Dedos apontados, acusações na Imprensa, queixas em tribunal, ameaças de desinvestimento, previsões de um futuro negro para o País. Cenário de guerra não é uma metáfora excessiva para o contexto em que nasce a quinta geração de comunicações móveis em Portugal. A mesma tecnologia que promete, na próxima década, transformar o modo como trabalhamos e vivemos, alimentou nos últimos meses um confronto sem precedentes entre operadores e regulador.
Em causa, as condições para os leilões de frequências 5G consideradas ilegais pelos operadores históricos, MEO, NOS e Vodafone, como a obrigação de permitirem acesso de terceiros às suas redes, a reserva de parte do espectro aos players recém-chegados (novos entrantes) ou as metas de cobertura e investimento a que estes estão sujeitos, consideradas menos exigentes. Invocando os milhares de milhões investidos durante anos, queixaram-se aos tribunais, a Bruxelas, ao Governo e a Belém. Sustentam que dar acesso a operadores “parasitas” com condições “discriminatórias” vai destruir valor de quem investiu e que, estando para ficar, pode cortar muito esse investimento. As críticas são fáceis de resumir: os operadores tradicionais consideram que, com estas regras, incentiva-se a chegada de empresas oportunísticas, que terão melhores condições financeiras para operar no 5G, menos obrigações de cobertura e sem necessidade de grandes investimentos, porque poderão utilizar as infraestruturas que Altice, NOS e Vodafone desenvolveram nos últimos anos.
A Anacom, que regula o setor, defende a “base sólida legal” das regras, que fazem subir a concorrência e beneficiam os utilizadores e a coesão. Diz que outros países também reservaram espectro a novos entrantes e defende a cedência da rede a terceiros como forma de aumentar receitas e rentabilizar investimentos em zonas de menor densidade.
A contestação não impediu o avanço do leilão para a licitação de 58 lotes de frequências. A primeira fase, com frequências 4G para novos entrantes, terminou em janeiro com, pelo menos, uma ganhadora, a espanhola MásMóvil. Terá havido mais um operador a participar, mas os nomes oficiais dos vencedores não são conhecidos. A segunda fase, de licitação principal, ainda decorre. O objetivo é conceder, entre outras, frequências nas faixas pioneiras para as comunicações 5G (700 MHz e 3,6 GHz). Ao fim de mais de 50 dias de licitação, o Estado já tinha largamente superado o encaixe previsto com a venda – mais de 350 milhões de euros nas duas fases do leilão, contra 237,9 milhões pretendidos.
Onde para a litigância
Um processo que seguia a ritmo compassado, se comparado com a rapidez prometida pela próxima geração de comunicações: volume de dados 100 vezes superior ao 4G, 50 vezes menos latência (tempo de resposta) e possibilidade de ligação de um milhão de dispositivos por km2. E demorado também para os padrões comunitários: segundo o Observatório Europeu para o 5G (OE5G), no final de 2020, mais de um terço do espectro europeu estava atribuído e, dos 27 Estados-membros, 23 tinham oferta comercial. Portugal era exceção, a par com Chipre, Lituânia e Malta.
Regulador e Governo continuavam, em fevereiro, a apontar para a atribuição das frequências até ao fim do primeiro trimestre [o que não veio a acontecer], mas persistia a incógnita sobre o desfecho de quase uma dezena de queixas dos operadores. À EXAME, as direções gerais da Concorrência e Redes de Comunicação, Conteúdos e Tecnologias da Comissão Europeia dizem estar ainda a avaliá-las. A NOS afirma não conhecer “desenvolvimentos relevantes” em nenhum dos seus processos. Mas não cala o protesto: “Estamos veementemente contra algumas regras ilegais e inconstitucionais deste leilão. Prosseguiremos até às últimas instâncias comunitárias e judiciais”, reafirmou à EXAME Manuel Ramalho Eanes.
O administrador da NOS não está preocupado com eventuais atrasos criados pela litigância: “Se houver algum imponderável que cause esse atraso, mas elimine as condições ilegais e inconstitucionais, terá sido conseguido um benefício para o País e não um custo.” E diz haver vários caminhos para superar a situação.
Outro operador, a Vodafone, pediu recentemente a suspensão do leilão por causa do segundo confinamento e interpôs a ação principal contra as regras do leilão, como noticiou o Negócios. Questionada pela EXAME, a operadora recusou comentar “temas de 5G relacionados com regulação ou oferta comercial” até ao fim do processo. A Altice, última a entrar nesta contestação formal, avançou também com uma providência cautelar contra a Anacom e duas à Comissão Europeia.
Do Governo, que quer a tecnologia em todo o território até 2030, foram chegando preocupações e críticas. O ministro da Economia, Siza Vieira, lamentou a controvérsia e que o leilão não priorize a conclusão da cobertura 4G. Souto de Miranda, antigo secretário de Estado das Comunicações, acusou a Anacom de não refletir no leilão as prioridades do Governo. Mas a separação de águas deixou a condução do processo nas mãos do regulador, que não faz declarações até que o leilão esteja terminado.
Contactada pela EXAME, fonte do Ministério da Economia diz não ter “nada a acrescentar” ao que já disse o ministro. Questionado sobre o atraso de Portugal, o calendário para o 5G e as queixas dos operadores, a secretaria de Estado das Comunicações – hoje liderada por Hugo Santos Mendes – responsabiliza a pandemia pelos “atrasos inevitáveis” no 5G, mas não vê motivos para alterar as metas do Governo, aguardando “serenamente pelo desfecho das ações judiciais”.
Uma das críticas dos operadores é a possibilidade de, com as condições para novos entrantes, o mercado ser ocupado por empresas espanholas, uma alusão à MásMóvil, quarto operador do país vizinho e dona da Nowo. Segundo o Expansión, a Nowo arrecadou três lotes de frequências para novos entrantes, a usar na criação de uma rede 4G em Lisboa, no Porto e no Algarve, zonas com potencial para implementar uma rede 5G. O objetivo é tornar-se a quarta operadora nacional. A EXAME contactou a MásMóvil, que, até ao fecho desta edição, não respondeu às questões enviadas.
Outra posição contestada é a da britânica Dense Air, detida pelo grupo SoftBank e que presta serviços de densificação e extensão de redes. Os operadores dizem que o espectro que lhe foi atribuído em 2010 caducou porque não iniciou a atividade comercial no prazo, mas a Anacom considera que cumpriu as obrigações e que tem licença válida até 2025. Com espectro numa das faixas pioneiras do 5G, a empresa teve de ir a leilão para manter ou reforçar a licença atual. Apesar de ter manifestado disponibilidade para responder às questões da EXAME, a Dense Air acabou por não o fazer.
Atrasado ou muito a tempo?
Termine como – e quando – terminar a controvérsia, a generalidade dos especialistas com que a EXAME falou não está preocupada com eventuais atrasos e sublinha a importância desta tecnologia no pós-pandemia, para a recuperação da crise. “Embora cheguemos tarde ao 5G, será num momento em que as redes móveis estão provadas e testadas. E há um conjunto de terminais muito interessante”, confia Luís Muchacho, diretor de Networks Pre-sales da Ericsson, que fornece elementos de rede de ponta a ponta para 5G. Jorge Portugal, diretor-geral da COTEC, acompanha: “Portugal não está na primeira fila, mas não quer dizer que não possa apanhar as próximas vagas, se acelerar o suficiente.”
José Ferreira, partner do Boston Consulting Group (BCG), também concorda: “Temos um setor de telecomunicações forte e inovador. Irá desenvolver as infraestruturas antes de países que começaram mais cedo, até devido à dimensão do País, que permite avançar de forma mais rápida para a cobertura total.” Outro ponto que pode favorecer Portugal, segundo este consultor, é “o ecossistema mais próximo entre os operadores e a indústria”, que poderá levar ao desenvolvimento de “soluções interessantes ao nível nacional”.
Recorde-se que, nos últimos anos, dezenas de iniciativas público-privadas procuraram testar usos no País, com cidades como Cascais, Aveiro, Évora, Porto, Matosinhos e Lisboa a serem palco de ensaios, tal como aconteceu com os testes de carros autónomos nos corredores transfronteiriços Évora-Mérida e Porto-Vigo.
Manuel Ramalho Eanes sublinha o trabalho de casa. “Para a NOS, o 5G não começou no leilão; há vários anos que estamos a preparar-nos, com um ecossistema de inovação e parcerias. Quando as frequências forem disponibilizadas, estamos preparados para operar a tecnologia”, afirma o administrador da empresa, que trabalha em estudos de uso de 5G de clientes da indústria, logística, saúde ou cultura.
Também o diretor-geral da COTEC insiste na urgência de demonstrações em ambiente real para detetar aplicações economicamente viáveis. “[O 5G] não será um ‘pronto a vestir’. Cada empresa encontrará, nos seus processos de negócio, onde ele pode ser aplicado”, aponta o responsável, que identifica oportunidades na indústria e na logística, em particular em empresas integradas em cadeias de valor globais. “Portugal tem alguns clusters industriais interessantes que, mesmo sem a escala mundial de outros países, têm empresas modernas que precisam de apostar na flexibilidade para chegar a produtos mais altos na cadeia de valor. Isso pode ser conseguido com a digitalização do chão de fábrica”, acrescenta Luís Muchacho.
Jorge Portugal acredita que não será por falta de apoios que não se darão esses passos nas empresas, nomeadamente através do Plano de Recuperação e Resiliência. Mas avisa: “Não é uma panaceia universal para resolver problemas da indústria. É preciso expectativas realistas para as empresas e business cases desenhados com uma precisão laser.”
Várias ondas, não um tsunâmi
A revolução do 5G virá por vagas, ao longo da próxima década. “Ao contrário das anteriores gerações móveis, que no dia do seu lançamento entregaram o que prometiam (tipicamente mais velocidade), será um processo evolutivo”, refere fonte da Vodafone. José Ferreira, partner do BCG, antecipa três fases: a primeira, de desenvolvimento da infraestrutura, começa assim que terminar o leilão e trará investimento e emprego. A segunda, da conetividade, traz serviços com velocidades mais rápidas e terá um impacto forte na economia, ainda difícil de quantificar. A terceira, mais disruptiva, chega dentro de cinco a sete anos, quando estiverem montadas as infraestruturas que permitem o uso das frequências mais altas, como os 3,6 GHz. Nessa altura, considera José Ferreira, muitas empresas serão levadas a mudar os seus modelos de negócio.
Esta última será a fase mais demorada. Se as infraestruturas para as frequências mais baixas são relativamente fáceis de montar, até em antenas existentes, para os 3,6 GHz será necessário investimento totalmente novo. “Esta frequência tem maior capacidade de tráfego de dados, mas propaga-se a distâncias menores. Para cobrir todo o País, será necessário instalar muitas mais antenas e ter novas localizações. Um processo com tendência a ser mais demorado, pois será necessário encontrar os locais ideais, negociar com os donos do terreno ou dos respetivos espaços, fazer contratos de compra ou arrendamento”, explica José Ferreira.
Pelo menos num primeiro momento, do lado dos operadores, não deverá faltar dinheiro para desenvolver redes, a julgar pelo encaixe de 1,4 mil milhões de euros feito pela NOS e pela Altice na venda das suas torres à Cellnex. Esta empresa diz que o seu modelo grossista e neutro face aos operadores é “pró-competitivo” e traz maior racionalidade económica, pois reduz os custos de desenvolvimento através da partilha de torres pelos vários operadores, como explica à EXAME Nuno Carvalhosa, CEO da Cellnex Portugal. Manuel Ramalho Eanes, administrador da NOS, garante que “será investido um valor muito significativo [deste montante] no espectro e na rede” e que também “a política de crescimento da rede fixa continuará a ser alvo de investimento”.
Além das torres da NOS e da Altice, o CEO da Cellnex em Portugal diz ter em projeto “centenas de novas infraestruturas” para que todas elas possam alojar equipamentos de todos os operadores, incluindo o 5G. E não fecha a porta a eventuais novas compras, embora a prioridade seja trabalhar com os clientes a quem já comprou ativos e melhorar a cobertura móvel nas zonas mais remotas do País.
Gerador de receita
Multiplicam-se os estudos sobre os benefícios económicos do 5G. A Roland Berger estima que traga um impulso de 3,4 mil milhões de euros à economia nacional na próxima década, dando nos cinco anos seguintes um salto para os 35 mil milhões. Um estudo da Ericsson e da Arthur D. Little estima um potencial de 3,6 mil milhões de euros no âmbito da indústria das tecnologias de informação e comunicação em Portugal, com mais de metade a recair na saúde, manufaturas, energia e utilities, automóvel e segurança pública. A consultora Informa Tech prevê que, em 15 anos, a indústria será o setor que mais beneficiará da criação de valor, em termos absolutos, com um incremento de vendas mundial de cinco biliões de euros, sendo o setor da comunicação e informação o que mais cresce.
Ainda sem redes 5G em Portugal, a oferta de equipamentos começa a proliferar – em todo o mundo, o OE5G contabiliza mais de 500 equipamentos móveis 5G anunciados, metade dos quais smartphones. Segundo José Correia, diretor de marketing da Samsung, o processo de substituição de telemóveis poderá ser mais rápido do que acontece com o 4G. Mas persistem algumas barreiras. Um estudo daquela marca mostra que “70% dos portugueses ainda desconhecem as vantagens desta nova tecnologia”, embora 80% admita querer mudar para um telemóvel 5G. Outro obstáculo são os preços. “Os aparelhos que existem atualmente são, regra geral, topo de gama”, diz José Correia, que confia que os aparelhos de gama média que a Samsung começou agora a lançar, com preços mais baixos, poderão criar maior dinâmica de procura.
Procura essa que poderá ser incremental, com a introdução de novos conceitos. No Japão e na Coreia do Sul, já estão a ser feitos testes com realidade aumentada em eventos desportivos. “Posso estar a ver a transmissão de um jogo de futebol na televisão e ter no meu telemóvel a câmara que apenas está focada nos movimentos de Cristiano Ronaldo”, exemplifica José Ferreira.
Dados lançados na segurança
O 5G chegou a Portugal envolvido numa batalha entre operadores e regulador. Mas a importância da tecnologia pode ser medida pela “guerra” travada entre Estados Unidos da América e China, que apanhou a Europa no meio. As fornecedoras chinesas, em particular a Huawei, foram proscritas no mercado norte-americano, que tentou que os seus parceiros comerciais estendessem a recusa de comprar “made in China” – sem o sucesso que pretendia, já que, em muitos países, a Huawei continua a ser fornecedora dos operadores.
No 5G, há mais em jogo do que negócios comerciais. É uma tecnologia que permite o acesso a dados sensíveis, quer particulares, quer empresariais, e até de Estado, o que trouxe um foco sobre outra área do negócio. Onde ficariam armazenadas as gigantescas quantidades de informação recolhidas por dispositivos ligados entre si? Carlos Paulino, diretor da Equinix em Portugal, uma das maiores redes mundiais de data center, dá como exemplo a Europa, que tem vindo a descentralizar essas estruturas. Se antes estavam concentradas em quatro cidades do Centro e Norte do continente, a tendência dos últimos anos tem sido a de “trazer essa capacidade de processamento para junto do território onde são recolhidos”.
Guerras à parte, o 5G está aí à porta e promete trazer uma revolução. Mas ainda há muito por descobrir. Como diz Carlos Paulino, “por muito que puxemos pela imaginação, é impossível antecipar o que acontecerá no futuro e o potencial económico que esta nova tecnologia poderá gerar”.
Artigo publicado na edição 443 da EXAME, de março de 2021