originalmente na edição impressa da EXAME, de fevereiro de 2021.